A Arábia Saudita tem investido fortemente para modificar sua imagem e para tal tem usado o esporte para afastar a associação aos casos reiterados de desrespeito aos direitos humanos. As contratações de Cristiano Ronaldo, pelo Al-Nassr, e de Karim Benzema, pelo Al-Ittihad, são apenas um dos passos dados pelo governo saudita no futebol, mas outros esportes, como automobilismo, golfe, tênis e boxe, orbitam o projeto ambicioso do país para diversificar a economia, atrair investidores e turistas, chamado de Saudi Vision 2030.
No fim deste ano, a Arábia Saudita abrigará o Mundial de Clubes da Fifa, entre os dias 12 e 22 de dezembro. Al-Ittihad, campeão local, Urawa Red Diamonds, do Japão, León, do México, e Auckland City, da Nova Zelândia, já estão classificados. Restam as vagas da América do Sul, Europa e África.
Os anseios do país do Oriente Médio não param por aí. Candidatura para sediar a Copa do Mundo de 2030 está sobre a mesa, apesar de não ter sido oficializada. Uma das possibilidades era uma candidatura tripla, em conjunto com Egito e Grécia. No entanto, a comemoração dos 100 anos do primeiro Mundial deve adiar em quatro anos a ambição saudita, diante das forças das candidaturas sul-americana (Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile) e euro-africana (Espanha, Portugal e Marrocos).
O termômetro para a ampliação da estratégia teve como inspiração a contratação do astro Cristiano Ronaldo. Foi ele quem abriu as portas ao assinar um vínculo até 2025 com o Al-Nassr, em dezembro passado, em um acordo que prevê ganhos de quase 200 milhões de euros (R$ 1,09 bilhão) por ano, entre salário e acordos de publicidade para o português.
Para se ter uma ideia da influência do jogador, o clube ganhou em poucos meses uma projeção gigantesca nas redes sociais. No Instagram, houve um salto de 800 mil seguidores para 14,8 milhões após a presença confirmada do português no plantel. Segundo veículos locais, Benzema, por sua vez, receberá 100 milhões de euros (R$ 530 milhões) por ano no Al-Ittihad.
A liga saudita também ganhou notoriedade. Antes transmitida somente no Oriente Médio, a competição fechou um acordo com a IMG, que repassou os direitos de transmissão para mais de 36 emissoras espalhadas ao redor do mundo atingindo 15 países diferentes.
COMO O GOVERNO SAUDITA TEM INTERFERIDO NO FUTEBOL?
Monarquia absolutista islâmica, a Arábia Saudita é liderada por um rei, Salman bin Abdulaziz Al Saud, mas tem em seu filho, o príncipe herdeiro Mohammed Bin Salman, a principal figura do país e de seu Fundo Público de Investimentos (Public Investment Fund, PIF, em inglês).
Esse fundo soberano pagou 300 milhões de libras (R$ 1,9 bilhão) para adquirir o inglês Newcastle e tem em vista a aquisição de mais equipes. O país tem se dedicado a se aproximar do mundo do esporte. Além de sediar as Supercopas da Espanha e da Itália, passou a receber um Grande Prêmio de Fórmula 1, em Jeddah, e de Fórmula E, em Riad.
Com aporte vultoso no esporte, os sauditas estão sendo associados ao termo "sportswashing", que se refere ao objetivo de um país em limpar sua imagem e melhorar sua popularidade. O país nega, porém, tal aspiração e diz que seu foco é atender o interesse de seu povo pelo esporte. A Arábia Saudita é alvo de críticas internacionais pelas limitações aos direitos das mulheres, forma como julga os detentos no país, a guerra sangrenta no Iêmen e, mais recentemente, em 2019, pelo desparecimento e morte do jornalista Jamal Khashoggi após entrar consulado saudita em Istambul, na Turquia.
