Jogadores reclamando da torcida, trabalho contestado e vaias. Calma, essa não é uma análise da Seleção Brasileira que acaba de ficar com o vice da Copa América e seus desdobramentos. Muito antes de Thiago Silva e Neymar bradarem contra brasileiros que comemoram derrotas, outras atuações do Brasil em casa já geravam apupos e gritos. Há 30 anos, Porto Alegre viveu cenas de extrema pressão em cima das estrelas que vestiam a camisa canarinho. E de glória para os "adversários", que remavam na luta do futebol longe dos holofotes. Em julho de 1991, a CBF trouxe para o Rio Grande do Sul a preparação para a Copa América do Chile, uma das decisões mais equivocadas de todos os tempos.
Para usar uma expressão preferida do técnico da Seleção nessa época, é preciso contextualizar. Paulo Roberto Falcão havia assumido o cargo no lugar de Sebastião Lazaroni após o fracasso retumbante na Copa do Mundo do ano anterior. A escolha do ídolo colorado se deu por seu estilo: craque, elegante, prestigiado e estudioso, Falcão tinha se destacado também como comentarista no Mundial, realizado na Itália, sua segunda pátria. Era a grife que a CBF precisava para mudar a imagem.
O novo técnico entrava com a responsabilidade de rejuvenescer o grupo, achar caras novas e dar um toque mais brasileiro ao time. Era uma fase intermediária da invasão sul-americana na Europa, com alguns craques longe (como Taffarel, Branco e Careca), mas outros tantos ainda trabalhando no país (como Renato, Neto, Cafu e Raí).
Falcão escolheu para sua comissão técnica dois velhos conhecidos: Otacílio Gonçalves da Silva de auxiliar e Gilberto Tim na preparação física. Na fase final de treinamentos, vieram a Porto Alegre, até para uma ambientação com as condições climáticas que teriam no Chile. Agendaram seis! jogos-treinos para três dias, todos no Beira-Rio. E já no primeiro dia, o plano de se aproximar com a torcida foi por água abaixo. Na preliminar, a equipe reserva até goleou o São José por 4 a 0, mas no jogo de fundo, o São Luiz, de Ijuí, segurou a Seleção. O 0 a 0 terminou em vaias estrondosas, xingamentos. E em respostas históricas dos atletas.
Taffarel:
— Ficaram me chamando de frangueiro, disseram para ter cuidado com o Caniggia. Não aceito essa conversa de que torceram para o São Luiz porque era o mais fraco contra o mais forte. Quando se trata de Brasil, tem de ser sempre a favor.
Branco:
— Não me importo. Todo final de semana, jogo para 50 mil pessoas na Itália. Se chego lá e digo o que aconteceu aqui, acham que é piada. Mas até entendo, eles (CBF) cobraram ingresso para pagar nossa despesa. Foi jogo político.
Renato:
— Não ligo. Afinal, com ou sem vaia, eles (torcedores) já me deram seis apartamentos aqui no Rio Grande do Sul. Fora outras mordomias. Quanto mais eles gritam contra mim, mais eu ganho.
Não ligo. Afinal, com ou sem vaia, eles (torcedores) já me deram seis apartamentos aqui no Rio Grande do Sul. Fora outras mordomias. Quanto mais eles gritam contra mim, mais eu ganho.
RENATO PORTALUPPI
Ex-atacante da Seleção
O Brasil saiu de Porto Alegre e ficou com o vice no Chile. Na Capital, teve os seguintes resultados: 4x0 contra o São José, 0x0 contra o São Luiz, 3x1 contra os juniores do Inter, 6x0 contra o Aimoré, 0x0 contra o Rio Grande e 4x0 contra o Lajeadense.
Para a Seleção, foram jogos-treinos e eventualmente alguma indisposição com a torcida. Mas o que importava era a Copa América. E para quem enfrentou? A seguir, veja histórias de quem estava do outro lado, com a missão de jogar contra muitos dos craques que conquistaram o Tetra três anos depois.
Brasil 0x0 São Luiz — 2/7/1991
O mais simbólico dos jogos-treino mudou a preparação da Seleção. O presidente da FGF, Emídio Perondi, ijuiense, intermediou para que a equipe de sua cidade fizesse um teste para os comandados de Falcão. Mas verdade seja dita, o São Luiz de Cassiá Carpes era a sensação do Interior. Aquele time foi vice-campeão da Copa Governador do Estado, perdendo para o Inter, e eliminando o Grêmio, e contava com vários jogadores que se destacaram, como Newmar, Polaco, Caçula, Edmundo, Negrini, entre outros.
