Um estouro ecoa pelo galpão quando o corpo de Tyrus Kid se estatela no centro do ringue. Como se integrassem uma torcida abençoada por um gol, 40 pessoas comemoram. Descamisado, com o dorso estampado por tatuagens, o lutador fica estirado no tablado. Ele tem cabelo preso por coque, veste bermudão preto e calça tênis Vans. Mede por volta de 1m60cm. Antes, Tyrus correu de uma extremidade a outra do ringue, pegando impulso em uma cadeira para saltar e aplicar um golpe aéreo. Mas Dano Cerebral o interceptou.
Dano está sem camisa, com tatuagens pelo corpo, barba proeminente, cabeça raspada e kilt azul. Mais cedo, ele subiu ao ringue com lenço shemagh e óculos de solda. Uma estética que remete ao cyberpunk. Também parece ser um lutador que saiu do filme Mad Max: Além da Cúpula do Trovão (1985). Dano agarrou Tyrus no ar, encaixando o corpo em seus ombros. Subiu na cadeira e aplicou um golpe chamado “death valley driver”. No caso, arremessou o oponente no tablado, ao mesmo tempo em que se jogava de costas ao chão. Ouviu-se um estrondo. Boom! O público, em êxtase, bradou seu nome: “Daaaano!”.
É apenas mais um sábado no Ringue, bar da zona norte de Porto Alegre. Trata-se de um galpão com fachada preta, que em seu interior contém uma copa logo à esquerda da porta principal, além de um ringue de luta livre ao fundo, com dezenas de cadeiras enfileiradas. Desde abril, o Ringue abriga eventos de luta livre realizados pela Evolution Wrestling Force (EWF), produtora gaúcha que tem um cartel com mais de 20 lutadores. Geralmente, os encontros são realizados aos sábados, entre as 17h e 21h, contendo lutas com duração que variam de cinco até 30 minutos. Ali também há aulas de luta livre em dias de semana (segunda e quarta) e nas manhãs de sábado.
A EWF foi criada em 2013, em Sapucaia do Sul, por Matheus Frutuoso. Aos 36 anos, ele é formado em Educação Física, atuando com musculação, natação e hidroginástica. Frutuoso acompanha luta livre desde criança, quando assistia ao programa Super Catch (aquele com o comentarista Bob Léo, que ostentava mullets loiros), na extinta Rede Manchete. No começo dos anos 2010, ele assistiu a uma reportagem sobre a modalidade no Brasil e se motivou.
Frutuoso lembra que passava por um período de transição em sua vida. Havia se separado e estava para receber um montante, que imaginava investir em um carro ou uma casa. Decidiu ir por um caminho alternativo: montar um ringue. Comprou o material e as ferramentas, além de recrutar seu irmão serralheiro, Lucas. O ringue foi elaborado nos fundos da casa da mãe deles, em Sapucaia, no melhor estilo D.I.Y (do it yourself ou “faça você mesmo”).
– Montamos um projeto assistindo aos vídeos de montagem de ringues da WWE (World Wrestling Entertainment, empresa americana de luta livre profissional) – recorda Frutuoso, que, como lutador, atende por Kaoz. – Passam umas timelapses deles montando todo o evento. Então, íamos pausando o vídeo e observando toda a estrutura. Quantos ferros tinham, como eram encaixados.
Frutuoso relata que, no dia da estreia do ringue, estava a equipe reunida, com os integrantes emocionados ao verem a estrutura montada. Subiram para testá-la. Após um pulo no meio do tablado, a frustração: o centro do ringue foi todo para baixo.
– Tínhamos errado a estrutura central de absorção de impacto. Todo mundo ficou destroçado. Desmontamos, refizemos o projeto e, na outra semana, estávamos treinando no ringue – conta.
Então, a EWF começou a ir atrás de outros eventos de artes marciais para realizar no espaço e atrair um público para a luta livre. Até que a equipe passou a realizar programação própria. As sedes foram se alternando nos últimos anos, e a EWF se fixou em Porto Alegre, no bar Ringue. Frutuoso pararia de se envolver na administração da equipe, e hoje a EWF é gerenciada pelos próprios lutadores.
Mocinhos, vilões e calhordas
A reportagem de GZH esteve presente no show EWF Just Fight X, no dia 8 de outubro. Naquela noite, foram nove lutas e três disputas de cinturões. Cada lutador e embate era anunciado por Jorge Jaguar, o mestre de cerimônia. Com cabelo comprido e vestindo calça e camisa de oncinha, sua função é comandar o show. Descontraído, ele distribui tiradas bem-humoradas entre as lutas e interage com a plateia. Muitas vezes, provoca o público. Constantemente puxa a brasa para os vilões, aplicando psicologia reversa para atiçar a plateia.
