Passar um dia com a Seleção Brasileira feminina é viver um misto de sentimentos, confirmar alguns achismos e derrubar estereótipos. Mas, acima de tudo, perceber como é colossal o abismo de diferença em relação ao assédio do torcedor brasileiro com as melhores jogadoras brasileiras da atualidade, entre elas a Rainha Marta. Ao lado da fotógrafa Isadora Neumann, tive a oportunidade de mergulhar no universo da nata do futebol brasileiro feminino no último domingo (17), em Viamão, com a permissão exclusiva ao Grupo RBS da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) — e os testes RT-PCRs negativos para o coronavírus em dia.
A delegação está reclusa no Ecoresort Vila Ventura desde o dia 5 de janeiro para um período de treinamento, que se encerra nesta quarta-feira (20).
— Tem sido muito tranquilo, fico na recepção a madrugada toda e vou embora na hora do café. Pego elas saindo do quarto, elas ficam aqui na recepção também. Mas tem sido muito tranquilo em relação aos outros hóspedes do hotel também — revela Paulo Medeiros, recepcionista do local, logo na chegada da reportagem às 7h.
E, realmente. As atletas, em sua maioria, espalharam-se pelo saguão minutos depois e nenhum tipo de pedido de foto ou autógrafo foi visto — naquele dia pela manhã, em especial, a fibra ótica do hotel foi danificada devido a um temporal e as atletas procuravam sinal 4G na recepção. Ao se dirigirem para o café, o mesmo cenário.
Cristiane foi exemplo claro. A camisa 9, uma das melhores atacantes da história da Seleção, saiu do quarto, caminhou ao lado de um grande grupo de hóspedes e nenhum deles sequer olhou para o lado. Clima de calmaria que foi corroborada por Cristiane Costa e Lincoln Cruz, seguranças da CBF.
— Elas são maravilhosas, muito tranquilas. Não dão trabalho nenhum (risos). Ficamos por perto lembrando da máscara e, se alguém pede foto, cuidamos para que também esteja de máscara — afirma Lincoln, que ainda faz parte da equipe de segurança da Seleção de Tite:
— Com certeza, com a masculina, temos que ficar mais atentos. O assédio é bem maior.
Na hora do café, marcado para as 8h, em um lugar reservado no restaurante do hotel, já se pôde observar algumas características peculiares das atletas. Abaixo, confira algumas impressões deste dia com a Seleção.
Grupos formados
É importante ressaltar que não foram observadas "panelinhas". Muito pelo contrário, existe um espírito de coleguismo muito grande entre as atletas. Mas não há como negar que grupinhos são formados: as novatas, as mais velhas, as reservadas, as goleiras, etc.
A zagueira colorada Bruna Benites, por exemplo, é do tipo que cai da cama, acorda cedo e é a primeira a chegar ao treino. Reservada e de poucas palavras, é conhecida nos bastidores como uma das mais dedicadas do grupo.
No entanto, o primeiro estereótipo que derrubei foi o da atacante Cristiane. Sorridente dentro de campo, em entrevistas e nas redes sociais, a jogadora do Santos tem o semblante fechado. Chega ao treino e às refeições sozinha e mostra muita concentração.
— Ela é uma pessoa maravilhosa. Não nega foto, autógrafo. Quando conversam com ela, sorri sempre. Mas quem conhece ela de fora pode confundir o semblante sério dela — diz a gaúcha Duda Luizelli, coordenadora das seleções femininas da CBF.
No único trabalho de campo do domingo, marcado para as 10h, de bola parada, Cristiane mal havia chegado e já trocava informações com as demais atacantes sobre estratégias e jogadas. O sueco Anders Johansson, um dos auxiliares de Pia Sundhage, tem na atleta uma referência e chamou a camisa 9 reservadamente para uma conversa. Logo em seguida, ela participava e ajudava na orientação das jogadoras na atividade.
Aqui, faço uma ressalva: antes do trabalho, Cristiane parou para atender aos fãs que a esperavam no CT do Vila Ventura. Tirou fotos e deu autógrafos, tudo com um sorriso no rosto. Cristiane apenas leva seu trabalho muito à sério.
Marta, a rainha dos cachorros
Seis vezes eleita a melhor jogadora do mundo, Marta, 34 anos, faz parte do grupo das "mais velhas". Dividindo quarto com a lateral-direita do Inter, Fabi Simões, as duas são inseparáveis e inquietas. Não param um minuto. A atacante alagoana é a grande personagem desta Seleção. Por onde passa, deixa uma amostra de sua humildade e humanidade em evidência.
