Ainda falta chão para os 23 anos que Sir Alex Fergusson ficou no Manchester United até se aposentar. Mas, guardadas as diferenças entre culturas, vale a referência. O Brasil é um país continental e impossível de se cobrir até pelas estatísticas, então pode ser que em algum canto haja, além de Cláudio Tencati, há meia década no Londrina, alguém que tire de Leocir Dall’Astra o posto de segundo técnico mais longevo no Brasil.
São quatro anos. É tempo até para o padrão europeu. Ex-jogador, com passagem pelo Inter nos anos 1980, levou o Ypiranga para a Série A, no Gauchão. Subiu da D para a C no Brasileiro. Está a um passo das oitavas na Copa do Brasil, condição que será decidida no Colosso da Lagoa, com o Fluminense. Aos 53 anos, Leocir é um caso raro no país do imediatismo.
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Como foi possível chegar a quatro anos treinando o mesmo time?
Tive chance de sair. Recebi cinco ou seis propostas. Eram financeiramente melhores, mas nem por isso achei que eram interessante. É bonito você ir escrevendo a história de um clube. É bacana para o currículo pessoal, mas é inesquecível para a comunidade. Onde quer que eu vá em Erechim as pessoas me saúdam, me dão força. Isso aí ninguém paga. Entendo também que uma continuidade tão longa pode ser um emblema para a profissão, que é sempre a primeira culpada na derrota. Sigo no cargo mesmo com direções diferentes, de situação e oposição. É uma bela experiência. Sinceramente, trabalho por isso. Só saio por uma proposta realmente irrecusável.
Você foi eleito o melhor técnico do Gauchão 2010, no Cruzeiro. Por que não apareceu chance em um grande clube?
Muitas vezes um profissional é contratado por ser amigo de gente influente ou por ter um empresário forte, bem relacionado com dirigentes importantes. Acho que isso pesou contra mim. Não tenho empresário. Não gosto de puxar o saco. De bajular, de ir a coquetel. Faço o meu trabalho com seriedade e deixo que me julguem, sem amizades aqui e ali para me empregar. Possuo resultados nesse universo: campeão do Interior, acessos. O trabalho aparece, mas a chance não vem. Enquanto isso há outros, sem citar nomes, que não realizam bons trabalhos mas seguem no rodízio. O rótulo de nunca ter trabalhado em time de Série A me prejudica bastante. injusto. Nomes corretos e ótimos como Tite, Mano, Roger, todos eles um dia tiveram a primeira vez.
Isso te incomoda?
Fico um pouco chateado. Mas o meu caminho está se desenhando assim, de outra maneira, no Ypiranga. Como assim, “outra maneira”?Um percurso mais longo e difícil, de alcançar resultados apesar das imensas dificuldades de um clube do Interior, para que não restem dúvidas. Não tenho intermediários em meu favor. Vou na contramão do sistema. Mas não tenho rancor, não! Por sorte há o Ypiranga, que acredita no meu trabalho e vice-versa. É um orgulho construir uma relação assim. Sem falar que o Interior é uma baita escola.
Explique melhor “baita escola”?
É uma faculdade. Você tem de ser tudo: técnico, preparador, psicólogo, nutricionista, massagista, às vezes até médico. No Ypiranga, a situação tem melhorado, mas mesmo assim um leva o outro pela mão. Isso nos une. Vira família. Mas para continuar crescendo, para subir e ficar na C, e depois na B, temos de melhorar nossa estrutura. Temos um baita estádio, o Colosso da Lagoa, mas precisamos de uma base forte. Hoje é só uma sub-17 terceirizada. Precisamos envolver a região e revelar talentos.
Você poderia citar algum exemplo dessa “faculdade”?
Não temos fisiologista, por exemplo. Na Série D viajamos sem roupeiro ou massagista porque não tinha como dar passagem para todo mundo. A CBF libera uma cota pequena. Aí tudo mundo ajuda, leva água, carrega material, dobra as roupas. Vira uma família. A gente vê o esforço da direção em melhorar a estrutura, então ajuda com gosto.
Quanto é a folha salarial?
Foi de R$ 70 mil na Série D, agora é R$ 170 mil. Recebemos em dia, a cada 5 e 15 do mês. Você pega um Juventude, um Operário (PR), um Red Bull, e os valores são maiores. Quatro ou cinco vezes. Mas não será por aí que vamos subir para a Série B. E por onde será?Na organização, no conjunto, na disciplina tática, no elenco enxuto e multifuncional, com jogadores que desempenham mais de uma função. É aí que vamos compensar. O que vai desequilibrar, no nosso caso, é o conjunto. Além do mais, não tem, na Série C, um supercraque que vá chegar e e acabar com o jogo sozinho. Nenhum time tem esse atleta.
O seu Cruzeiro, em 2010, era um time ofensivo. E o Ypiranga?
Aprendi, no Cruzeiro, que você pode ser organizado mesmo sem muitos recursos. Não adianta só ficar lá atrás. Futebol é equilíbrio entre atacar e defender. A nomenclatura tática é burocracia: 4-4-2, 4-3-3, 4-1-4-1. O que importa é a função que cada um desempenha. Se você conscientizar a todos disso, tem jogo coletivo. Vai perder, empatar, ganhar, mas o futebol será digno. Eu me considero um técnico ofensivo.
Ypiranga, Xavante na Série B, Ju vice gaúcho: há mudança em curso no Interior ou só coincidência?
Tem uma mudança de mentalidade: dar atenção para quem vive a dificuldade. Ouvir os profissionais do dia a dia. O mérito da gestão é dos dirigentes, mas dando relevância para quem terá de lidar na prática com a escassez do nosso Interior. O caso do Brasil-Pel, com o Rogério Zimmermann é exemplar. Aqui, no Ypiranga, a parceria é total. Sem citar nomes, tem clube que primeiro contrata os jogadores com este ou aquele empresário amigo para depois definir o técnico. E o conceito de futebol, que deve nortear a montagem do grupo? E o perfil do trabalho? É preciso evoluir em estrutura para crescer e se manter, mas já deu para ver que, com esta mentalidade e paciência, o resultado aparece.
*ZHESPORTES