– A luta livre é um show ao vivo, tem que ter participação da galera. Às vezes a plateia não está acostumada, ela se trava. Será que eu xingo esse cara? Tem que xingar, tem que gritar. É necessário esse bate e volta – justifica Jaguar, que se chama Jorge Sá Brito e tem 34 anos.
Na plateia heterogênea – 40 pessoas de idades variadas, a maioria jovens adultos –, estava a porto-alegrense Fernanda Silveira, 25 anos. Ela passou acompanhar a luta livre neste ano, após o aniversário de seu irmão celebrado no Ringue. Desde então, não parou mais de ir ao galpão, atraída pelo que chama despretensiosamente de “violência descabida”. É uma frequentadora participativa: xinga e enaltece os lutadores, conforme a preferência. Fernanda, que trabalha com recrutamento e seleção de recursos humanos, resume:
– Passo a semana inteira com a cabeça aqui, pensando em vir ao Ringue.
Outro frequentador do local é o operador de empilhadeiras Michel Patrick Pinheiro, 30 anos, de Canoas. Ele acompanha o universo de luta livre há bastante tempo e sonhava em ver um evento desses por perto. Para Pinheiro, a qualidade das lutas da EWF é muito alta, de nível profissional. Mas não são só os golpes que o atraem para a modalidade. Há também a narrativa:
– Gosto das execuções das lutas e dos golpes, mas também das historinhas que eles criam, envolvendo rivalidade e traições. Tem que ter uma história boa para prender o público.
Vale frisar que a luta livre não é só um combate simulado no ringue – aliás, os lutadores combinam verbalmente os movimentos antes de cada embate. É como se fosse um teatro, com trama por trás. A luta pode ser, portanto, apenas um jeito para as histórias acontecerem.
Na atual narrativa da EWF, há um novo gerente chamado Gustavo Cassali, que comprou o comando da organização. Quem carrega o cinturão principal, intitulado Evolution, é Ryan, o Patrão, que assumiu o posto de campeão recentemente. Essas histórias costumam contar com lutadores de posições bem maniqueístas, como mocinhos e vilões. Por exemplo, Jaguar procura sempre puxar para o lado do desafiante. É um alívio cômico dentro da narrativa.
– Ele é um falcatrua, um calhorda, um golpista e um manipulador. Tudo de bom – explica. – Eu puxo para o ridículo, estou sempre gritando e apanhando.
Além de interpretar Jaguar e ser produtor do evento, Jorge também é fotógrafo e tem seu show em paralelo, Mighty Pro Wrestling – que conta com alguns lutadores da EWF. Ele é um dos coproprietários do Ringue. Segundo Jorge, o galpão consegue só se manter, no momento, mas há planos de expandir sua atuação a médio prazo.
Por que subir ao ringue
Nenhum lutador recebe cachê para subir ao ringue. Frutuoso diz que até gostaria que a organização tivesse retorno, mas o evento apenas arrecada o suficiente para se pagar. Todos os lutadores ali têm profissões paralelas à luta livre, que é encarada como um hobby.
Um exemplo é Jackson Andrade, 27 anos, que também é um dos gerentes da EWF. Morador de Alvorada, ele é advogado. Quando sobe ao ringue, se transforma em Ryan, o Patrão. Ele protagonizou a principal luta daquela noite.
– Isso aqui é como se fosse jogar futebol, o que também pratico. Mas o que mais gosto é lutar, me divertir no ringue. Ter essa experiência na frente das pessoas – diz Andrade.
Barbudo e sem camisa, Ryan sobe ao ringue e, instantaneamente, é vaiado. Ele é hostilizado pela plateia e xinga de volta. Para defender o cinturão Evolution, estava previsto para o Patrão encarar um adversário surpresa. Quem o desafiou foi Shadow, um lutador com estética gótica: roupa preta e maquiagem branca com detalhes escuros. O embate entre os dois se estendeu por mais de 20 minutos, com várias ações se desenrolando para fora do ringue – o que é usual na luta livre. Shadow chegou a ser arremessado na plateia (que foi avisada para se afastar antes). Apesar da torcida contra, Ryan levou a melhor. Foi a noite do vilão, para satisfação do ator que o interpretou.
– Ryan quer mandar em tudo. É um cara egocêntrico e egoísta. Ele não liga para o que os outros vão pensar. Quer mostrar que tem poder, tanto financeiramente como no ringue – avalia Andrade sobre seu próprio personagem. – É algo que me atrai muito: poder dar golpes, levantar um cinturão e ouvir a plateia tanto te xingando, pois sou o vilão. Para o vilão, isso é uma salva de palmas.
