Marcos Evangelista Morais foi um privilegiado do futebol. Trata-se de um dos 21 homens que levantaram a Copa do Mundo. É possível deixá-lo ainda mais exclusivo: é um dos nove brasileiros que atuaram e venceram duas finais de Mundial. É possível deixá-lo ainda mais exclusivo: é o único profissional a ter estado em campo em três decisões. É possível deixá-lo ainda mais exclusivo: com 142 partidas, é o atleta que mais vezes vestiu a camisa da Seleção.
Cafu foi quase único. Mas quanto trabalho para chegar a esse nível de exclusividade. Não só trabalho, como resiliência. Para conquistar tudo isso, foi rejeitado em nove peneiras, rodou São Paulo, viu seus irmãos abrirem mão do sonho de viver da bola e treinou mais do que os outros para ter chance no restrito mundo do esporte.
Com mais de 20 anos de carreira, 16 deles a serviço da Seleção, títulos por São Paulo, Palmeiras, Roma e Milan, uma rápida e curiosa passagem pelo Juventude nos tempos de Parmalat, o ex-lateral-direito agora está em uma nova missão. Tem rodado o país ao lado da escritora Mariah Morais para apresentar o livro "A Saga Cafu" (editado pela The Calone Company). A obra deveria ser sua biografia, mas, segundo os autores, havia tanto para contar antes mesmo de ser profissional que decidiram antecipar o lançamento e lançar uma espécie de "capítulo inicial", que conta a vida do jogador desde seu nascimento até a assinatura de seu primeiro contato.
Nessas missões pelo Brasil, Cafu esteve no RS para dar uma palestra. Na visita, passou pelo prédio do Grupo RBS e concedeu entrevistas aos repórteres Eduardo Gabardo, José Alberto Andrade e Rafael Diverio, além de participar do "Sala de Redação". A seguir, alguns trechos desta conversa com o capitão do Penta de 2002.
Como é voltar ao RS, onde você chegou a ser atleta do Juventude em 1995?
Foi uma passagem maravilhosa, de pouco tempo, um mês só, mas a acolhida foi sensacional. A comida é excelente, todos os dias me levavam para jantar em lugar diferente, falei que precisava jogar, que só comer não ia dar certo.
E aqui temos também um dos poucos capitães campeões do mundo, Dunga.
Dunga é um grande amigo, um parceiro. Sempre falo para ele, somos privilegiados, moramos num país de 220 milhões de brasileiros, muitos desses milhões apaixonados por futebol, e tivemos a honra de levantar a Copa do Mundo, com Carlos Alberto, Mauro e Bellini. É um orgulho isso.
Em abril, você concedeu uma entrevista lá no Catar falando sobre a expectativa da Copa e já tinha uma esperança na Seleção. Essa esperança aumentou nos últimos tempos?
A expectativa acaba aumentando, é normal. Vamos nos aproximando da Copa, a Seleção se classificou com seis jogos de antecedência, está jogando bem, colhendo bons resultados. Isso gera a esperança de trazer o Hexa. Vejo uma Seleção mais experiente, ciente do que precisa fazer. Temos jogadores suficientes para dar suporte ao nosso craque. É um time que, se estiver bem posicionada em campo, pode ser campeã.
Temos jogadores suficientes para dar suporte ao nosso craque. É um time que, se estiver bem posicionada em campo, pode ser campeã.
CAFU
Capitão do Penta
A Seleção vem bem, mesmo sem ter um lateral garantido, como foi você. Tanto que Tite estuda usar Militão improvisado.
Vai usar. Certeza absoluta.
O que acha disso?
É uma opção boa.
Mas por que há uma carência nessa posição?
Não sei porque essa carência na lateral direita. Tivemos o Dani Alves, que ficou muito tempo depois de eu sair. E agora temos o Danilo e, possivelmente, o Militão na lateral mesmo. Mas não consigo dizer poque faltam laterais.
É diferente de seu tempo, que tinha fartura, como Jorginho, Zé Maria, Cicinho, Belletti...