Nesta semana, o fundo estatal anunciou que irá assumir o controle das quatro principais equipes da Liga Saudita. Al-Hilal, Al-Nassr (ambos da capital Riad), Al-Ittihad e Al-Ahli (rivais da cidade de Jeddah), que acaba de regressar para a elite do campeonato local. O PIF será dono de 75% de cada um desses clubes, enquanto organizações sem fins lucrativos controlarão o percentual restante. A medida tem como princípio oficializar algo que já acontece há muito tempo, uma vez que o governo local, subsidiárias do PIF e empresários ligados ao regime saudita são financiadores desses clubes.
Movimentos semelhantes vão acontecer com outros times, segundo expressou o ministério do esporte saudita. De acordo com a Reuters, a petrolífera Aramco será proprietária do Al-Qadsiah, outra equipe da elite do futebol do país. Mas times de divisões inferiores também estão incluídos no plano. A meta é que até 2030 a liga saudita salte sua receita de 450 milhões de rials (cerca de R$ 600 milhões, na cotação atual) para 1,8 bilhão de rials (R$ 2,4 bilhões).
Para alcançar reflexos financeiros, há barreiras esportivas que a Arábia Saudita também quer superar. A liga saudita quer contar com 20 atletas da elite mundial em seu campeonato e pretende colocá-lo entre os 10 mais importantes do mundo do futebol. A ida de Lionel Messi para o Inter Miami frustrou parte sensível desse planejamento, mas o foco segue o mesmo e outros astros devem ser convencidos em breve a trocar a Europa por Al-Hilal e Al-Ahli. O argentino é garoto propaganda do turismo ao país. No mês de maio, inclusive, sua viagem com a família para a Arábia Saudita foi a gota dágua para estremecer as relações com o Paris Saint-Germain. O campeão do mundo foi suspenso, pediu desculpas, mas a saída do clube parisiense, que pertence ao fundo soberano do Catar, já estava traçada.
O zagueiro espanhol Sergio Ramos e o meio-campista croata Luka Modric também são ventilados no país, assim como o volante NGolo Kanté, campeão mundial pela França em 2018, que segue em um impasse diante de sua renovação com o Chelsea. Kanté tem propostas para transferir-se para Al-Ittihad ou para o Al-Nassr.
— Impacto e resultado de marketing são duas coisas não necessariamente conectadas. É evidente que uma contratação como a do Messi traria impacto ao mercado, possibilidades surgiriam e um nível de atenção alto se daria, sobretudo, no primeiro momento, ao clube que o fizesse. No longo prazo, não necessariamente. O Messi não é um cara muito interessado em marketing, tem uma imagem discreta, poucas relações comerciais e um estilo que torna difícil imaginá-lo realizar uma transação ancorada em compromissos extracampo —explica Bruno Maia, CEO da Feel the Match, startup que tem como objetivo a geração de negócios para o mundo dos esportes.
Especialista em negócios do esporte e sócio fundador da Let!sGoal, Armênio Neto crê que a estratégia pode servir de forma eficaz para a campanha dos árabes para o mundial de seleções, em 2030.
— Os valores e a relevância dos atletas envolvidos vão rapidamente mudar a liga de patamar em todos os sentidos. Esses movimentos fazem parte da pavimentação da estrada para uma candidatura vitoriosa para sediar uma Copa do Mundo. Mas se o objetivo de colocar a liga em posição de destaque é uma estratégia para 2030 ou com foco no longo prazo e perenidade, só o tempo e a disposição para os investimentos vão dizer — afirmou.
Nesta semana também, tomou conta do noticiário, especialmente nos Estados Unidos, a fusão das duas principais ligas de golfe: a tradicional PGA Tour e LIV Golf, controlada pela PIF e financiada pelo governo saudita. O circuito europeu (DP Tour) também faz parte do acordo, que prevê um grande aporte do fundo soberano do país asiático para fomentar a modalidade. As ligas alimentaram rivalidade desde a criação da LIV, que ofereceu melhores prêmios para jogadores de golfe e tirou bons nomes da PGA. Com o negócio, as arestas são aparadas, mas o alinhamento com o projeto saudita tem recebido críticas de várias partes.