Após a vitória e as vaias, ouve-se uma música marcada pela percussão, remetendo à África. Muito aplaudido, Oba Khan aparece e desafia Ryan. Cria-se um gancho para o Just Fight XI, previsto para novembro.
Oba Khan é Fabiano Barreto, 40 anos. Morador da Restinga, ele trabalha como educador social. Empurrado pelo público, além de se beneficiar de sua altura e envergadura, Oba Khan superou tranquilamente Raymon. Houve um momento que o embate foi realizado em meio a plateia, com cada lutador sentado em uma cadeira, golpeando o outro com o cotovelo sistematicamente.
Professor de kickboxing e capoeira, Barreto é o lutador mais velho por ali, embora só tenha começado a treinar em 2015. Para construir Oba Kahn, ele buscou inspiração na ancestralidade africana.
– Ele tem muita influência dos guerreiros africanos, seja na vestimenta ou nos golpes – afirma o lutador negro. – A missão dele é trazer outros negros para a luta livre, já que no nosso Estado há tão poucos lutadores assim.
Para Barreto, a luta livre é próxima de um filme de super-heróis, só que com a ação transcorrendo a um palmo de distância da plateia. Como ele já fez teatro, quando sobe ao ringue, executa um exercício para se transportar para dentro do personagem. O que facilita, segundo o lutador, são os artifícios da cultura negra de Oba Khan, que estão imbuídos nele.
– Quando estou no ringue, consigo mostrar que o Oba Khan é um personagem diferente do Fabiano Barreto, mas a energia dos dois é muito parecida. Me sinto pertencendo àquele momento. Estou me expressando – diz.
Barreto também é um dos gerentes da EWF, assim como Bruno Müller, 28 anos. Este vem de Tramandaí, no Litoral Norte, para subir ao ringue e se transformar em Bruno Astro. O empresário começou a praticar luta livre nos Estados Unidos, quando fazia graduação sanduíche de Educação Física em Erie, Pensilvânia. Mais tarde, chegou a realizar um internato da modalidade na Alemanha, durante um mês.
Apesar da simpatia da plateia e dos golpes aéreos e precisos, Astro foi superado naquela noite por Adrian James. Ele é um mocinho, também conhecido como Baby Face. De cabeça raspada, vestia shorts e botas brancas. Segundo Müller, Astro carrega muito de sua trajetória e de seu dia a dia:
– O que tento transmitir com Astro é a bravura, essa vontade de vencer e de conquistar os seus objetivos. Sempre tive o sonho de trabalhar com esporte, de ser atleta. A maior motivação que tenho para fazer isso é que um dia penso em ter um filho e, quando ele perguntar para mim “papai, qual era o teu sonho?”, quero responder que fiz o máximo que pude para alcançá-lo.
Outro sonhador ali é Marcelo Dias, 20 anos, morador do bairro Mario Quintana. Durante a semana, Dias trabalha como atendente na ouvidoria do site da prefeitura, mas, ao subir no ringue vira rei. Ele é King Dias.
Naquele noite, King Dias participou de uma luta tripla, contra Arthur Donnar e Fábula. Era cada um por si: vencia quem fosse o último a ficar em pé. Porém, o personagem de Marcelo é mais escorregadio e traiçoeiro. Magricela e com trejeitos que lembram Tião Macalé, ele sobe ao ringue com uma coroa na cabeça. Durante o combate, se esquivava do confronto direto com os outros oponentes. Atacava quando o cenário era favorável. Uma hora tentou fugir da luta, alcançando até a porta do galpão, onde foi capturado e carregado pelas orelhas por Donnar e Fábula.
– Do backstage até as escadas, é o Marcelo. Tocou a música e apagou a luz, é o King Dias. Eu não domino mais o meu corpo. Quem manda é ele – afirma.
Uma mulher na luta livre
King Dias é aliado de Peter Sigma, que naquela noite derrotou Tommy Andrews na primeira disputa pelo cinturão Underground – destinado a lutadores emergentes. Durante o embate, ele tentava auxiliar o parceiro com suas intervenções.
Peter Sigma é criação do estudante Pedro de Morais, 20 anos. Vestindo regata e bermuda preta, o personagem se proclama “MDT”, abreviação para Melhor de Todos. Porém, é um vilão, no momento: quando percebe que o duelo se torna complicado, tenta vencer por vias escusas.
Morais tem autismo leve. Ao subir no ringue, sente que representa todas as pessoas desse espectro:
– Às vezes a pessoa não sabe que é autista leve. Às vezes tem medo, acha que vai ser maltratado. Mas a gente é forte. Nós sabemos coisas que ninguém mais vai saber.
