Marta é especial. E suas ideias também. Por mais que a humildade da alagoana, eleita seis vezes a melhor do mundo, mascare tal importância em um primeiro momento, basta ela começar a falar para que o interlocutor respire fundo e perceba o quão honrado é por estar conversando com a Rainha do futebol.
Em tempos de coronavírus, um computador e poucos quilômetros nos deram a distância necessária que um encontro durante uma pandemia exige. Com um sorriso largo no rosto e um tom de voz amigável, Marta Vieira da Silva, 34 anos, faz parecer que tomamos um cafezinho enquanto falamos sobre sua alegria por estar no Rio Grande do Sul e de como o período de treinamento em Viamão tem sido importante para Seleção Brasileira feminina.
— Todo mundo aqui tem nos tratado muito bem. A gente fica até sem graça, né? Quero voltar, com certeza, mais vezes aqui no Rio Grande do Sul — disse em entrevista exclusiva à GZH, no último sábado (16).
Ao longo da conversa de exatos 25 minutos cronometrados, Marta foi Marta. Mesmo às 8h de um final de semana, a jogadora do Orlando Pride-EUA não se acanhou e até mesmo cantou a alegria que lhe é corriqueira. E, se tivesse instrumentos à mão, tocaria também. Marta é multifunções, dentro e fora de campo. É atleta, instrumentista, cantora, exemplo, rainha e, orgulhosamente, brasileira.
Confira a entrevista de Marta na íntegra:
O que você tem achado do Rio Grande do Sul?
Desde o primeiro dia, estamos concentradas. Então a gente não consegue explorar a região, mas eu estava comentando com a Laura (Zago, assessora de imprensa da Seleção) que o atendimento que tem aqui, a hospitalidade, é uma coisa que eu não encontrei em nenhum outro lugar. Não sei se é porque é a Seleção, mas acredito que não. Todos aqui no hotel (Ecoresort Vila Ventura, em Viamão, na Região Metropolitana de Porto Alegre) têm sido assim. Esse local maravilhoso está nos dando a oportunidade de nos concentrar mesmo no trabalho, esquecer um pouco do mundo lá fora e se dedicar 100% ao nosso objetivo. Todo mundo aqui tem nos tratado muito bem. A gente fica até sem graça, né? Quero voltar, com certeza, mais vezes aqui no Rio Grande do Sul.
Já esteve no Estado alguma vez?
Já estive em outra ocasião. Em 2018, quando vim a Caxias do Sul para acompanhar o acesso do CSA, meu time de Alagoas. A impressão também foi das melhores. Acho que comecei muito bem, com o pé direito, a gente subiu para a Primeira Divisão. Então assim, vim duas vezes para o Rio Grande do Sul e tem sido muito maravilhoso essa estadia aqui.
Como tem sido a pandemia, com a pausa de campeonatos e do futebol?
É uma situação que a gente não se programa para encarar. Já passamos por muitas dificuldades, no sentido de às vezes algumas atletas não terem clubes para desempenhar seu trabalho. Mas não nessa proporção de ter que ficar restrita em casa, principalmente no começo da pandemia. E aí você tem de improvisar a questão de treinamento, de musculação, de um local para fazer uma corrida adequada que chegue a um nível de exigência necessária para você se manter em forma. A gente não estava preparada para uma situação assim. Não está sendo fácil. Agora, está menos estressante porque estamos tendo oportunidade de, por mais que tenhamos os protocolos a seguir, treinar com a equipe. A parte mais difícil passou. Realmente não foi fácil, principalmente para mim, que sou uma pessoa muito ativa, que gosto muito de estar fazendo alguma atividade, de estar sempre em contato com as pessoas.
Você tem acompanhado a evolução do futebol feminino no Brasil? Os jogos?
Tenho acompanhado vários jogos das equipes brasileiras. Me deixa com a sensação de que realmente as coisas estão andando, de que a gente está no caminho certo. Alerto também a importância de todos que fazem parte do futebol feminino, sejam clubes, sejam comissões e atletas, de estar sempre buscando a evolução dentro do seu trabalho. As atletas também de não deixarem passar essa oportunidade, de fazer valer o momento que estamos vivendo. Temos times como propriamente o Inter, o Grêmio e as equipes de São Paulo que estão investindo, isso é importante para que possamos chamar a atenção do público. Procurar manter o público mais informado, mais próximo do futebol feminino, acompanhando o desempenho e o desenvolvimento da modalidade. E continuar crescendo, porque quanto mais forte o Campeonato Brasileiro for ano após ano, melhor é para as nossas meninas terem a oportunidade de chegar na Seleção, de chegarem mais preparadas.
E a preparação das meninas nos clubes brasileiros?
Sabemos que a maior importância das atletas estarem bem não é nem quando estão na Seleção e, sim, quando estão nos clubes, trabalhando. Porque a Seleção é um momento da gente entender a dinâmica do trabalho aqui e colocar em prática, e não uma preparação como a preparação física. Isso é uma coisa que já tem que estar incluída dentro do clube, no trabalho que você desempenha na equipe para chegar na Seleção e fazer valer a nossa técnica, a nossa tática. Vejo que as atletas brasileiras têm muita técnica, são muito habilidosas, têm visão de jogo, mas ainda não atingimos 100% aquele nível de competitividade física que a gente encontra lá fora, que a gente vê nas grandes equipes lá fora. Estamos no caminho certo, acho importante seguirmos para que a gente não comece a dar passos para trás.