Fazemos comparações com os antigos laterais da Seleção, e isso é errado. Jorginho ficou anos na Seleção, extremamente vencedor. Fiquei 16 anos na Seleção e pude ganhar todos os títulos, recordes batidos. Qualquer um que entra na lateral já tem responsabilidade de substituir laterais que marcaram história.
Falta formação?
A carência na lateral direita não é só na Seleção. Nos clubes também vemos isso. Estão adaptando meias e laterais porque não fazem trabalhos com laterais. Deveriam fazer treinos específicos. Silvio Berlusconi (ex-dono do Milan) deu essa sugestão, para que eu e o Serginho fôssemos treinadores de laterais. Já via essa carência mais de 15 anos atrás. Precisamos pegar os meninos e trabalhar como lateral, senão a carência vai durar ainda mais.
A carência na lateral direita não é só na Seleção. Nos clubes também vemos isso. Estão adaptando meias e laterais porque não fazem trabalhos com laterais. Deveriam fazer treinos específicos
CAFU
Capitão do Penta
Você também começou improvisado. Era meia, atacante. Como foi parar na lateral?
Foi Telê (Santana, então técnico do São Paulo) que me passou para a lateral. Zé Teodoro se machucou, teve uma lesão gravíssima no tornozelo, e eu tinha essa facilidade de atacar e defender. Tinha noção defensiva e nem precisava pedir para atacar, piscava eu já estava na frente. Telê me pediu para fazer uns treinos na lateral até o Zé se recuperar e disse que iria contratar um reforço. Depois de dois trabalhos, cancelou a contratação e me fixou na lateral. Aumentou a carga e me deixou lá. Também me adaptei e treinei muito para poder me transformar em um bom lateral.
Como foi o trabalho para isso?
Chegava meia hora antes e saía meia hora depois, ia junto com os goleiros, para treinar domínio, passe. Força física eu tinha, condicionamento também. Só precisava manter. O resto, com o tempo, fui me adaptando para me encaixar nas bases da posição. Mas não queria ser um lateral normal: tinha noção de atacante, de zagueiro, de meia.
Não é mais assim?
Hoje em dia não se vê lateral passando sem bola, dificilmente vê alguém pedindo a bola na linha de fundo sem marcação. Quase ninguém corta por trás do zagueiro para receber a bola dentro da área e fazer gol. Por quê? Me desculpa, mas é porque são laterais preguiçosos. Eu e Roberto Carlos não tínhamos medo disso. Joguei com alguns gênios. Pirlo, por exemplo, levantava o dedo e a gente já sabia que era para correr para a área, nas costas da defesa. De vez em quando, metia para a linha de fundo, para cruzar. Isso é do lateral.
Hoje em dia não se vê lateral passando sem bola, dificilmente vê alguém pedindo a bola na linha de fundo sem marcação. Quase ninguém corta por trás do zagueiro. Por quê? Me desculpa, mas é porque são laterais preguiçosos.
CAFU
Capitão do Penta
E agora?
Hoje ninguém quer se sacrificar. Ficamos nesse futebol preguiçoso, que ninguém quer correr. Todo mundo só quer jogar com a bola. As funções do lateral são: marcar, cobrir o meio-campo e a zaga, ir à linha de fundo e cruzar. Mas para isso precisa estar muito bem fisicamente.
Que trabalhão dá isso.
É isso mesmo. Ninguém quer fazer. O (Carlo) Ancelotti (seu técnico no Milan, atualmente no Real Madrid) dizia: "Se a bola passar entre o zagueiro e o lateral, a culpa é do lateral". Porque é dele a cobertura. É trabalhoso jogar na lateral, se você quer ser um profissional. Tem de ter todas essas características. Hoje em dia, o que mais vemos é "pega e toca, pega e toca". Ninguém mais tenta um drible na linha de fundo, um chapéu, uma caneta. Parece que está diminuindo, estão tirando a responsabilidade deles.
