– Se você acompanhar todos os dias de treino de um atleta, você não está conhecendo a pessoa. Quem você vê nadando, arremessando a bola no gol, dando uma cortada, é o atleta. A pessoa é diferente.
A frase é de Leonardo Domenech, ex-jogador de handebol. Ele decidiu abandonar a carreira por problemas psicológicos. A separação entre as facetas de um esportista é corroborada pela psicóloga Marisa Markusan, que acrescenta: quando a rotina do atleta exige renúncias ou não corresponde à imagem romantizada do ídolo, abre-se caminho para uma dor que não vem de músculos ou ossos.
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De olho na Olimpíada, atletas de alto rendimento convivem com uma companheira inseparável: a dor
Em agosto de 2015, ZH mostrou a trajetória do nadador Samuel de Bona, das maratonas aquáticas, em busca da vaga olímpica. Durante a luta para ir ao Rio, ele desenvolveu sintomas de depressão. No auge da crise, enquanto não estava na piscina, dormia longas horas em casa. Chorava desesperado com a perspectiva de enfrentar mais uma sessão de treinamentos. Não queria ver mais água.
Leonardo sentiu algo parecido, agravado pela distância de casa. Contratado pelo clube Ademar León, da Espanha, encontrou dificuldades logo de cara. Não conseguia dormir, tinha pesadelos. Preocupava-se com a família no Brasil.
O descompasso mental influiu no físico. O ganho de peso foi substancial, e o humor mudou. Chegou a ser expulso de um treino por causa de uma discussão e teve crises de choro antes, durante e depois de treinamentos. Aos colegas, limitava-se a dizer que eram problemas particulares no Brasil. Dos familiares, escondia o drama.
Isolado, resolveu voltar para casa e parar com o handebol aos 23 anos. A melhora que teve a partir do afastamento o convenceu de que a distância do Brasil não era a única culpada:
– Eu decidi ser radical. Sei que poderia continuar jogando no Brasil, mas a ruptura funcionou para mim. Como atleta, você é criado para ser uma máquina. Tem de ser o melhor. Fica algo desumano.
Seja em casos extremos como o de Samuel e Leonardo, ou em doses brandas de tristeza e insatisfação, problemas psíquicos em atletas são mais frequentes do que se imagina.
– A depressão atinge cerca de 17% da população. Pela minha experiência, a proporção entre os atletas é semelhante – diz Franklin Ribeiro, da Sociedade Internacional de Psiquiatria Esportiva (ISSP).
Ribeiro trabalha com atletas há 17 anos. Não são raros os casos em que se vê obrigado a receitar antidepressivos. Os prejuízos costumam nascer na adolescência, quando os treinos ficam mais sérios e o praticante se transforma em atleta. Pula-se, assim, uma fase importante. Depois das brincadeiras da infância, a rotina é recheada por responsabilidades de vida adulta. Cobram-se horários rígidos, disciplina e renúncias à vida social. A conta acumula e é cobrada mais adiante. Markusan destaca:
– Quando você fala de um sujeito de alto rendimento, estamos falando, grosseiramente, de alguém dos 15 aos 25 anos. É uma pessoa jovem, que não teve tempo de descobrir nada da vida.
O glamour do pódio e das medalhas é a porção ínfima ligada à imagem do ídolo. O dia a dia traz movimentos repetidos à exaustão. Os treinos exigem sacrifícios dolorosos, especialmente na adolescência, tão efervescente no convívio social. Às ausências em festas e reuniões de amigos, soma-se um ambiente carregado de pressão. Desde cedo, aprende-se que a busca do limite físico e técnico é algo cotidiano.
– Muitas vezes o esporte de rendimento tem uma lógica que submete o sujeito à seguinte ideia: "Se você fez isso, não foi mais do que sua obrigação". E aí, tudo vira uma obrigação, e poucos são os prazeres – lembra Markusan.
O drama é maior quando causado por uma lesão séria, que arranca à força o atleta de seu hábitat. Inconsolável com a nova realidade, se deprime.
– Nessas horas, sempre aconselho a manter o contato com o grupo, com o ambiente do treino. Nem que ele vá lá para socializar, fazer outro exercício – diz o psiquiatra Luis Fernando Varela Brenes.
Síndrome do pânico tira vaga nos jogos do Rio
Por pelo menos 10 meses de sua vida, Mirella Coutinho conviveu com a certeza de que sua morte estava próxima. Era o mais angustiante dos sintomas da síndrome do pânico, doença que desenvolveu como atleta do polo aquático. No ano passado, após retornar do Pan de Toronto, decidiu, aos 21 anos, que era hora de deixar o esporte de alto rendimento e a vaga praticamente garantida nos Jogos Olímpicos.
Aos 14 anos, Mirella já estava na seleção brasileira. Disciplinada, evitava noitadas e festas. Com apenas 16 anos, participou do Pan de Guadalajara, em 2011. Chamou a atenção de universidades americanas, que ofereciam bolsas de estudo para que jogasse na liga universitária daquele país.
As primeiras propostas não foram tão atraentes. Mirella resistia à ideia de morar longe, mas acabou seduzida pela Universidade do Havaí. Depois de terminar o colégio, partiu para a aventura.
Desde o início, não se sentiu confortável. Os treinos eram duros, havia cobrança de todos os lados – do técnico, da seleção, dos estudos – e a distância de casa acentuava o desânimo. Em outubro de 2014, Mirella não conseguia mais sair de casa. Chorava copiosamente e passou a sentir a iminência da morte. Convencida de que o retorno para casa seria suficiente para melhorar, pedia aos pais para abandonar o Havaí. A família a incentivava a ficar, tentava consolá-la, mas, no fim do ano, ela retornou. Nos meses seguintes, descobriria o principal vilão:
– Foi o esporte, com certeza.
A convicção é ancorada no que diz sua psiquiatra. Ela diagnosticou síndrome do pânico e depressão. Mencionou, como fator decisivo, o salto de etapas na vida de Mirella quando tornou-se atleta e, de alguma forma, uma adulta precoce.
Mirella seguia treinando. Sabia que teria lugar na Olimpíada de 2016 se aguentasse mais um pouco do martírio. Do início de 2015 até o meio do ano, a seleção fez quase uma viagem por mês. No avião, a doença se manifestava com mais força. Sob fortes medicações, dormia no início dos voos, mas acordava no meio do trajeto, já aos prantos.
Antes de embarcar para o Pan de Toronto, já tinha reconhecido que abandonar o polo era o melhor caminho. Mas diante das expectativas do entorno, ainda não tinha coragem de desistir. No Canadá, teve grandes atuações e aproveitou seu último campeonato. Logo após, a seleção viajaria para o Mundial, mas Mirella, depois de mais um ataque, não embarcou. E disse adeus ao esporte competitivo.
Hoje, ela encara o polo apenas como lazer. O tratamento, combinado com o fim da rotina de treinos, competições e viagens, proporcionou melhora significativa. Viajar de avião, por exemplo, já não é o mesmo sacrifício. O sonho olímpico ficou para trás, mas sem arrependimentos.
– Quero tocar minha vida, sei que tenho outras oportunidades e outros projetos a seguir – resume.