Quem vê talvez não entenda o que se passa no dohyo (equivalente ao tatame do judô). Isso porque o estereótipo do sumô, ligado à tradicional versão japonesa do esporte, não condiz com suas reproduções internacionais, o que inclui o Brasil. É difícil, por aqui, vislumbrar um gongo ou aqueles telhados decorados que lembram um templo xintoísta sobre o dohyo.
Muito menos lutadores de tamanho descomunal, eternizados no imaginário construído por filmes orientais e desenhos animados. O sumô, originado no Japão por volta de 660 a.C, tem duas vertentes. A profissional envolve elementos místico-religiosos da crença xintoísta e conta com cerca de 850 atletas no seu país de origem.
Entre outras peculiaridades, apresenta o figurino clássico, no qual o lutador fica com grande parte dos glúteos exposta. Nessa vertente, praticada apenas em terras nipônicas, os atletas têm status semidivino e podem faturar R$ 100 mil mensais. Já no sumô amador, vertente praticada no restante do mundo, parte dos elementos religiosos sai de cena, os lutadores podem usar vestimentas maiores e têm ganhos bem menores.
A modalidade chegou ao Brasil no começo do século 20, por meio de imigrantes japoneses. A primeira competição em solo nacional ocorreu no interior de São Paulo, em 1914. Mais de cem anos depois, segue longe dos holofotes no país.
No Rio Grande do Sul, segundo o artigo Sumô: Esporte de Japonês em Ivoti/RS, publicado no âmbito da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) por Josiana Ledur, Alice Beatriz Assmann e Janice Mazo, a prática emergiu em meados de 1960, difundindo-se principalmente nas colônias japonesas localizadas em Ivoti (Vale do Sinos) e Itati (Litoral Norte).
Algumas localidades, como Nova Petrópolis, São Leopoldo, Esteio e Glorinha, tem centros destinados à prática. Conforme a Confederação Brasileira de Sumô (CBS), estima-se que existam 500 lutadores no país. A maioria localizada em São Paulo e no Rio Grande do Sul.
Parte deles se reunirá neste fim de semana em Pereira Barreto. O município localizado a 150 quilômetros da capital paulista abrigará o 60º Campeonato Brasileiro de Sumô, na Praia Pôr do Sol. O evento é considerado o ápice da modalidade no país, contando com cerca de 200 atletas em dois dias de provas.
Dessas duas centenas, 17 treinam em Gravataí, na sede campestre da Associação de Assistência Nipo Brasileira do Sul, também conhecida como Enkyosul. Há outras diferenças entre as práticas profissionais e amadoras. No Japão, somente homens podem lutar.
Nos demais países, mulheres são bem-vindas. E o espaço está aberto para aqueles que têm corpos menos robustos: há diversas categorias de peso distribuídas em diferentes faixas etárias, de “dentinho de leite” até adulto.
Hollywood não é aqui
O glamour visto em filmes que retratam o sumô passa longe dos dois dohyos existentes em solo gaúcho — um em Gravataí e outro em Itati. O piso é um compensado de argila, basicamente terra batida, com uma área de luta circular delimitada por um objeto que lembra as “cobras” de pano usadas para segurar portas de madeira.
Na Enkyosul, tão difícil quanto colocar o oponente para fora da área de luta é chegar para treinar. O caminho por si só é um obstáculo. São cerca de 40 quilômetros desde o centro de Porto Alegre, passando pela RS-118 e por uma estrada de chão batido. Além de empurrar os adversários, pode ser preciso fazer o mesmo com os carros, que, com as chuvas recentes, precisam vencer a lama até chegar ao local. Foi a primeira tarefa de Antenor Yuso Sato, treinador da seleção gaúcha, no dia em que ZH acompanhou uma sessão de treinos.
Em volta do dohyo, não há paredes, apenas um telhado. No inverno, é preciso encarar o frio, o vento e a chuva. Não há iluminação artificial, o que inviabiliza a prática noturna. Apesar das intempéries climáticas, todo sábado cerca de 10 lutadores “batem o ponto” por lá.
— A estrutura é suficiente, pelo nosso padrão, pela nossa exigência, mas a gente podia ter algo melhor. Estamos há 12 anos sem trazer um título do Brasileiro — afirma Sato.