Fazer trabalhos específicos ajudaria?
Exatamente. No Milan, fazíamos trabalhos específicos em cada função, lateral para lateral, zagueiro para zagueiro, atacante para atacante. Tínhamos tanta moral no Milan que pedimos para colocar uma pista de areia do lado do campo. Toda volta. Eles corriam no campo, eu corria na areia. Eles cruzavam no campo, eu cruzava na areia. Às vezes com pesos de cinco quilos em cada perna, para reforçar.
Quem é o melhor lateral direito do mundo?
Alexander-Arnold, do Liverpool.
Voltando à Copa do Mundo. O Brasil chega em 2022 em um ambiente mais tranquilo, depois da classificação antecipada e de bons jogos. Você viveu várias situações diferentes em Copas, da desconfiança à euforia. Isso influencia ou o Brasil é um dos favoritos mesmo?
Vivi todas essas situações. Desde a tranquilidade de 2006 até a desconfiança de 2002. A Seleção Brasileira é uma das favoritas, sim, mesmo se não é unânime. Se fosse três anos atrás, até diria que não é.
Por quê?
Porque só tínhamos um jogador para resolver os problemas e fazer coisas diferentes, chamando a responsabilidade sozinho, Neymar. Hoje, não. Temos jogadores do mesmo nível do Neymar, talvez com outra capacidade, mas podendo dividir as responsabilidades no campo. Falo de Paquetá, Vini Jr, Raphinha, Antony, Rodrygo. E também temos uma dupla de zaga perfeita para dar suporte ao time. Os três goleiros nossos são os melhores do mundo. Temos boas opções para a lateral esquerda, talvez não tenhamos uma certeza na lateral direita. Mas temos uma Seleção apta e pronta para ganhar a Copa do Mundo.
E a questão do ambiente?
O ambiente é tranquilo e isso requer cautela porque já tivemos assim e não ganhamos, como foi 1982 e 1986. Seleções que foram para a Copa com pinta de campeão e não conseguiram. Não existe uma ciência exata que diga se chegar ao Mundial tranquilo ou com turbulência é melhor. Em 1994 fomos desacreditados, porque seria a Era Dunga, dos dinossauros, que diziam não ser boa para a Seleção. E conquistamos com esses jogadores experientes. Em 1998, não tivemos problema nenhum. Em 2002, saímos do Brasil sem ninguém acreditar em nós. Em 2006 era tudo tranquilo, com o "Quarteto Fantástico" e que ia dar show e sabíamos que não iria funcionar.
Sabiam?
Sim, até pela própria experiência de três Copas do Mundo, sabendo como o Parreira pensa, imaginei que não daria certo. Precisávamos reforçar o meio-campo e deixar dois no ataque. Se perguntar se o ambiente atual é tranquilo, respondo que é, está tudo sereno, vejo esses meninos com mais responsabilidade do que tinham nas Copas anteriores, até porque para muitos é a última chance. Eles sabem que para ser consagrados, mesmo, mundialmente, é importante ser campeão do mundo. Pergunte para o Zico, ele vai responder: "Troco todos os títulos pelo da Copa". É bom ter o apoio da torcida, confiante. Conseguimos reverter o quadro com os bons resultados da Seleção.
Não há grandes polêmicas no horizonte, o time parece pronto.
Tem poucas dúvidas na convocação, Tite já montou uma base. No máximo, entra um ou outro, como o Pedro. Aliás, um grande centroavante, joga e faz gol fácil. É um dos melhores que tivemos nos últimos anos. Fora isso, Tite sabe o que quer, com quem pode contar, tem os jogadores de confiança e que classificaram a Seleção com tanta antecedências.
No seu tempo, a Seleção parecia ter mais identificação com o povo. Até por jogar mais aqui no Brasil. Concorda?
