Muhammad Ali encontrou os Beatles em 1964 em Miami, nos Estados Unidos. O grande Ali os deixou esperando. Não os conhecia.
Espiou, achou que eram uns "maricas" de uma exótica Londres e foi cuidar de outras coisa enquanto os britânicos tomavam um chá de banco. John Lennon, sem vê-lo, tinha uma opinião formada sobre a grande novidade. O chamava de "falastrão" e apostava em Sonny Liston na luta entre os dois - que daria mais tarde no sétimo assalto o título mundial dos pesos-pesados ao jovem dos cafundós do Kentucky.
Ninguém sabia, nem eles mesmos. Mas ali, bem ali, no abafado 5th Street Gym, em Miami Beach, a história da cultura popular se movia. Como os nobres visitantes, o habitante local podia cantar. Antes, em 1963, acondicionado no álbum I'm the Greatest, Ali gravara a seminal Stand by Me – Lennon a repetiria nos anos 1980 com a classe de um Beatle só.
O pugilista, que se movia como uma borboleta e picava como uma abelha, foi um rapper pré-histórico. A música estava na sua cabeça, nos seus pés e na dança da mama África nas barbas do adversário. Nunca a música foi tão próxima de um atleta. Um constelação do movimento black power, alimentada pela Motown, pagou tributo ao lutador que todos aprenderam a amar, a se aproximar e a cantar.
O branquelo Frank Sinatra o reverenciou. O Jackson Five, com Michael, foi ter com ele. Bob Dylan experimentou seu soco de mentira, puro cartão postal de duas divindades. Elvis Presley, o rei, não ficou indiferente. Todos queriam colocar luvas, entrar no quadrilátero, testar de mentirinha o campeão e chamar os fotógrafos.
O escritor Norman Mailer, outro gigante norte-americano, foi quem melhor o definiu no seu heroísmo e nas falhas. Esculpiu o herói, o cercou nas suas fraquezas. O fez imortal, super, e às vezes tristemente humano.
Gênio, Ali foi único. Ele foi o novo. No boxe, tudo começou com ele, recomeçou e morreu. Todos procuram outro igual. Não há. Nada do que veio antes ou depois tinha mais importância. Ele redefiniu o pugilismo como os Beatles reinventaram a música. São os representantes de um tempo e encontraram o mapa da porta da eternidade.
Pelé não foi o atleta do Século 20, não me leve a mal. Foi Muhammad Ali. Um extrapolou sua vida no esporte. O outro ficou nele. Se um habitante dos planetas Netuno, Marte ou Urano, aportar no enterro do três vezes campeão do mundo dos pesos-pesados, em Louisville, nesta desoladora sexta-feira e sugerir o molde de um terráqueo, ofereça o DNA de Cassius Clay.