Ela cumprimenta a todos — todos mesmo. Chega ao treino cantando, dançando e brincando. Quando desembarcamos no Vila Ventura, o recepcionista Paulo Medeiros já havia avisado:
— Marta tem ficado atrás de um cachorro que ela viu com a coleira um pouco apertada. Quer ajudar ele. Pergunta para todo mundo sobre ele.
Dito e feito. Ela mal havia saído para o café da manhã, ao lado de Fabi, quando já indagava os funcionários sobre o bichano — que, segundo eles, pertence a um sítio vizinho.
— Cadê o cachorro? Tiraram a coleira dele? — perguntava Marta, preocupada.
Passou o dia à procura do cachorro "grande e preto", como ela própria descrevia. Mas não esquecia dos demais. O hotel adotou dois vira-latas, a Guria e o Moleque. Ambos, obviamente, se beneficiaram da bondade da melhor jogadora brasileira. A cada refeição, a camisa 10 saía pelo resort com comida nas mãos para dar aos cachorros. Fabi Simões, claro, sempre junto.
Em certo momento, ao passar pelo lago, a lateral colorada pediu um pouco de comida para usar como isca na vara de pesca. No entanto, Marta foi categórica:
— Não. Essa é a comida dos cachorros, Fabiana! Depois nós pescamos.
E lá foi Marta. Entrou em uma trilha, passou por um lago, subiu um barranco e, finalmente, encontrou a dupla canina no estacionamento. Brincou, fez carinho e os alimentou. Rainha do futebol e dos cachorros. É ou não é a melhor pessoa?
Pia, a estrategista
Relatos de funcionários do Vila Ventura, a treinadora sueca é presença diária na piscina do hotel logo às 7h. No entanto, naquele domingo em específico, a treinadora preferiu fazer uma caminhada com sua comissão técnica. Ao todo, foram duas longas voltas no resort, sempre com um sorriso que lhe é característico no rosto.
Após, banho, café e o início do que seria um dia de muitas reuniões. No saguão mesmo, Pia conversou com as zagueiras Rafaelle e Bruna Benites, individualmente. No treino, a sueca se dividia entre sorrisos e olhares sérios no trabalho que foi comandado por seus auxiliares. De óculos escuros estilo anos 2000 e em silêncio, Pia se fez presente em todos os lugares do campo.
De tarde, após o almoço, mais reuniões no saguão. Desta vez, com sua comissão técnica. Os suecos Lilie Persson e Anders Johansson vieram ao Brasil especialmente para esse treinamento de campo. Em diversos momentos, ao longo da tarde, dados estatísticos e planilhas foram discutidas e debatidas pelo seu grupo.
No final da tarde, hora de conversar com todas as atletas. As 23 convocadas foram dividas em dois grupos, o primeiro encontro foi às 18h e o segundo às 20h.
— A Pia é isso. Ela é 24 horas por dia pensando, planejando, matutando. Como amanhã (segunda-feira) tem jogos-treino, ela dedica o dia à reuniões com a comissão e às atletas — destaca Duda Luizelli.
Tímida, tranquila e muito bem humorada, Pia já é considerada uma brasileira nos bastidores. Já está adaptada ao país e até sente frio, mas ainda não arrisca o português — língua que tem estudado nas horas vagas.
O inglês é um entrave?
Além de Pia, seus auxiliares suecos também só se comunicam em inglês. O que dificulta um pouquinho o andamento das atividades. Anders comandou um treinamento de bola parada no ataque e a zagueira Rafaelle, que jogou durante quatro anos nos Estados Unidos, foi sua tradutora oficial. Ele falava e gesticulava, ela traduzia para as atletas que não são fluentes no idioma.
O mesmo ocorreu no outro lado do campo. Lilie comandava um trabalho de bola parada com a defesa e coube a auxiliar brasileira Bia Vaz ser a sua tradutora.
— Não acho que atrapalhe. Como não é uma data Fifa, a maioria das atletas aqui jogam no Brasil e não são fluentes. Nas datas Fifa, mais de 70% do grupo convocado é de fora e a comunicação flui sem problemas — garante Duda.
Não importa se é em inglês ou em português, na Granja Comary ou no Vila Ventura. A tranquilidade que a Seleção Brasileira encontrou no refúgio em Viamão foi importante para que o time de Pia Sundhage inicie o ano olímpico com o pé direito e, quem sabe, suba ao pódio depois de 13 anos.