A partida foi equilibrada, com o São Luiz, obviamente, mantendo uma postura defensiva (eufemismo para retranca). Jogadores da Seleção se irritaram, e o ambiente esquentou. Branco e Renato eram os mais incomodados, inclusive agressivos.
— Fui no árbitro, Luís Cunha Martins, e disse: "Pô, nos disseram que era para aliviar, mas são eles que estão batendo. Vai deixar assim?". O jogo-treino virou Copa do Mundo _ recorda o lateral Caçula, que completa: — Essa foto (sobre a imagem do jogo)? Acha que era fácil marcar o Renato? Ele era um tanque, se não abre o olho, atropela.
Depois daquele jogo e da marcação em cima do badalado ponta, que na época estava no Botafogo, conseguiu um contrato com o Athletico-PR. Ele e Negrini, que depois emendou carreira no Atlético-MG.
Renato, aliás, foi o pivô da vaia da torcida. Em um Beira-Rio com mais colorados do que gremistas, a pressão recaiu toda sobre o maior ídolo tricolor. Mas nem Taffarel foi perdoado. O fato de o São Luiz ser alvirrubro como o dono do estádio também colaborou. Depois desse constrangimento todo, a CBF decidiu que os demais jogos teriam portões fechados. E tudo isso foi questionado a Falcão.
Cercado por repórteres na casamata após a partida, o treinador da Seleção ia respondendo os questionamentos. Até chegar a vez de João Paiva, jornalista de Ijuí. E ele fez a única pergunta que interessava à sua comunidade:
— Falcão, o que achou do São Luiz?
Brasil (reservas) 4x0 São José — 2/7/1991
O primeiro dia de jogos-treino da Seleção começou com o time B do Brasil, como eram chamados os reservas, diante do São José. Mas antes de falar sobre o confronto em si, é preciso esclarecer: a equipe da Capital não tinha, na época, o peso atual. Era um clube de bairro, "de um futebol quase romântico", para usar as palavras do atacante Renato Camarão. Ele mesmo era estudante de Educação Física e jogava bola no outro turno. O convite ao Zeca se deu por causa da bela campanha fazia na Segundona Gaúcha.
Outro ponto importante: o time de Falcão estava desfalcado. Bebeto, irritado com a reserva, pediu dispensa. Assim, meninos do Inter completaram o grupo brasileiro.
Um deles, inclusive, ajudou a Seleção a golear por 4 a 0. O centroavante Marcelo marcou dois gols (Raí e Mazinho completaram o placar), mas sobre ele falaremos mais à frente. O foco, aqui, está no São José do técnico Tarso Martini. E em Camarão.
— O primeiro tempo acabou 0 a 0. Quase fizemos um gol, quando Ricardinho roubou a bola do goleiro Ronaldo, que teve que fazer uma falta. Ali começou o burburinho da torcida, que ensaiou uma torcida para nós — recorda o ex-jogador, atual educador físico.
Depois, quando a bola começou a entrar, coube ao São José um final digno. Para Camarão, porém, rendeu. Observado no jogo, ele foi contratado pelo Flamengo, de Varginha, para disputar o Campeonato Mineiro. De lá, voltou ao futsal e transferiu-se para a Itália junto à esposa, a ex-jogadora Duda, que também foi se profissionalizar no futebol na Europa.
Brasil (reservas) 3x1 Juniores do Inter — 3/7/1991
Com o grupo colorado envolvido na disputa da Copa Governador do Estado, coube ao time júnior o desafio de enfrentar a Seleção na abertura do segundo dia de jogos-treino. E ninguém estava mais ansioso para isso do que Marcelo. Centroavante da base colorada, ele tinha sido o destaque na noite anterior jogando pela Seleção diante do São José e estava escalado para enfrentar seus companheiros.
— Nem dormi de noite. Me chamaram na concentração e disseram que ia jogar com a Seleção. Daí, na preleção, Falcão nos disse para fazer um "arroz com feijão". Arroz com feijão, nada. Eu queria era brilhar — diverte-se Marcelo.
