Janeiro de 2016. Fernanda Oliveira senta com a filha Roberta, de pouco mais de dois anos, para uma conversa séria.
A pequena Beta havia enfrentado um dia difícil em Miami. A mãe, velejadora medalhista olímpica e em plena preparação para sua quinta participação em Jogos, saíra do hotel de manhã para competir e a deixara com a babá. Nada de incomum na rotina de quem, desde bebê, acompanha a mãe pelo mundo em treinos e campeonatos. Mas a saudade bateu, e Beta se debulhou em lágrimas. Fernanda soube quando deixou a água e viu as mensagens da cuidadora.
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– Sabe quando o papai vai para o escritório trabalhar? Então, o escritório da mamãe é no barco. Ela tem que ir trabalhar – explicou calmamente, antes de fazer a promessa que tranquilizou a filha:
– A mamãe vai, mas a mamãe sempre volta.
Beta entendeu. Desde então, quando Fernanda está velejando e alguém pergunta a ela onde está a mãe, responde:
– Mamãe foi trabalhar, mas ela sempre volta.
Beta nasceu no final de 2013 e virou presença certa nas viagens da mãe. Fernanda encontrou uma fórmula para realizar o sonho de ter filhos sem interromper a carreira vitoriosa – foi medalhista de bronze em Pequim-2008. A dupla com Ana Barbachan é uma das melhores do mundo na classe 470. As duas gaúchas têm chances reais de terminar no pódio a próxima Olimpíada. Por mais de cinco meses, ZH acompanhou a rotina das velejadoras e da pequena na reta final da preparação para os Jogos.
ENTRE FRALDAS E BARCOS
O ciclo olímpico não foi nada comum para a dupla, que compete junta desde 2009. A turbulência, porém, foi planejada. Casada com o empresário Diogo Horn, Fernanda queria ter filhos e comunicou seu desejo a Ana e ao técnico Paulo Roberto Ribeiro, o Paulinho. Todos embarcaram no plano de conciliar fraldas e barcos.
Entre março e abril de 2013, no primeiro ano do ciclo, Fernanda engravidou. Por alguns meses, a informação foi mantida em segredo. Apenas o entorno mais próximo sabia. A dupla temia que a gravidez fosse interpretada como uma opção de abandonar a corrida olímpica, o que poderia resultar na aposta do Brasil em outras equipes da 470.
Enquanto a barriga crescia, Fernanda e Ana voavam na água. O ano foi marcado por resultados sólidos nas etapas da Copa do Mundo. Fernanda, mais leve e mais baixa do que Ana, chegou a usar as roupas especiais para velejar da parceira. As suas já não cabiam mais. O mundo da vela só soube da chegada iminente da Beta quando ficou impossível esconder.
O nascimento foi em 29 de dezembro daquele ano. Em março de 2014, Beta já embarcava para sua primeira viagem internacional, rumo à Espanha, junto com a babá. Desde então, transformou a rotina de atleta da mãe e de quem a cerca.
Fernanda costuma brincar que tem de funcionar como uma agente de viagens. Enquanto Ana e Paulinho recebem as reservas de passagens e hotel prontas, ela começa a busca por locais adequados para a filha. Pesquisa se o hotel tem opções de lazer, vê se o clube que recebe a competição tem atrativos para crianças. Enquanto está na água, competindo, confia na cuidadora, mas não delega responsabilidades quando sai do barco:
– Eu não faria essa opção de trazer ela junto para depois não aproveitar o tempo que tenho com ela. Quando não estou na água, fico com a Beta. Sou eu que dou banho, que cuido dela à noite.
A transformação também influi na forma com que lida com os insucessos.
– Eu sempre fui muito crítica, super exigente. Busco sempre o melhor. Acho que a Beta me ajuda a digerir isso, porque eu chego em terra e tenho outro foco. Não que eu não sofra, mas sou obrigada a me adaptar. Tenho de ter um clima agradável de convivência com ela, me distrair e distrai-la – conta.
NO MUNDIAL, O PÓDIO ESCAPA POR POUCO
ZH encontrou Ana e Fernanda pela primeira vez no dia 5 de fevereiro. Acompanhadas de Paulinho, circulavam por uma pequena sala no clube Jangadeiros, onde escolhiam materiais para uma viagem a Buenos Aires. Brincalhonas, não pareciam sofrer com a pressão da maratona de competições que escolheram para o primeiro semestre do ano olímpico.