Aos 52 anos, filho de japoneses, ele pratica sumô desde criança. Seu pai sempre salientava a necessidade de ter o hábito de praticar esporte. Na infância, conheceu duas modalidades populares no Japão: o sumô e o beisebol. Optou por seguir na primeira e passou a tradição para os seus filhos.
— Meu pai trouxe o esporte a sua maneira, inserido em um contexto em que estava acostumado. Eu fui tomando gosto, treinando, trabalhando. Os resultados positivos foram vindo, fui melhorando, participei de Sul-Americanos e Mundiais. Fiz a mesma coisa com os meus filhos, meio que obriguei-os a entrar no sumô — conta, rindo.
Ele chegou a ficar em terceiro lugar na categoria 85 quilos no Mundial de 1998, realizado em Tóquio. Agora, usa a experiência e a sabedoria na modalidade para treinar atletas mais jovens. É sempre um dos primeiros a chegar aos treinamentos.
Repete o mesmo “ritual” todos os finais de semana. Primeiro, tira as pedras que fazem peso em cima da lona, utilizada para proteger o dohyo. Depois, joga um pouco de areia e passa o ancinho para espalhar, deixando a área de combate o mais plana possível. Por fim, molha o piso com um regador para deixar a mistura de areia com barro mais firme.
O amadorismo da modalidade e as condições longe das ideais fazem com que os atletas tenham de dividir a vida entre o sumô e uma atividade profissional. É o caso de dois atletas gaúchos que disputaram campeonatos mundiais, mas não conseguem se sustentar apenas da arte marcial japonesa. Adiecson Bobsin, 31 anos, trabalha com logística quando não está envolvido com o sumô. Para viajar a Taiwan em 2018, recorreu a uma “vaquinha” e a uma rifa e arrecadou os R$ 13 mil necessários para bancar os custos.
Adiecson é uma das apostas gaúchas para trazer medalha ao Estado neste fim de semana. Natural de Itati, ele conheceu o sumô aos 13 anos, em 2004, através de amigos com raízes japonesas.
— Comecei a gostar, fui indo, indo e peguei gosto pelo esporte. Comecei a participar dos campeonatos, fui evoluindo, mas sempre conciliando outros afazeres, estudando e ajudando meu pai na agricultura — conta Jack, como é conhecido pelos colegas de sumô.
Desde 2009, Adiecson buscava uma vaga para disputar o Mundial, mas foi apenas em 2018 que chegou à seleção brasileira, no peso livre, chamado de absoluto. Naquele mesmo ano, disputou o maior torneio da modalidade, em Taiwan.
— Foi uma experiência diferente. Primeira vez em um evento daquele porte, né? Acaba batendo o nervosismo, então acabei não indo muito bem no campeonato. Fui eliminado meio cedo, mas foi um aprendizado — relata o atleta.
No ano seguinte, voltou ao Mundial, dessa vez no Japão. Com mais bagagem e menos nervosismo, ficou a apenas uma fase de disputar uma medalha. Perdeu para um atleta do Cazaquistão. Em 2020, antes de a pandemia chegar, ele tinha boas chances de representar o Brasil na Polônia, no que seria seu terceiro mundial, mas a pandemia impediu a realização da competição. Atualmente, ele percorre cerca de 130 quilômetros para participar dos treinamentos semanais em Gravataí.
— É bem difícil conciliar tudo, tem que abrir mão de muita coisa, abrir mão da família, de outros lazeres, ou tu tá no trabalho ou no treinamento. É noite, final de semana. Ainda bem que tenho apoio no trabalho quando tem campeonato fora do Estado — conta, salientando a importância da família e da esposa Elen nessa divisão de prioridades.
O apoio da mulher resulta em maior foco para ser um atleta melhor, ele diz. Adiecson foi um dos primeiros a chegar em Gravataí no último sábado, dia 16, para o treinamento que antecedeu o campeonato deste final de semana. Pouco tempo depois de chegar, de carro, desceu do veículo já trajado para a atividade, com as ataduras nas mãos e nos braços e com uma toalha, no ombro, com os escritos “Sumô Adiecson”.