Pois na hora do jogo, quando se preparava para entrar em campo, Marcelo viu sua chance ir embora. Silvio, centroavante do Bragantino, havia sido convocado às pressas e chegou a tempo para o jogo. Marcelo viu do banco o colega de profissão marcar dois gols no 3 a 1.
Apesar de ter se destacado no jogo-treino, Marcelo não ficou depois que estourou a idade de júnior. Voltou ao Igrejinha de sua terra natal e conseguiu um contrato no Ujpest, da Hungria. Voltou ao Brasil, passou pelo Novo Hamburgo e encerrou a carreira aos 23 anos. Chegou a abrir uma escolinha em Parobé, mas precisou dar uma pausa com a pandemia.
— Disse aos meus alunos que se fosse hoje, teria ficado rico naquele jogo. Mas o Inter tinha muita qualidade, tinha contratado Lima, Gerson. Na minha categoria tinha Christian. Era outra realidade do futebol — encerra Marcelo.
Brasil 6x0 Aimoré — 3/7/1991
Zico, o Arthur Antunes Coimbra, estava no Japão em 1991. Mas no Aimoré, havia um Zico retomando a carreira. Milton Antonio Nunes Niemet já tinha rodado pelo Brasil, foi vice-campeão brasileiro de 1986 com o Guarani, e recomeçava sua história no futebol gaúcho em São Lepoldo, depois de iniciar a vida esportiva no Caxias. Era o craque do time que vivia um bom momento. Mas encontrou a Seleção menos pressionada pelas arquibancadas vazias. Renato, mais solto, fez dois gols, Branco, Raí, Careca e João Paulo completaram os 6 a 0.
— O placar foi o de menos. Eram todos craques, então enfrentá-los era uma emoção. E para a carreira foi ótimo — relembra Zico.
Depois daquele jogo, foi procurado por empresários e conseguiu emprego no México. Nunca mais voltou. Jogou por Puebla, Chivas e, depois do fim da vida de atleta, seguiu no futebol. Atualmente, treina o sub-17 do Pachuca.
Brasil (reservas) 0x0 Rio Grande — 4/7/1991
O clube de futebol mais antigo do país em atividade disputou o penúltimo jogo-treino da Seleção. Mas não foi apenas pelo simbolismo de ser o Vovô. A amizade entre o então presidente Eduardo Lawson com o preparador físico Gilberto Tim ajudou no convite.
A partida terminou empatada em 0 a 0, e o Brasil teve um gol anulado por impedimento (que fez alguns jornalistas confundirem o resultado). Silvio, que buscava espaço, foi o destaque de um time que claramente jogou se preservando, ainda mais que Mazinho recém havia sofrido uma lesão muscular.
— O que mais me marcou a qualidade dos jogadores. E a humildade do Raí e do Taffarel, que ficaram conversando conosco depois do jogo. Eles viviam em outra realidade e não nos subestimaram — recorda o volante Mário, peça-chave do time do técnico Marco Antônio Centeno, atualmente auxiliar técnico do Nova Mutum-MT.
Brasil 4x0 Lajeadense — 4/7/1991
O derradeiro amistoso da Seleção foi contra um time que viria a ser a sensação do Gauchão dali alguns meses. O Lajeadense de Gilberto Machado foi ao Beira-Rio e fez uma partida bem equilibrada, a despeito do que o placar indica.
No primeiro tempo, um gol cedo de Careca deveria ter deixado as coisas mais fáceis. Mas o Lajeadense, indignado porque entendeu que havia impedimento na jogada, cresceu.
— Lembro que o Vandeco (lateral) cruzou da direita, antecipei a defesa e chutei de primeira. Taffarel buscou no pé da trave — recorda Gelson Conte, ex-centroavante e, coincidentemente, atual técnico do Lajeadense.
Os demais gols, de Branco e Renato (2) saíram na parte final da partida, quando o time de Lajeado havia mudado bastante gente. Apesar da goleada, Gelson entende que a partida deu força ao time:
— Não existia rede social. Basicamente, só sabiam de nós se aparecesse na TV, no jornal ou no rádio. Então imagina ser com a Seleção. Nossa moral foi lá em cima, fizemos uma boa pré-temporada e voamos no Gauchão.
O Lajeadense terminou em quarto no Estadual. Gelson foi o goleador, com 15 gols. No final daquele ano, acabou contratado pelo Inter.