Naquela semana, recém tinham retornado de Miami, na viagem em que Beta foi acalmada pela promessa da mãe. Na Argentina, disputaram duas competições, o Sul-Americano e, logo depois, o Mundial. Foram 20 dias de viagem e o início de uma intensa rotina de campeonatos e períodos de treino no Rio de Janeiro, para adaptação à raia olímpica. Depois de um ano difícil em 2015, quando uma lesão de Ana as tirou do Mundial, a dupla chegou à conclusão, junto com Paulinho, de que precisava de ritmo de regata.
O Sul-Americano não foi bom. Sem tempo para se adaptar à raia de San Izidro, já que chegaram à Argentina na véspera da competição, terminaram em sexto lugar. Nada que incomodasse, já que o foco principal da viagem estava no Mundial.
Em Buenos Aires, Fernanda contou com a ajuda dos pais, que viajaram junto e ficaram com a neta no quarto do hotel. Deram à velejadora um descanso precioso. Muitas vezes, o corpo não aguenta as noites mal dormidas com a filha, algo que parece inconcebível para um atleta de alto rendimento. Ainda assim, Fernanda não abre mão de estar junto da pequena.
Com o descanso, o Mundial foi de bom desempenho. Fernanda e Ana estiveram sempre nas primeiras colocações durante a disputa, mas um erro na última regata as tirou do pódio – terminaram em quarto lugar.
SINTONIA DE PARCEIRAS
Se há qualquer problema de relacionamento entre as integrantes da equipe, elas escondem muito bem. Quando uma é perguntada sobre a outra, os elogios não são apenas protocolares, típicos de quem quer apenas manter as aparências.
– A Ana recuperou minha paixão por velejar. É uma pessoa doce, sensível. A convivência é muito fácil – assegura Fernanda.
A parceria começou em 2009. Fernanda recém conquistara o histórico bronze olímpico em Pequim ao lado da carioca Isabel Swan. Desfeita a dupla medalhista, passou a procurar uma nova proeira para o ciclo seguinte. Ana, então com 19 anos, velejava com a irmã. A convite de Paulinho, fez testes e aprovou. Quando fala da parceira, não esconde uma dose de idolatria:
– Eu recebi o convite e pensei: "Nossa, é a Fernanda Oliveira, medalhista olímpica!" – lembra, às gargalhadas.
Há uma evidente diferença na vivência de Fernanda, prestes a disputar sua quinta Olimpíada aos 35 anos, em relação a Ana, hoje com 26. Mas o ciclo passado, encerrado com o 6º lugar em Londres, calejou a jovem. A chegada de Beta também deu à Fernanda a certeza de que poderia entregar grandes responsabilidades à parceira.
Foi o caso no maior sufoco que passou com a filha. Em 2014, na Espanha, Beta caiu e cortou a testa. A quantidade de sangue que saía não deixava dúvidas: precisava de pontos.
Fernanda saiu à procura de atendimento médico ao lado de Eneko Fernández, o técnico espanhol que trabalha em parceria com Paulinho. Enquanto isso, Ana e o treinador brasileiro se encarregavam da delicada tarefa de preparar o barco para a regata. A mãe-atleta chegou junto com a pequena, já devidamente atendida, pouco antes do início da disputa. Sabia que Ana e Paulinho tinham preparado a embarcação com precisão. Foi o melhor dia da dupla naquele campeonato.
MEDALHAS E DECEPÇÃO INFANTIL NA ESPANHA
Passado o longo período em Buenos Aires e curtas passagens pelo Rio e Porto Alegre, o próximo desafio seria na Espanha. Palma de Mallorca era o destino do embarque em 16 de março para duas competições: o Troféu Princesa Sofia e o Campeonato Europeu.
Mais uma vez, o primeiro evento não era prioritário. Mesmo assim, o resultado foi muito bom. Ana e Fernanda garantiram o segundo lugar. A premiação, como é tradição no torneio, contaria com a presença da rainha Sofia.
– Eu disse pra Beta que a gente ia conhecer a rainha – conta Fernanda.
