De um lado, a ciência, ainda escassa em literatura para tratar do tema. De outro, reações acaloradas que desenham uma polarização tão familiar a qualquer debate no Brasil nos últimos cinco anos. No meio, Tifanny, uma jogadora de vôlei transexual que cumpre com as regras estabelecidas para que esteja em quadra entre as mulheres.
Mesmo quando se descartam posições mais extremadas, carregadas de paixão, não há consenso sobre a primeira atleta trans na Superliga Feminina de vôlei. Ela tem vantagem sobre as outras atletas? Se sim, qual o tamanho dessa vantagem? Quanto ela perdeu de força e resistência com o tratamento hormonal a que se submeteu para fazer a transição de gênero? As regras do Comitê Olímpico Internacional (COI), que chancelam sua participação na competição, são adequadas?
As respostas para essas questões geram divergências entre estudiosos, mesmo que haja concordância a respeito de alguns pontos específicos sobre o tema. Sobram pontos de interrogação, algo esperado para uma experiência quase inédita. Como costuma ser o caso com temas complexos, as múltiplas tonalidades de cinza se aproximam mais da verdade do que o preto ou o branco.
Hoje em dia, quando as pessoas falam, eu até entendo elas porque já pensei assim, por não saber o que o hormônio faz no corpo da pessoa.
TIFANNY
Em entrevista ao site Globoesporte
— Por contarmos apenas com a Tifanny atuando em um torneio de elite, existe carência na produção de dados científicos que possam ser confrontados com performance de outras atletas transexuais no voleibol. A Tifanny não foi a primeira atleta a ser liberada a competir em competições oficiais da modalidade, mas é a primeira a disputar uma competição de alto nível — destaca Régis Rezende, pós-graduado e especialista em voleibol pela Universidade Gama Filho-RJ.
Ele afirma que, até aqui, os estudos disponíveis não apontam vantagens significativas para atletas trans no esporte feminino, mas reconhece que as pesquisas têm encontrado resistência.
— Bem como há restrições nas políticas esportivas voltadas a essas pessoas, que estão sempre sob questionamentos — avalia.
— Ela parece realmente ter mais força do que as outras. Mas é muito difícil ter qualquer opinião a respeito disso. Porque é achismo. Foi medido quanto a mais ela tem de força? Foi medido se o poder de impulsão dela, de alcance, é maior? Quanto é maior? — questiona João Grangeiro Neto, coordenador da Comissão Nacional Médica (Conamev) da Confederação Brasileira de Vôlei (CBV).
Jogadora não esperava atuar no feminino antes de fazer a transição
Fato é que Tifanny tem se destacado pelo Bauru Vôlei. Hoje com 33 anos, completou a transição de gênero em 2015, que incluiu tratamento hormonal e duas cirurgias de mudança de sexo quando atuava em uma liga na Europa. Em entrevista ao portal Globoesporte, revelou que não esperava seguir carreira no esporte porque, à época, não imaginava poder atuar no feminino:
Falei com muitas mulheres transgênero, e elas simplesmente não querem competir por causa dessa reação que têm de enfrentar. Assim, elas simplesmente desistem dos esportes que amam, o que é uma pena.
JOANNA HARPER
Médica e estudiosa da inclusão de mulheres trans no esporte feminino
— Como toda pessoa leiga que fala que acha que não é certo jogar, eu também achava que não poderia porque eu não sabia realmente que a força mudava (com o tratamento hormonal). Depois de uma transição que fui ficar sabendo realmente que isso é diferente. Hoje em dia, quando as pessoas falam, eu até entendo elas porque já pensei assim, por não saber o que o hormônio faz no corpo da pessoa.
Tifanny passou a se enquadrar nas diretrizes aprovadas pelo COI para que atletas trans participem em competições femininas. A regra é que, durante um ano que precede a liberação, o nível de testosterona não ultrapasse os 10 nanogramas, nível médio entre as mulheres. O de Tifanny é de 0,2 nanogramas. Ela se submete a exames periódicos para verificar se o nível hormonal permanece dentro dos parâmetros.
A estreia no feminino foi na Itália, no Golem Palmi, em fevereiro do ano passado. Causou controvérsia, assim como no Brasil.
