A decepção de Paulo Roberto por um telefonema que nunca chegou é a mesma do ex-meia Xuxa. Aos 22 anos, ele havia sido colocado à disposição por Vanderlei Luxemburgo no Santos. Aceitou sem titubear a proposta do Brasil-Pel. Conhecia o clube e sabia de sua fanática torcida. Xuxa havia atuado no amistoso, como volante titular. Estava animado.
E cansado. A conversa rolava solta no ônibus. À sua frente, o uruguaio Milar mateava. Mas o jogo em Vale do Sol cobrou o preço, e ele avisou o lateral-esquerdo Alemão de que tiraria uma soneca. Acordou com a mão do amigo em seu braço:
— Irmão, segura que vamos tombar.
A última lembrança de Xuxa é a de ter olhado para Alemão. Depois disso, ficaram na memória a gritaria na escuridão e alguns flashes, como o goleiro reserva Luciano pegando em sua mão e Danrlei, com a lanterna de um celular encontrado no chão, iluminando o seu rosto. Ao ver a orelha pendurada e o corte profundo próximo do olho e o braço machucado, Danrlei empurrou seu ombro sutilmente:
— Deita no chão.
Xuxa contabiliza mais de 300 pontos pelo corpo. Até hoje, é grato ao médico André Guerreiro e ao clube pelo atendimento médico. Depois do acidente, voltou para Lorena, no interior paulista, na casa dos pais. Ainda tentou voltar ao futebol. Em 2011, acertou-se com o Guaratinguetá. Mas percebia que estava sempre um patamar abaixo dos companheiros. Às vésperas do Paulistão, em um choque, sentiu o ombro. Exames constataram fratura, herança do acidente. Xuxa passou por cirurgia e ficou mais um ano parado. Voltou aos gramados em 2013, no Sorriso, do Mato Grosso. Ao final do Estadual, cansado da rotina de fisioterapia e das infiltrações para jogar, sentou-se com a mulher e decidiu que era a hora de parar.
Aos 25 anos, ele recomeçou. Voltou para casa dos pais, que financiaram sua faculdade de Direito. Hoje, aos 32 anos, Xuxa toca seu escritório especializado em ações trabalhistas em Lorena. Passa boa parte do dia sentado, destrinchando processos. O que o obriga, a cada duas horas, se levantar da cadeira e alongar. As dores nas costas o incomodam até hoje. Mas a paixão pelo futebol é mais forte e, mesmo sabendo que no dia seguinte estará "travado", ainda joga peladas com os amigos. O surfe, paixão criada nos tempos de Santos, também cobra o preço das dores. Não abre mão dos seus esportes favoritos. Mesmo que o dia seguinte o remeta ao acidente de 2009. Menos, é verdade, que o som de uma freada de carro:
— Só de falar, fico arrepiado. Escuto freada de carro e me assusto. Esse barulho ficou na minha cabeça.
O maior problema de Alemão é físico mesmo. Principalmente nos dias de frio em Atlanta, na Geórgia, onde toca a vida. Quando a temperatura baixa perto de 0ºC no inverno, ele sente o braço esquerdo. Quando o ônibus parou no sopé do barranco, ele tentou se mover e percebeu algo estranho no braço. Levou a mão e não o encontrou. Entrou em desespero:
— Cadê meu braço? Cadê meu braço?
Alemão se recorda de não conseguir se mexer. Ao ouvir a voz de Danrlei, que saiu do ônibus caminhando e lúcido, gritou pelo companheiro, que se aproximou e o iluminou com o celular.
— Seu braço está aqui, pendurado. Tenho de ir atrás dos outros — disse o goleiro antes de buscar socorro.
Alemão diz que o braço havia se deslocado para suas costas. A cirurgia foi bem sucedida. Voltou a jogar em 2011, no Macará, do Equador. Assinou por dois anos, mas a aventura durou seis meses. Precisou abortá-la pela falta de adaptação do filho à altitude de 2,6 mil metros. Porém, havia um problema ainda mais profundo que as questões familiares. Alemão percebia que já não era mais o mesmo depois do acidente. O lateral formado no São Paulo, da mesma geração de Kaká, Júlio Baptista, Gabriel, Júlio Santos e Fábio Simplício, agora não conseguia mandar um arremesso lateral a mais de cinco metros.
— Meu movimento no braço, eu perdi. Ele ficou encurtado. Não tenho a mesma envergadura do outro (direito). Eu cobrava lateral muito bem. Nos dias de frio, dói muito — conta.
Alemão relata que, antes do amistoso em Vale do Sol, havia se encontrado com Guto Ferreira. Na época, um dos auxiliares no Beira-Rio, Guto estava no estádio para ver o Brasil-Pel. Os dois haviam trabalhado juntos na base do São Paulo. Na conversa entre eles, o lateral revelou que seu contrato com o São Paulo estava no fim e ouviu de Guto um conselho:
— Faz um bom Gauchão que vamos te trazer para o Inter. Temos só o Kléber na lateral esquerda.
A perspectiva de voltar a um grande clube deixou Alemão animado. Só que a curva da RS-471 colocou sua carreira ladeira abaixo. O lateral rodou pelo interior mineiro e passou alguns meses no Catar. Foi companheiro de Nilmar no Al Rayyan. Ainda disputou a Segundona pelo Juventus, de Santa Rosa. Desiludido com seu rendimento e com os seguidos calotes, decidiu se aposentar em 2015.
Em 2016, aceitou convite para ser o técnico de uma escolinha em Atlanta que levaria o nome de Ronaldinho. Só que, ao desembarcar nos EUA, percebeu que o projeto era diferente daquele apresentado no Brasil. Ronaldinho desistiu do negócio. Alemão decidiu seguir. Deu certo. Hoje, ele tem a sua própria escolinha de futebol. São 70 alunos. Deu tão certo que Miguel, oito anos, e Gabriel, quatro, acabam de ganhar uma irmã. Helena chegou há dois meses, para celebrar o bom momento da família. O problema são só as dores nos dias frios. O que não é nada, ressalta Alemão, perto da dor que sentem até hoje familiares dos companheiros perdidos na curva da RS-471. Uma curva que, até hoje, ainda não acabou para os xavantes.