A Terceira Divisão gaúcha, que começa neste final de semana, é pródiga em histórias de superação. Atletas e treinadores que enfrentaram ou ainda enfrentam dificuldades e deram a volta por cima recheiam as equipes participantes e comovem. Mas na edição 2021, ao menos antes de a bola rolar, o grande retorno, o maior dos personagens não tem CPF. Tem CNPJ. Após 17 anos afastado do profissionalismo, o Football Club Riograndense, de Rio Grande, está de volta ao futebol.
Até 1999, o Guri Teimoso, carinhosamente chamado por ser o mais jovem entre os rio-grandinos e dar trabalho aos co-irmãos, era frequentemente citado no noticiário esportivo. Era o último time do Interior a ter sido campeão gaúcho. Mas veio o Juventude (e depois Caxias e Novo Hamburgo) e terminou com essa marca. Não teve relação direta, é claro, mas até isso pesou para o desaparecimento do clube. Foram sucessivos erros, direções atrapalhadas, crises financeiras que se arrastaram e culminaram com o afastamento da FGF em 2005.
Em Rio Grande, dizia-se que tudo havia começado em 1985. Naquele ano, o Riograndense inaugurou sua nova casa, o Torquato Pontes, apelidado de Colosso do Trevo. O nome dava indícios do que se tratava: um estádio para 15 mil pessoas localizado no cruzamento das rodovias BR-392 e ERS-734. Hoje, essa região faz parte do centro da cidade, mas há 35 anos, era afastada. O clube havia deixado sua área, que dava de fundos com o estádio do Sport Club Rio Grande (ambos a poucos metros do Aldo Dapuzzo, do São Paulo), e se transferido para a estrada — assim como o vizinho mais próximo, hoje os estádios são separados pela rodovia.
Foram 20 anos tentando manter a história até ter se tornado insustentável. O Riograndense fechou as portas e apenas existiu. Disputava alguns Citadinos. E a cada participação, chamava a atenção pela quantidade de torcedores que levava às arquibancadas. Conseguia dinheiro graças ao aluguel de áreas do estádio para empresas e para uma antena de telecomunicação. E usava a verba para pagar dívidas. Ao final do ano passado, zerou as trabalhistas. Enquanto isso, recuperaram o estádio.
O Torquato Pontes, que havia sido tema de reportagem de GZH em razão do abandono, está totalmente recuperado. Onde havia mato, bichos e lixo, hoje são vestiários de luxo para o Interior. As arquibancadas foram lavadas e pintadas, as telas, refeitas.
Torcedores apaixonados e organizados mantiveram o controle das finanças e deram o salto seguinte. Com orçamento reduzido, é claro, montaram time e comissão técnica para voltar a jogar torneios oficiais. Venceram as burocracias para a refiliação na FGF e se inscreveram para a Terceirona.
— Um dia, voltando do Cassino, falei para meu filho, de 15 anos: "Vamos lá que vou te mostrar o estádio do time do pai. Não vou morrer sem ver esse time voltar". Chegamos aqui e estava tudo destruído. Ele me respondeu: "Ih, pai, acho que não tem mais jeito". Foi a frase que eu precisava. Então juntamos alguns torcedores, criamos um grupo no WhatsApp. Éramos três, quatro, fomos aumentando, nos empolgando. Hoje somos 230 — conta o presidente do clube, Paulo André Neves.
Para a disputa da Terceirona, o Riograndense realizou testes semanais para covid em todos os atletas e comissão técnica desde o começo dos trabalhos. Providenciou alimentação, transporte e até emprego e estudo para alguns dos guris. Chega pronto para reviver seus melhores momentos — e eles são muitos.
História no futebol gaúcho
O Riograndense é o folclore do futebol vestindo vermelho e branco (com detalhes em amarelo). Usaram esse uniforme craques como Scala, zagueiro que fez parte das Feras do Saldanha, na preparação para a Copa de 1970, Neca (campeão brasileiro pelo São Paulo, jogador da Seleção), Arlen (ponta direita do Santos de Pelé) e Chinesinho (camisa 10 que o Palmeiras vendeu para a Itália e valeu o dinheiro para reconstruir o estádio). E nenhum deles é o maior ídolo da história. Esse posto é de Antonio Azambuja Nunes, o Nico. Goleador do Gauchão de 1967, ele é o símbolo do clube. Tanto no talento, de ser um dos grandes artilheiros do futebol gaúcho, quanto nas "coisas que só acontecem com o Riograndense". Por exemplo: no ano em que ficou no topo da lista, o prêmio ao vencedor era um relógio de pulso. No ano seguinte, Alcindo, do Grêmio, ganhou um carro ao ser o artilheiro, inclusive marcando menos gols. A maior partida da história do clube não foi a do título estadual, em 1939, mas a virada cinematográfica sobre o Gaúcho na decisão da segunda divisão de 1965, quando perdeu o primeiro jogo para o Gaúcho por 3 a 2 em Passo Fundo e ganhou a volta por 5 a 3, de virada, depois de estar perdendo por 3 a 1 no segundo tempo. E de Nico marcar quatro gols no tempo normal e quatro nos pênaltis (na época o mesmo jogador executava as cobranças).
É um time com essas histórias — que quase parecem estórias — que está de volta ao convívio. Para o bem do futebol gaúcho.