— Tifanny perdeu quase 40 centímetros de impulsão no salto. Precisou adaptar todo seu estilo para a dinâmica do vôlei feminino. Não é algo simples. Ela é quase perfeita tecnicamente, não se resume à potência física. Isso precisa ser considerado — afirmou seu ex-técnico na Itália, Pasqualino Giangrossi, em entrevista ao jornal El Pais.
Líder em pontos por set, 38ª em percentual de ataques com sucesso
De volta ao Brasil para se recuperar de uma cirurgia na mão, recuperou-se no Bauru Vôlei e sua inscrição foi submetida à Confederação Brasileira de Vôlei (CBV). A entidade consultou a Conamev, que deu a luz verde para que entrasse em quadra na Superliga Feminina.
Ela jogava na liga italiana masculina e, se a compararmos com um ano atrás, veremos que está mais fraca. Mesmo assim, estes parâmetros continuam sendo masculinos. Ruins, mas masculinos.
PAULO ZOGAIB
Professor de medicina esportiva na Unifesp, em entrevista à Revista Veja
— A Conamev simplesmente atendeu a um pedido da CBV e se manifestou da seguinte maneira: a diretriz que há com relação a isso é a do COI. A Conamev então sugeriu à CBV que acatasse o que diz o COI — relata Grangeiro.
Desde sua estreia, no fim do ano passado, na derrota do Bauru Vôlei para o São Caetano, a presença de Tifanny gera polêmica. As discussões se acentuaram depois que ela quebrou o recorde de pontos de uma atleta em um jogo da competição, ao marcar 39 vezes contra o Dentil Praia Clube.
A mais célebre crítica veio de forma contundente e de alguém com história no vôlei. Ana Paula, dona de uma medalha de bronze olímpica com a seleção brasileira em Atlanta 1996, enviou carta ao COI em que criticava duramente a liberação de atletas trans no vôlei feminino. Citou que o corpo de Tifanny foi "construído com testosterona durante a vida toda" e afirmou que "não é difícil identificar a armadilha em que as entidades esportivas caíram e que pode levar junto todo o esporte feminino".
Tandara, destaque da Superliga pelo Osasco Nestlé que depois igualou a marca de Tifanny, foi menos incisiva, mas se juntou ao grupo que não concorda com a liberação:
— Eu respeito a história dela, para a sociedade é muito importante, dar a cara para bater, é uma pessoa que eu respeito muito. É um assunto delicado. Estudei, falei com muita gente sobre o assunto, tive um respaldo e eu não concordo com ela jogar no vôlei feminino.
Só que mesmo a análise da performance da atleta gera controvérsia. Há quem aponte sua média de 5,5 pontos por set, a maior da Superliga, como evidência de seu domínio sobre as adversárias. Mas os defensores de sua inclusão citam outras estatísticas para mostrar que seu impacto sobre o jogo não é tão grande. Lembram que Tifanny põe no chão 47% das bolas que ataca, o que a coloca apenas na 38ª colocação deste quesito na competição. Seus recordes de pontuação se dariam pelo fato de que recebe muitas bolas por jogo para atacar. Falam, também, sobre o desempenho do Bauru, que não teve crescimento significativo desde a estreia de sua principal estrela. Antes dela, a campanha da equipe era de três vitórias e sete derrotas. Depois, mais quatro vitórias e sete derrotas.
"Mulheres trans são sub-representadas", diz estudiosa
Joanna Harper acompanha com entusiasmo e curiosidade a trajetória de Tifanny na Superliga. A médica americana do Providence Portland Medical Center é uma das principais estudiosas da inclusão de atletas trans no esporte feminino. Já se comunicou com a jogadora e assistiu a vários de seus jogos na Superliga.
Há quase 15 anos, era Harper quem passava pela transição de gênero. Corredora de longas distâncias em competições de veteranos, percebeu como seu desempenho caiu com o tratamento hormonal. Ao consultar os tempos de referência da Federação Internacional de Atletismo para sua idade, constatou que, após o tratamento, a piora de sua performance foi tal que ela se encontrava, no feminino, no mesmo patamar competitivo que tinha no masculino.
Curiosa, conduziu um estudo em que comparou os tempos de oito corredoras trans antes e depois da transição de gênero. Concluiu que a redução do nível de testosterona causava drástica queda de rendimento, a ponto de as atletas terem, entre as mulheres, colocações semelhantes às que tinham entre os homens.