Ele começou a praticar luta livre como forma de fazer exercício. Só que a atividade física transcendeu: foi no ringue que Morais aprendeu a socializar melhor e a conquistar seu primeiro círculo de amigos.
– É indescritível estar no ringue. Diria que é uma sensação de se sentir outra pessoa. Eu preciso ser outra pessoa. Ao mesmo tempo em que preciso ser eu na hora de ajudar um colega – sublinha MDT.
Os meninos me tratam superbem. O ambiente é acolhedor. Ao mesmo tempo, é assustador, porque sinto que tenho a missão de inspirar outras meninas a virem assistir, torcer e praticar.
JÚLIA VEIGA, A JULIE BROOKS
Júlia Veiga, 25 anos, moradora de Alvorada, também busca ser outra pessoa no Ringue. Ela trabalha como professora de educação infantil. Na luta livre, se transforma em Julie Brooks.
Júlia luta há três anos. Desde cedo tentava reproduzir em casa os golpes a que assistia nos filmes. Até que, inspirada pela exibição da WWE no SBT, resolveu treinar. É, no momento, a única mulher da EWF. Segundo a lutadora, há um ambiente de apoio a ela na equipe:
– Os meninos me tratam superbem. O ambiente é acolhedor. Ao mesmo tempo, é assustador, porque sinto que tenho a missão de inspirar outras meninas a virem assistir, torcer e praticar.
Júlia ressalta que sua família ainda se assusta ao vê-la com hematomas. No começo, seus pais se opuseram. Sua mãe, especialmente, tentava dissuadi-la: “Não vai hoje, por que vai pagar para os outros te baterem?”. Hoje os pais compreendem melhor a afinidade da filha com a luta livre. Inclusive, a mãe já a ajudou a produzir seu uniforme.
Vestindo short preto de couro e cropped azul, com bota preta cano alto, ela deixava solto seu cabelo preto comprido. Naquela noite, Julie e seu parceiro, Big Snow, conquistaram o cinturão de duplas. Os dois se revezaram no ringue para enfrentar JL Wiz, cujo parceiro havia saído da EWF. Julie atacava na mesma proporção que se jogava ao tablado ao receber um golpe. É em momentos assim que ela se sente um a heroína.
– Posso fugir um pouco da minha realidade, sair um pouco de quem eu sou no dia a dia e ser quem eu sempre quis ser – reflete Júlia.
Gigantes e baixos, magros e musculosos, homens e mulheres. Professores, advogados, atendentes. Há uma diversidade entre os lutadores. Há até quem encontrou o amor nesse ambiente, como é o caso de Jonathan dos Santos Coimbra, o Dano Cerebral. Ele namora Kim Star, interpretado por Leonardo Medeiros.
– No nosso ringue, não se julga ninguém em relação a cor, orientação sexual ou religião. Na EWF existem pessoas de tudo que é jeito – explica Jonathan, 31 anos. – A luta livre tem que ser inclusiva. Todo mundo tem problema, todo mundo está lutando por algo e quer ser feliz. A luta livre é um lugar onde podemos lutar por algo em comum e saber que vão te aceitar da forma que você for.
Morador de São Leopoldo, Jonathan trabalha como recepcionista em um hotel quando não é Dano. Fã de luta livre desde a adolescência, ele começou a praticar a modalidade em 2008. Jonathan e seus amigos passaram a juntar colchões, pneus e madeira para improvisar um ringue na praça do bairro. Esses encontros duraram dois anos. Até que em 2015, ele entrou na EWF. Então, surgiu Dano Cerebral.
– É um niilista esquizofrênico. Tudo o que ele faz permeia a ideia de desafiar a morte. Sempre levantando e lutando mais através da dor. Busca elevação a partir da dor física. Que a dor é algo passageiro e que é possível aprender com ela. E ficar mais forte – filosofa.
As lutas de Dano costumam ter mais elementos hardcore – estilo que favorece o uso de objetos como armas. Ele descreve essa vertente como “violência controlada”, em que, explica, os lutadores testam seus limites, mas com técnica e cuidado para que não se machuquem. Dessa forma, a luta livre é uma arte para Jonathan, um meio para ser imortalizado. E também uma oportunidade para assumir outra persona.
– Se alguém se lembrar de mim daqui a anos, que Dano Cerebral fazia isso ou aquilo, terá valido a pena. Durante a semana, há “n” problemas, e a luta livre traz essa paz para mim no fim de semana. Essa sensação de fazer algo a mais. De estar construindo algo. Dano Cerebral é o que eu não posso ser no dia a dia.