Ao ver Sofia vestida com roupas comuns, bem diferentes dos vestidos de gala que tinha em mente como obrigatórios para a realeza, a pequena não escondeu a decepção.
– Essa é a rainha!? – indagou, ainda no pódio.
Frustrações infantis à parte, a dupla seguiu firme no Europeu, que contou com a presença das principais rivais na luta por medalhas no Rio. A viagem de quase um mês à Espanha se encerrou com um terceiro lugar.
A DIFÍCIL ADAPTAÇÃO À RAIA OLÍMPICA
Entre um campeonato e outro, Fernanda e Ana aproveitaram para se adaptar ao local onde buscarão o sonho. Só no período que ZH acompanhou, foram cinco viagens ao Rio, totalizando 38 dias na sede olímpica.
A equipe alugou um apartamento no bairro da Urca – batizado pela Beta de "casinha da Úca". Diogo, marido de Fernanda, costumava ir aos finais de semana, o que facilitou a vida da velejadora.
– Quando digo que vou sair pra velejar, ela chora e reclama. Mas se o Diogo está junto, ela nem olha pra mim – conta.
A capital carioca transformou-se em um segundo lar, a exemplo do que fizeram outros velejadores do mundo. As difíceis condições na raia olímpica trouxeram uma legião estrangeira ao Rio durante o período de preparação. A poluição da Baía de Guanabara, alvo de tanta polêmica, não é a principal preocupação.
A movimentação das águas é instável no local que receberá os Jogos. Há um grande volume de água que passa por um local estreito – a baía – e esse movimento é inconstante e imprevisível. Em uma competição amistosa organizada por técnicos de vários países, Fernanda e Ana chegaram a ficar em último e em primeiro lugar nas duas regatas do mesmo dia. A inconstância no desempenho é percebida por todas as rivais da dupla, que também "moram" no Rio. As gaúchas estão entre as principais candidatas à medalha, mas sabem que estão à mercê das condições climáticas durante a competição. Por isso, buscam simular todas as situações possíveis para que não sejam pegas de surpresa.
NA FRANÇA, UMA PEQUENA CONVALESCENTE
Na noite de 21 de abril, Beta estava com febre. Poderia ser uma reação à vacina para a gripe que tomara dias antes. A preocupação de Fernanda se acentuava porque, em algumas horas, na manhã seguinte, embarcaria com a pequena para a França.
Lá, em Hyères, o desafio de uma das etapas da Copa do Mundo. A viagem foi marcada, no início, pelas dificuldades com a filha convalescente. A mãe, sempre próxima, também ficou doente.
Uma das noites foi especialmente difícil. Beta não conseguia dormir. Fernanda acordou várias vezes para acalmá-la. Estava sozinha com a filha em um bangalô, separada do restante da equipe:
– Eu prefiro. Assim não fico constrangida de estar atrapalhando o sono de ninguém.
Mesmo com o perrengue, Fernanda e Ana tiveram mais um ótimo resultado. A medalha de prata consolidou um semestre que a dupla considera como o melhor de todo o ciclo. Como planejado, chegavam à reta final da preparação na ponta dos cascos.
RETA FINAL
No dia 16 de junho, ZH encontrou a dupla pela última vez em uma academia de Porto Alegre. Em dois dias, embarcaram para mais um período no Rio, entre 18 e 30 de junho. Dessa vez, serviu como teste de logística para os Jogos, com toda a equipe brasileira de vela hospedada na Escola de Educação Física do Exército, também na Urca, que servirá como base durante a Olimpíada.
Questionadas sobre a ansiedade com a proximidade do evento, mostraram-se tranquilas. A preparação fora irretocável. A única decisão ainda pendente era sobre o barco a ser usado nos Jogos – Fernanda e Ana estavam em dúvida entre duas embarcações.
Sobraram, também, histórias sobre a pequena "mascote" que virou personagem do ciclo olímpico. Fernanda contou, por exemplo, que aquela conversa de Miami rendeu outros capítulos. Agora, a Beta sabe que trabalho é assunto muito sério. Por isso, pegou o costume de abrir o computador da mãe e bater nas teclas a esmo. Quando Fernanda lhe chama a atenção, responde:
– Agora não, mamãe. "Tô tabaiando".
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