Jorge Sampaoli, 59, fala pouco sobre política publicamente. Também porque, no Brasil, o técnico santista não dá entrevistas que não sejam coletivas antes ou depois dos jogos do Santos, quando há menos possibilidades de a imprensa abordar temas que fogem do noticiário do clube.
No último fim de semana, porém, o argentino foi questionado por um repórter a respeito das manifestações populares que tomam o Chile. Ex-treinador da seleção chilena, Sampaoli saiu em defesa dos manifestantes.
— Valorizo muito a reação do povo chileno depois de tanto tempo de opressão. É um exemplo para todos na América do Sul, lutar contra o neoliberalismo, que deixa o povo cada vez mais pobre — afirmou o técnico após o empate sem gols com o Corinthians.
A crítica ao neoliberalismo não é uma surpresa para quem mostra desde a infância em Casilda, na província de Santa Fe, identificação com os ideais de esquerda.
Filho de um policial descendente de italianos e de uma dona de casa de origem espanhola, o pequeno Jorge se envolveu com a política muito jovem. No início da ditadura militar (que durou de 1976 a 1983), ficava no balcão da fábrica de peças de um tio enquanto ele e amigos se reuniam nos fundos do estabelecimento para discutir os rumos do peronismo na região.
A corrente política sofria forte perseguição desde que Juan Domingo Perón fora derrubado do poder em 1955 por um golpe militar após um período no exílio, Perón voltou a governar a Argentina em 1973, mas morreu no ano seguinte.
— Ali (na fábrica) discutiam, debatiam, colocavam a marcha peronista. E se eu via que passava um "falcon verde", apertava um botão para avisá-los — diz Sampaoli no livro "No Escucho y Sigo" (Não Escuto e Sigo, em espanhol), biografia do técnico escrita pelo jornalista Pablo Paván.
Fabricado pela Ford, o "falcon verde" era o veículo comumente utilizado pelos militares para os sequestros clandestinos durante a ditadura.
Do envolvimento com o tio, Jorge Sampaoli passou para a rebeldia adolescente. Bandas de rock como Los Abuelos de la Nada, Serú Girán e artistas como o guitarrista Luis Alberto Spinetta sofriam com a censura dos ditadores, que limitavam a reprodução de suas músicas, algumas com críticas explícitas ou implícitas à ditadura argentina.
— Estavam todos censurados, e nós íamos assisti-los em porões. Logo chegava a polícia, e tínhamos de correr. Foi uma época muito dura, mas inesquecível — afirma o argentino no livro "Leones" (Leões, em espanhol), dos jornalistas chilenos Rodrigo Fluxá e Gazi Jalil sobre a Universidad de Chile, clube que foi treinado por ele.
Sampaoli tinha como uma de suas músicas favoritas "La Marcha de La Bronca", da dupla Pedro y Pablo, lançada em 1970 e que se tornou um dos principais temas do rock argentino setentista. A letra fala sobre perseguição a artistas, supressão dos direitos humanos, esperança e fé.
Quem não gostava tanto da música era seu pai policial, que temia pelas consequências para o filho.
— Meu pai sofria muito por minha culpa. Levaram-me [detido] várias vezes por participar de reuniões. Tive a sorte de que ele trabalhava na polícia, senão eu teria sido mais um desaparecido — conta o treinador.
Um dos episódios que marcou mais a sua juventude foi a Guerra das Malvinas, o conflito armado que opôs argentinos e ingleses pela soberania do arquipélago austral na década de 1980. Um irmão do hoje treinador, inclusive, quase foi chamado para servir ao exército argentino na guerra.
— De tanto escutar Galtieri (Leopoldo Galtieri, presidente argentino na época) dizer que tínhamos de matar ingleses, você acaba meio convencido que de fato tínhamos de matar ingleses. Minha família, meus vizinhos, todos juntavam joias e dinheiro para apoiar a guerra. Muitos anos depois me dei conta do que realmente acontecia, o engano generalizado. Isso me fez desconfiar muito do poder — diz no livro "Leones".
O argentino, que já teve tatuada no corpo uma frase de Che Guevara, admite que se desencantou com a política ao longo dos anos. Mas a ascensão do kirchnerismo na Argentina pareceu ter devolvido ao técnico o entusiasmo.
Pablo Paván relata que na casa do técnico em Santiago, quando treinou a seleção chilena, Sampaoli tinha um quadro grande de Eva Perón. A obra era uma versão peronista dos retratos coloridos de Marylin Monroe, eternizados pelo artista pop Andy Warhol.
Favorável à nacionalização da petroleira YPF em 2012 pelo governo de Cristina Kirchner, Sampaoli afirma ao "Leones" que este era um passo necessário. "Estou muito orgulhoso da minha presidente. Admiro muito Cristina, me parece convincente no que faz."
Em 2013, o técnico concedeu entrevista ao diário chileno La Tercera, na qual declarou que não votava havia muito tempo, mas que votaria em Cristina nas primárias daquele ano. O repórter do La Tercera, então, comenta que Sampaoli é peronista, no que o treinador o corrige. "Melhor dizendo, sou kirchnerista."
No último domingo (27), Alberto Fernández, com Cristina Kirchner como vice, venceu as eleições presidenciais na Argentina e sucederá o derrotado Mauricio Macri.
Se estão no mesmo espectro político, no futebol eles talvez tenham discordâncias. Isso porque, no ano passado, ao discutir com um seguidor no Twitter após a derrota da Argentina por 3 a 0 para a Croácia na Copa do Mundo, Fernández criticou Sampaoli, então técnico da seleção.
"Não há nada pior que um idiota que se acha inteligente. Por hoje basta. Com Macri e Sampaoli já é suficiente", escreveu Fernández, insatisfeito com o seu opositor e com o trabalho do técnico.