Os três ocupantes da suíte 8 da concentração do Estádio Estrela D'Alva providenciaram a aquisição de um aquecedor menor do que uma panela de pressão.
O centroavante paulista Castilhos não suportou as últimas temperaturas de quase 0°C e sugeriu a compra aos outros dois companheiros da suíte, o atacante uruguaio Cristian Fábian e o meia William Bicca. Cada um desembolsou R$ 25. Ao menos, foi possível enfrentar a noite em meio aos jogos decisivos do Guarany, de Bagé, que neste domingo faz a finalíssima da Segunda Divisão do Gauchão contra o Gaúcho na recém-inaugurada Arena BSBios, de Passo Fundo.
Como se fosse uma empresa, Gaúcho busca título e recuperação
Guarany-Ba vence Gaúcho por 3 a 2 e larga na frente na final da Terceirona
Não é exatamente uma Segunda Divisão. Na verdade, a nomenclatura oficial é a forma suave de se referir à Terceirona, que é o que está em jogo. Quem vencer sobe para a Divisão de Acesso, ou melhor, para a Segundona de 2017, sem eufemismo.
Também a suíte da concentração do Estrela D'Alva não é tão suíte assim. O que existe embaixo do cimento frio do pavilhão social são modestos quartos de 3m x 3m que abrigam três jogadores em um beliche e uma cama de solteiro. O frio ali é cortante. Estão a salvo apenas do minuano que sopra das colinas dos campos a poucas quadras do estádio. Mas o assovio do vento lá fora compete com o áudio da TV.
Fazendo graça da própria privação, alguém colocou na porta de um dos quartos a inscrição "Suíte 8". Um outro mais espirituoso retirou o "s", e hoje lê-se apenas "uíte 8".
– Este frio aqui não existe. É impossível a gente se acostumar – espanta-se o zagueiro Raul, paulista de Piracicaba, apesar de já ter passado pelas agruras do frio jogando pelo União Frederiquense e pelo Farroupilha, de Pelotas.
Acostuma-se. Raul é um dos quase 20 jogadores de fora de Bagé que chegaram neste ano ao Guarany para disputar a Terceirona, a grande maioria deles jovens atletas. O regulamento da competição incentiva a contratação de novatos. Só é possível usar na equipe três acima de 23 anos – a mesma regra do futebol na Olimpíada, com uma diferença dantesca: as promessas das seleções dos Jogos são consagradas. As da Terceirona, batalham por dois salários mínimos.
A água gelada assusta na hora de lavar roupa
São os mais jovens que carregam no ombro o drama de uma competição campeã de dificuldades. Além de baixo salário (R$ 1,5 mil por mês é o teto quase intransponível), pagamento fatiado, atrasos frequentes, alojamento precário, contrato curto por semestre, indefinição de emprego e completa falta de perspectiva de carreira, no Rio Grande do Sul o frio parece bater mais forte em quem está na base do profissionalismo. Não são todos que vêm para o Sul jogar uma Terceirona no inverno.
O experiente Cristian Fábian, nascido há 27 anos nas geleiras do bairro de Canelones, em Montevidéu, tornou-se um friorento em suas andanças pelo Estado. Na cota dos acima de 23, há seis anos pipoca em clubes como São Paulo-RG, Rio Grande, Panambi, Guarani, de Venâncio Aires, e União Frederiquense. Desde maio morando na concentração do Estrela D'Alva, nunca sentiu tanto os rigores do inverno.
– Isso aqui assusta até um uruguaio da Campanha – diz, contando os dias para o final do torneio para voltar à sua terra e ver o filho Ramiro, de dois anos.
Na suíte de Cristian, há pilhas de roupas e cobertores atirados sobre as camas. Eles próprios se enchem de coragem e encaram os tanques que lhes aguardam em um canto do estádio. Não há quem faça por eles. Com o sol de terça-feira pela manhã, muitos correram a lavar a roupa da semana e, antes do treino da tarde, o centroavante Castilhos estendia calças e blusões em um cercado transformado em varal ao lado das sociais do estádio.
