Se Mayra Aguiar pendurasse o quimono hoje, antes mesmo de disputar sua terceira Olimpíada, já teria um currículo de dar inveja a qualquer atleta. Tudo aconteceu muito rápido para a gaúcha, que vai para mais uma edição dos Jogos na condição de candidata ao pódio e com o improvável rótulo de veterana aos 24 anos.
A convivência em um tatame estrelado foi decisiva para a ascensão meteórica da menina tímida que chegou à Sogipa aos 11 anos de idade, vinda do Grêmio Náutico Gaúcho. Desde aquela época, via-se na estrutura física de Mayra o potencial para ser uma atleta de ponta. Os treinos com nomes como o bicampeão mundial João Derly e o medalhista olímpico Tiago Camilo ajudaram no salto de qualidade que a levou ao título brasileiro adulto da categoria até 70kg quando tinha apenas 15 anos, em 2006. No ano seguinte, já integrava a equipe brasileira que disputou os Jogos Pan-Americanos do Rio e, em 2008, foi à Olimpíada de Pequim, em que foi derrotada na primeira luta.
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Quem acompanhava a seriedade e entrega de Mayra nos treinos não se surpreendeu com a evolução em ritmo acelerado. Sempre foi introspectiva, focada no trabalho. Aproveitava cada minuto de experiência com os laureados companheiros de time.
Mayra daria outro salto no ciclo que antecedeu os Jogos de Londres. Foi o momento em que passou a figurar entre as melhores do mundo na nova categoria (passou a lutar na modalidade até 78kg) e também o início de uma rivalidade que marca sua trajetória – e pode ter mais um capítulo no Rio de Janeiro.
Em 10 de abril de 2010, nas quartas de final do Campeonato Pan-Americano, ficou frente a frente com a americana Kayla Harrison pela primeira vez e levou a melhor. Desde então, foram 17 confrontos entre as duas, com forte equilíbrio: nove vitórias para Kayla, oito para Mayra.
– A Mayra é uma competidora incrível. É a atleta que todo treinador sonha em ter. Forte, confiante, tem ótima técnica. Lutar contra ela é sempre uma honra – elogiou Kayla em entrevista recente ao site Globoesporte.com.
– Ela é uma adversária que é forte, com bastante técnica e tática de luta. Estuda muito os adversários. É uma das atletas que eu estudo bastante por causa disso. Não dá para pensar só na força. É tática mesmo – diz Mayra.
Ainda em 2010, apenas cinco meses após a primeira luta entre as duas, Mayra entrou para a história ao se transformar na primeira judoca brasileira a ir a uma final de Campeonato Mundial. O título, porém, ficou com Kayla.
A derrota não interrompeu a excelente fase da gaúcha, que seguiu com resultados expressivos em 2011 e chegou à Olimpíada, em 2012, como número 1 do mundo. Na semifinal, lá estava Kayla de novo, e a americana levou a melhor – na decisão, ela levaria o ouro diante da britânica Gemma Gibbons.
Em um primeiro momento, o fim do sonho do título abalou Mayra. O sofrimento era agravado pela dor física, já que o golpe que deu a vitória a Kayla fez o braço da gaúcha estalar. Ainda assim, encontrou forças para buscar um bronze que, segundo ela, a fez "tirar um peso das costas". Com o pódio em Londres, a judoca, então com 20 anos, completava a coleção de medalhas em todas as provas importantes da modalidade: Olimpíada, Campeonato Mundial, Campeonato Pan-Americano, Jogos Pan-Americanos, Grand Slam, Troféu Brasil e Masters de Judô.
Os anos seguintes seriam um teste para a força psicológica da jovem. Mayra conseguiu algo improvável no ciclo que vai se encerrar no Rio de Janeiro. Manteve-se entre as melhores do mundo, mesmo em meio a uma sequência de lesões.
Logo depois da Olimpíada, submeteu-se a uma cirurgia no ombro para corrigir um problema que apareceu ainda antes dos Jogos de Londres. Recuperou-se a tempo de subir ao pódio no Mundial de 2013, no Rio de Janeiro. Logo após a competição, mais duas intervenções cirúrgicas, no joelho direito e no cotovelo esquerdo.
A sucessão de cirurgias, acompanhadas de longos períodos de recuperação, fez com que entrasse no Mundial de 2014 sem muito ritmo de competição. Naquele ano, havia disputado somente uma prova do circuito internacional. Mas em Chelyabinsk, na Rússia, veio o mais importante título da carreira.
Com direito a vitória sobre Kayla na semifinal, transformou-se na segunda mulher brasileira a vencer o Mundial de judô – a primeira foi Rafaela Silva, em 2013. Passou a ser, com o título, a recordista do país em medalhas de Mundial, com quatro. Ultrapassou, assim, a lenda Aurélio Miguel e a campeã olímpica Sarah Menezes.
– A Mayra tinha entrado em um círculo vicioso, de uma lesão após a outra. Agora está em um círculo virtuoso, com grandes resultados e uma força maior por ter superado essas dificuldades – destaca Antônio Carlos Pereira, o Kiko, técnico de judô da Sogipa.
Quando perguntados sobre o que mudou de Londres para o Rio, tanto Kiko quanto Mayra parecem falar de uma atleta na faixa dos 30 anos. "Maturidade", "vivência" e "experiência" são termos recorrentes, algo que fica evidente quando a judoca fala, com tranquilidade, sobre a difícil condição de favorita a ir ao pódio nos Jogos:
– Se a gente for ver, o favoritismo quase nunca se concretiza. Procuro nem pensar nisso, há adversárias fortíssimas na categoria. Eu penso desde a primeira luta como se fosse uma final, e assim vai ser minha cabeça e meu caminho.
Enquanto as últimas arestas são aparadas antes da Olimpíada, há o cuidado de não se preparar apenas para enfrentar a rival histórica, ao mesmo tempo em que se reconhece a força da americana, o que se manifesta na preocupação de aprimorar a luta no chão, aspecto que decidiu, a favor de Kayla, os últimos dois enfrentamentos.
– Existe uma estratégia para enfrentar a Kayla, mas não existe aquele pensamento de que está indo para o evento para se encontrar com ela. Em função da distribuição das chaves, e isso é informação, elas só se encontram na final. Então, se houver o confronto, será ótimo, já que teria uma medalha confirmada. Tem uma disputa grande antes disso, com várias atletas fortes que merecem todo o respeito – lembra Kiko.
– É muita gente boa na competição, então não dá para focar só em uma – reforça Mayra.
Munida das armas que o treino focado lhe dá, a mais destacada atleta gaúcha entrará no tatame no auge da forma, unindo a técnica apurada, a sede de vitórias da juventude e a serenidade de quem já ultrapassou tantas dificuldades:
– Sempre confiei muito em mim. Sempre acreditei. Tenho que botar na cabeça que eu sou a melhor, que eu vou ganhar. Se eu não acreditar nisso, não serão os outros a acreditar. Tenho uma meta para mim e vou em busca disso, mas tenho consciência do quanto é difícil, então por isso eu treino todos os dias.
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