"Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta".
A frase acima é de Nelson Rodrigues, na célebre crônica em que clama pela convocação de Pelé, então um menino de 17 anos, para a Copa de 1958. Troque Pelé por Isaquias e um dos maiores cronistas do jornalismo esportivo brasileiro terá descrito, sem conhecer, o primeiro medalhista da história da canoagem do país.
Junto com o fotógrafo Diego Vara, viajei a Lagoa Santa, na região metropolitana de Belo Horizonte, há pouco mais de dois meses. Lá se estabeleceu o QG da canoagem do Brasil, a mando do técnico espanhol Jesus Morlán, que achou na cidade uma lagoa parecida com a Rodrigo de Freitas, mas sem as distrações de um Rio de Janeiro tentador demais para um grupo de jovens.
Antes de ir, fui alertado sobre o gênio de Isaquias. Minha ideia era tratar de seu passado sofrido, já que a história de superação é espetacular. Sua mãe, servente na rodoviária da pequena Ubaitaba, no interior baiano, lutou muito para criá-lo. Além das dificuldades financeiras, enfrentou dois incidentes traumáticos. Quando tinha três anos, Isaquias teve o corpo queimado quando uma panela de água fervente caiu sobre ele. Ficou entre a vida e a morte, mas se recuperou. Aos 10, ficou sem um rim ao subir em uma árvore, perder o equilíbrio e se estatelar no chão, causando uma hemorragia interna. É, em resumo, um sobrevivente. Mas não queria falar sobre o passado. Emburrava-se com o assunto. Resolvi, então, tratar o tema de outra forma. Por que o protagonista de uma história tão bonita não quer falar sobre ela? Foi com essa estratégia que me dirigi a Lagoa, com certo receio de irritá-lo.
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Lá, entendi a linha tênue que separa arrogância de confiança. Isaquias é confiante, e isso lhe permite ser totalmente franco. Achei que ele poderia rechaçar minhas perguntas, nem tocar no assunto que o incomoda, mas foi direto. Disse entender o interesse no passado difícil, mas acreditava que havia exagero. "A imprensa brasileira só quer falar em miséria", chegou a afirmar.
Não foi a única frase forte da entrevista. A imodéstia descrita por Nelson apareceu em outros momentos da conversa.
– Pode me colocar em qualquer prova, que eu remo bem – sentenciou, quando o questionei sobre a possibilidade de conquistar até três medalhas nos Jogos. A segurança em seu potencial permite a ele ser sempre otimista.
Quando conversamos, Isaquias recém voltara de uma etapa da Copa do Mundo em Duisburg, na Alemanha. Houve quem classificasse o desempenho brasileiro como "preocupante" na competição. Na prova individual de 1000m, abandonou faltando 200m para o fim. Em dupla, em que forma a parceria campeã mundial com Erlon de Souza, ficou em sétimo. Mas não havia sequer uma ruga de preocupação em seu semblante:
– Fomos lá mais para sentir os adversários, ver como estão. As provas estão fortes, mas não sei se vão conseguir manter até a Olimpíada, que é o que importa.
Saí de Lagoa Santa com a mais absoluta certeza de que aquele baiano, que muitos devem ter chamado de marrento ou arrogante, conquistaria ao menos uma medalha. Acertei. E convém não duvidar de mais pódios nos próximos dias. Isaquias ainda tem mais duas provas para remar, e ele me avisou que rema bem em qualquer distância. Se é um medalhista olímpico quem diz, melhor acreditar.