No outro dia, Castilhos foi o melhor em campo durante a primeira final da Terceirona. Com o 9 às costas, marcou dois gols e garantiu, em Bagé, a vitória do Guarany por 3 a 2 sobre o Gaúcho. Fez um de cabeça em estilo clássico, ele tem quase 1m90cm, e no segundo encobriu o goleiro, de cavadinha. O centroavante lava roupa e faz gols.
– Lavar não é problema. O pior é colocar a mão na água gelada – repara.
Paulista de Presidente Prudente, Castilhos já andou pelo Marília, jogou a Copinha do ano passado pelo São José e, aos 26 anos, é outro da cota acima de 23. Mas a grande maioria é de garotos que vivem nas suítes com roupas, tênis e chinelos por todos os lados, cuecas penduradas na cabeceira da cama, ferro de passar embaixo do beliche e um emaranhado de cabos de celulares.
Companheiro de quarto de Cristian, William Bicca é o típico guri vaidoso que nunca sai do ambiente da suíte sem perfume. Não completou a faculdade de Educação Física e chegou ao time emprestado pelo Pelotas. A maioria dos 20 novatos utilizados pelo técnico Geverton Duarte é de fora e chegou pelas mãos do empresário Ricardo Pizarro. Apenas três moram na cidade. Apesar da pouca idade, eles rodam desde cedo entre Terceirona e Segundona. A maior parte dos clubes não mantém categoria de base completa, como é o caso do Guarany.
Meia teve de escolher entre o táxi e o futebol profissional
O meia-esquerda Maurício e o meia-atacante Michael são gêmeos. Farão 16 anos em dezembro, mas já treinam com o grupo principal. São tratados como filhos pelos companheiros da faixa dos 20 e como neto pelos de acima de 23. Na real, são filhos de Michel e netos de Omar, ex-jogadores, e contagiam o vestiário com uma felicidade juvenil.
– A gente sonha com essa carreira – suspiram.
O volante Vinícius Costa, filho do ídolo Badico, é outro que tenta história própria no futebol. Com tanto gás da juventude, o volante William Lima, 17 anos, se permite fazer uma hora de caminhada de sua casa, no bairro Stand, até o estádio.
O frio restringe ainda mais a diversão da garotada na cidade do Interior. Em Bagé, a simples ida ao almoço tem sabor de entretenimento. O clube mantém convênio com uma rede de restaurantes. Para não onerar, cada comerciante serve apenas três atletas.
– É a hora de olhar alguma coisa pela cidade. Porque, mais tarde, capaz que vamos sair – conta o atacante Carlos Gatto.
A chegada do Guarany à final não é à toa. Dos R$ 42 mil de custo mensal, cerca de R$ 30 mil são da folha dos 23 jogadores. Tecnicamente, não há atrasos no salários, apesar de 10 a 15% serem pagos além do mês. Um novo perfil de dirigentes assumiu o clube. O presidente Tato Moreira e os diretores Jorge Kaé e Cléo Coelho reestruturam o clube como podem. A sala de troféus traz lembranças do time bicampeão gaúcho de 1920 e 1938. As taças sobre prataleiras empoeiradas guardam a história desde a fundação, em 1907.
A rivalidade com o Bagé, porém, continua secular. Em junho, os jogadores Bruno, Welder e Ângelo, do Guarany, contraíram caxumba. Foram vacinados em tempo, e o problema foi contido na concentração. Mas em seguida o vírus apareceu fulminante entre os jogadores do Grêmio Bagé. Era época dos clássicos da fase final da Terceirona, e o Bagé nem apareceu a um jogo na cidade. O episódio ficou conhecido como Batalha da Caxumba – e o Guarany passou.
O meia atacante Welder, apesar da caxumba, é goleador do campeonato. Marcou 13 vezes. Mas podia estar dirigindo profissionalmente. Aos 21 anos, no final de junho, ele estava decidido a trocar a vida de jogador pelo táxi. Tem de sustentar a família com um filho pequeno no Morro Santana, em Porto Alegre.
– Tiro muito mais no táxi, cerca de R$ 3,5 mil por mês – conta Welder.
Os dirigentes do Guarany o convenceram: você quer ganhar mais agora ou apostar numa carreira no futebol?
Welder voltou para a concentração fria do Estrela D'Alva e desfez as malas.
*ZHESPORTES