A união do sumô com a família resultou, inclusive, na criação de um projeto da modalidade em Itati. "Sumô É Vida, Sumô É Educação" contava com o apoio da prefeitura do município e atendia inúmeras crianças na faixa entre sete e 16 anos. No entanto, também acabou interrompido pela pandemia.
Uma nova tradição
Ao lado de Gustavo Rocha, 43 anos, outro do grupo dos experientes, Adiecson é quem passa dicas e orienta os mais jovens, como Mateus Lopes Amaral, de 16 anos, nos treinos. Rocha é filho de produtor rural e empregado em empresa de transporte e logística. Chegou a desistir do sumô em 2003. Mas retornou ao esporte em 2015, depois de um convite de Yuso Sato.
— Cheguei à modalidade com 12 anos, quando fui convidado por um vizinho meu para participar de alguns treinos. Fiquei até os 20, participando de campeonatos regionais e ganhando algumas coisas. Tive de deixar o sumô no começo dos anos 2000 porque a empresa em que eu treinava me impedia de participar. Apesar disso, segui praticando judô e jiu jitsu — conta o morador de Gravataí.
A volta, que ele define como a melhor coisa da vida de atleta, marcou um novo momento para Rocha. A partir daí, junto à seleção gaúcha, conseguiu o terceiro lugar na categoria adulto no Brasileiro. Em 2018, foi campeão sul-americano e, no ano seguinte, participou da seletiva para o Mundial de Osaka, no Japão, classificando-se para a disputa do maior torneio da modalidade — apesar de o resultado não ter sido o esperado por ele.
Além do trabalho e dos treinamentos, Rocha ainda concilia outras atividades físicas na sua rotina. Ele treina jiu jitsu, faz exercícios aeróbicos e, além disso, controla o peso — atualmente está na categoria dos médios (85 a 100 quilos). A luta contra a balança é algo recorrente entre os praticantes do sumô.
Como variam de categoria, eles precisam às vezes ganhar peso, e em outros momentos, perder. Quando têm de engordar, costumam comer de três em três horas, focando em carboidratos e nas chamadas gorduras boas. Caso queiram emagrecer, a base da alimentação é praticamente a mesma, mas em quantidades menores, com mais atividades cardiorrespiratórias, mantendo a ingestão de proteínas para não perder massa magra.
No Japão, entre os profissionais, a dieta é rígida, mas com o objetivo sempre de ganhar peso. Na maioria das vezes, não há café da manhã. Em compensação, o almoço é caprichado, com um chankonabe, uma espécie de ensopado com peixes, carnes e verduras. É indicado que logo em seguida os atletas tirem sesta, de modo que o organismo facilite o ganho de peso.
Mesmo com todas as adversidades e com os obstáculos que os lutadores de sumô precisam passar no Brasil, Rocha quer transmitir a paixão para o filho de seis anos. Theo já participou de dois torneios, frequenta os treinamentos semanais com o pai e aprende alguns exercícios.
— Estou plantando a sementinha — diz, aos risos.
A tradição no Japão vai se tornando tradição no Brasil. Aos poucos, de pai para filho, o sumô ganha ainda mais adeptos e quem sabe possa ser ainda mais reconhecido. Apesar de não ser um esporte olímpico (ainda que tenha recebido um forte lobby para as Olimpíadas de Tóquio, no ano passado), os brasileiros têm fama de bons lutadores.
Na edição deste ano do World Games, o campeonato para os esportes não olímpicos, o Brasil conquistou medalha de bronze com Rui Júnior, na categoria peso pesado (até 130 quilos). Ele é um dos maiores nomes brasileiros da modalidade: antes da conquista no World Games, já havia sido vice-campeão mundial em 2019.
O SUMÔ
O objetivo da disputa neste esporte é forçar o oponente a sair do dohyo (área circular de combate) ou fazê-lo tocar no solo com qualquer parte do corpo que não seja a sola dos pés. A luta geralmente termina em segundos. Há 70 técnicas de ataque no sumô. Todas envolvem empurrões ou levantar o oponente para fora do ringue, o que pode ser feito, por exemplo, segurando-o pelo cinturão ou com uma rasteira.