Como você acompanha o Gre-Nal?
Acompanho quando não é compatível com os horários de treinos lá em Orlando. E quando não dá para assistir, vejo os lances na internet e a própria Fabiana (Simões, lateral do Inter e da Seleção) é uma deixa para a gente ficar conectada com esse mundo de Inter e Grêmio. As meninas estavam falando que ela sempre faz gol nos clássicos (risos). É muito importante ver jogos assim. É muito importante ver essa empolgação, ter essa divulgação da mídia.
Torce para qual time da Dupla? Inter ou Grêmio?
Não digo que torço para o Grêmio ou para o Inter. Torço para que a evolução esteja presente nas equipes e que o futebol feminino ganhe com isso.
Vejo algo que não tínhamos em outros momentos e que pode dar certo, que pode ser a diferença para que a gente consiga conquistar a tão sonhada medalha.
MARTA
atacante da Seleção Brasileira
O Brasil não chegou ao pódio em Londres 2012 e Rio 2016. Por que a torcida brasileira deve acreditar em pódio na Olimpíada de Tóquio?
Quando você faz um trabalho, sempre procura fazer com excelência para que o êxito aconteça. Em 2012, não veio um pódio, em 2016 também não, mas o trabalho era visando isso. Nem sempre as coisas acontecem. Podemos fazer mil improvisações, podemos entregar 100% e, às vezes, não acontece o que esperamos. Mas vejo hoje em dia uma mentalidade um pouquinho mais diferente. Acho que é mais na cabeça, é mais a mentalidade das atletas do que propriamente o trabalho em campo, porque sabemos que as atletas brasileiras são diferenciadas. Elas têm uma técnica um pouco mais avançada do que as atletas lá fora. Temos de ter essa cabeça, essa tranquilidade para colocar o nosso trabalho em campo, para ter a consciência de que cada jogo é diferente. Temos de encarar os desafios com tranquilidade, com o lado psicológico encaixado. Estou vendo essa diferença. Vejo algo que não tínhamos em outros momentos e que pode dar certo, que pode ser a diferença para que a gente consiga conquistar a tão sonhada medalha.
Como tem sido o comando da técnica Pia Sundhage na Seleção?
Temos o trabalho com uma das melhores técnicas da atualidade e com um currículo muito expressivo. Ela agrega tanto o trabalho dentro de campo como também a questão de encarar esses desafios psicológicos. Espero que realmente isso faça a diferença e que a gente consiga seguir esse método de estar sempre bem. Se você está bem fisicamente, mentalmente você acaba tendo alto confiança de estar preparada para os grandes desafios. É um pouquinho de cada, mas, se conseguirmos equilibrar tudo isso, chegaremos bem nas competições para buscarmos esse tão sonhado ouro (olímpico).
Se a Marta se aposentasse hoje, estaria satisfeita ou com a sensação de que deixou algo para trás?
Estaria feliz, sim. Você acaba não tendo o controle de toda a situação. Tipo: "Ah! Só vou parar quando eu ganhar isso ou aquilo". Tudo o que fiz até agora na minha carreira, fiz com um propósito. É lógico que (o objetivo) sempre foi ajudar a minha família, ter uma vida melhor, evoluir como pessoa e contribuir com o futebol feminino. Até aqui, consegui fazer isso e espero poder levar por alguns anos mais. Porém, não ficaria frustrada se tivesse de parar sem ter conquistado uma medalha de ouro. Conquistei duas pratas, que, para a gente, também representa muito. Chegamos às finais de Mundiais. O meu desejo maior é que o nosso futebol feminino continue evoluindo, crescendo. Independentemente se for na geração que estiver em campo. Se a gente conseguir ganhar, maravilha. Se não for, que aconteça em um outro momento, mas que aconteça. A gente não torce só para mim, Marta, como atleta. Torcemos pela modalidade e assim será para sempre.
A Marta pensa em se aposentar quando?
Olha, alguns anos atrás eu falava assim: "Ah, eu acho que vou parar aos 34 ou 35 anos". Mas parei de pensar desta forma. Os anos se passavam e eu conseguia manter o trabalho de uma maneira que enxergava que estava dando para competir com qualidade, com grandes atletas, com excelência. Eu não faço metas. Devo aproveitar cada momento que tenho com a Seleção, cada momento que tenho com a minha equipe lá em Orlando. E, obviamente, sentir o meu corpo. Sentir que ele está respondendo bem, sentir que eu ainda consigo dar piques em alta velocidade. Sentir que ainda estou em alguns momentos improvisando em situações que você precisa se sobressair rapidamente. Não quero colocar meta. O tempo vai responder isso para mim. Quando sentir e realmente não estiver mais dando para chegar junto, aí a gente vai ter de ter aquela consciência de que chegou o momento de descansar um pouco.