Antigamente, existia praticamente um protocolo para sair do Brasil: clube, Seleção e Europa. O jogador ia bem no time dele, era convocado e daí contratado por um time de fora. Hoje, está invertido: é Europa, Seleção e clube. Só joga aqui depois. É um absurdo. Isso impede de criar uma identidade com o torcedor brasileiro e afasta da Seleção. Antes, ficava no clube quatro, cinco anos, emendava com a Seleção e criava um bom ambiente com torcida, jornalista, família. Antes descia do ônibus e já dava entrevista. Isso não existe mais.
Hoje, está invertido: é Europa, Seleção e clube. Só joga aqui depois. É um absurdo. Isso impede de criar uma identidade com o torcedor brasileiro e afasta da Seleção. Antes, ficava no clube quatro, cinco anos, emendava com a Seleção e criava um bom ambiente com torcida, jornalista, família.
CAFU
Capitão do Penta
Infelizmente (risos).
Infelizmente mesmo. Cansei de ficar no saguão do hotel batendo papo com os repórteres, tomando um cafezinho ou uma cervejinha depois dos jogos e ninguém se importava. Hoje isso é impossível. Quando encontro, ainda falo: "Bons tempos, né?". Tinha essa identidade legal, inclusive com a imprensa. E daí também com a torcida. Passava pelos torcedores, batia na mão, parava, dava autógrafo. Não víamos a hora de jogar no Brasil para voltar e ver o povo. No Nordeste, era uma festa, uma alegria. Víamos neles a satisfação de estar acompanhando os ídolos.
A Seleção está quase toda na Europa.
Hoje, nossos craques estão fora. Pede para um menino escalar um time brasileiro, vai ter dificuldade. Mas para escalar o Manchester, ele diz de ponta cabeça. Pergunto: por que não acontece com mais frequência? Por que jogadores não vão aos programas? Até para fomentar o futebol aqui. Mas isso não é culpa dos atletas. Eles só cumprem. É quem organiza que precisa pensar nisso. A CBF tem de fazer a Seleção jogar mais aqui para aumentar a relação com as nossas crianças.
Você sucedeu Dunga como capitão na Copa. Foram atletas com perfis diferentes. Como se escolhe e o que tem de fazer um capitão?
Capitão era decidido pelo tempo de casa, pelo número de jogos, pela competência, pela capacidade, pela facilidade em falar com os jogadores. O capitão não serve só para escolher campo ou bola. É a referência. É um elo entre jogador e treinador, entre técnico e imprensa, entre comissão e família. Nós absorvíamos isso como capitão e levávamos para o campo. Cada capitão tem sua maneira de trabalhar. Eu dava dura, mas não queria expor os colegas. Até porque quando erramos, já sabemos que erramos. Então precisa de apoio, ajuda. Capitão é exemplo, ser o primeiro a chegar, o último a sair, puxa fila no treino, quem começa e termina o almoço, quem identifica os problemas dos demais jogadores. É um cara de confiança, que faz o grupo girar em torno do que o treinador quer. Como capitão, tentava fazê-los entender o quanto era bom ser campeão. O quanto isso nos consagrava. Mas para isso precisávamos tirar a vaidade.
Capitão é exemplo, ser o primeiro a chegar, o último a sair, puxa fila no treino, quem começa e termina o almoço, quem identifica os problemas dos demais jogadores.
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Capitão do Penta
Quem enxerga como possível capitão da atual Seleção?
O capitão precisa ser o líder, que fala e todos ouvem. E ouvem mesmo, não é para ficar no telefone ou olhando para o céu. Hoje, vejo com perfil para essa Seleção Casemiro e Marquinhos como bons líderes. Casemiro é um menino que fala e todos escutam, já vi nas entrevistas, tem personalidade forte. Marquinhos é um líder que dá dura quando precisa, mas não expõe ninguém em campo.
Tite já anunciou que vai sair da Seleção depois da Copa. Quem poderia substituí-lo?
Posso citar três? Rogério Ceni, Diniz e Renato Portaluppi. Não necessariamente nessa ordem.
Algum estrangeiro?
Se tivesse de escolher um estrangeiro, seria o Abel Ferreira.