O estudo ajudou a sustentar a decisão da liga universitária americana (NCAA, na sigla em inglês para Associação Atlética Nacional de Universidades) a respeito de atletas trans. Em 2011, mulheres que passaram por transição de gênero passaram a ser autorizadas a competir no feminino, desde que comprovassem baixos níveis de testosterona. Quatro anos depois, foi a vez de o COI mudar sua diretriz a respeito do tema e adotar o controle hormonal por um ano como critério para liberar mulheres trans. Para Harper, a experiência da NCAA é uma evidência contundente de que o temor de uma "invasão" de transexuais no esporte feminino é infundado.
— A NCAA tem quase 500 mil atletas. Há mais de 200 mil mulheres competindo. Não sabemos exatamente o tamanho da população trans, mas é de, no mínimo, 0,5%. Se tomarmos como referência esse percentual, então, dessas 200 mil mulheres, teria de haver mil mulheres transgênero competindo. E, no máximo, há 20 ou 30 — calcula.
— Não chega perto de ser uma invasão, e estamos falando de sete anos depois que a NCAA instituiu essa regra. Então, em vez de tomar conta do esporte feminino, elas mal conseguem marcar sua presença. Se as mulheres transgênero fossem dominar o esporte universitário, já teria acontecido. E o motivo é sociológico. Falei com muitas mulheres transgênero, e elas simplesmente não querem competir por causa dessa reação que têm de enfrentar. Assim, elas simplesmente desistem dos esportes que amam, o que é uma pena. Por isso elas ainda são sub-representadas nos esportes. Algo que não vai mudar tão cedo, e você vê no tipo de reação que a Tifanny tem enfrentado. Por que alguém gostaria de passar por isso? — questiona.
COI deve se reunir para debater parâmetros
Mesmo que exista a ponderação em torno da representatividade, há especialistas que se opõem à presença de Tifanny na Superliga. Seus argumentos não carregam o ranço do preconceito, apenas ponderam a respeito de questões fisiológicas.
— No caso dela, há um detalhe que faz um pouco de diferença, que é o fato de ter feito a cirurgia já com 30 anos. Então, ela passou boa parte da vida com uma produção hormonal muito maior do que a feminina. Isso acaba influenciando no tamanho dos órgãos, coração, pulmões, a parte óssea, ou seja, as alavancas do aparelho locomotor — disse Paulo Zogaib, professor de medicina esportiva da Unifesp, à Revista Veja.
— Ela jogava na liga italiana masculina e, se a compararmos com um ano atrás, veremos que está mais fraca. Mesmo assim, estes parâmetros continuam sendo masculinos. Ruins, mas masculinos. Não tem como diminuir a massa cardíaca, a quantidade de sangue que ela tem, a capacidade de processamento do fígado. É inevitável. Parar de produzir testosterona ou inibir sua produção não vai desandar todo o organismo. A pessoa enfraquece, mas pouco. Do contrário, haveria até risco de morrer — argumenta.
Harper até reconhece essas vantagens, mas enumera os obstáculos que a atleta tem de enfrentar:
— Tifanny ainda tem ombros largos, ossos maiores e mais pesados. Mas a massa muscular foi reduzida, a capacidade aeróbica também. Com essa massa muscular reduzida, com essa capacidade aeróbica reduzida, ela tem de movimentar esse corpo maior. Então, mulheres transgênero têm desvantagem quando se fala em agilidade e resistência. Em um esporte como o vôlei, as vantagens vão ajudá-la na rede. Ela é alta, tem força, o que a ajuda a cortar a bola. Mas ela não tem agilidade, o que a prejudica no fundo de quadra. Ela não vai se recuperar tão bem após cada jogo ou entre os sets, devido à redução da capacidade aeróbica.
A estudiosa ainda sugere uma possível mudança de regra específica para o vôlei.
— A pergunta é: você faz regras separadas para cada esporte? Talvez. Por exemplo, no vôlei, acredito que seria uma regra razoável dizer que cada time pode ter apenas uma mulher transgênero — afirma.
Enquanto o Brasil discute Tifanny, a comissão médica do COI deve se reunir em breve para debater se muda os parâmetros para liberação de mulheres trans no esporte feminino. Um debate que, mesmo em círculos mais iluminados do que os bate-bocas de redes sociais, não costuma ter fim.