Não vi Pelé em ação ao vivo, no estádio. Quando ele se aposentou, no hoje cultuado Cosmos, em 1977, eu tinha 9 anos. Lembro do meu pai colocando as mãos na cabeça, incrédulo, naquele gol de bicicleta, pedalado a quatro andares da grama sintética americana. Mas era TV. Teipe, ainda por cima. Queria muito ter visto Pelé jogando de verdade. É uma saudade que nunca sentirei. A saudade nos faz viver de novo, lá adiante. Dá até uma certa inveja de quem viu. Brilha de outra maneira o olhar dos que testemunharam este senhor de 75 anos, completados esta semana, com a bola nos pés.
Durante a apuração de uma reportagem sobre o Maracanã, descobri nas ruas, bares e prédios ao redor remanescentes do jogos lendários entre Santos e Botafogo, nos anos 60. As pessoas vinham de todos os cantos do Brasil e até do mundo para ver aquela bruma de craques engolfar o gramado. Zagallo, Garrincha, Didi, Nilton Santos, Gilmar, Pepe, Coutinho. Era o maior espetáculo da terra. Havia genialidade de sobra para conferir, mas basicamente todos queriam ver um só: Pelé.
Dei sorte, ao menos, de ver alguns dos que mais perto chegaram de Pelé em talento: Ronaldinho, Messi e Maradona. Até hoje não entendo como aquela arrancada de Messi não beijou a rede de Neuer contra a Alemanha, na final da Copa. Os reservas alemães se ergueram ao mesmo tempo, apavorados, quando ele partiu em linha reta.
Não esqueço dos argentinos cantando para Diego após um gol de falta pelo Boca, contra o Argentinos Juniors, em 1995, já no fim da carreira, em Buenos Aires. Os dribles de Ronaldinho em Dunga no Gre-Nal do Gauchão de 1999 foram imbatíveis, aqui debaixo do nosso nariz.
Mas Pelé ao vivo, ali de pertinho, no estádio, não vi. Suponho que todo cidadão brasileiro tenha alguma história com Pelé, real ou imaginária. É uma maneira de se sentir parte da trajetória de um mito. A minha é verdadeira.
Em algumas horas, a Seleção Brasileira faria a semifinal da Copa da França contra a Holanda. Fui cedo para o Estádio Velodrome, em Marselha. O mundo passaria por ali, imaginei. Eu circulava pelas tribunas quando percebi um murmurinho além da conta. As pessoas se levantavam, torciam os pescoços, apontavam o dedo. Quem era? Johan Cruyff, o cérebro talentoso do futebol total da Laranja Mecânica de 1974, a última grande revolução do futebol.
Fiquei impressionado. Aquela reverência mais de 20 anos depois, e para um time que nem campeão havia sido? Maior prova de grandiosidade não poderia haver. Então, alguém gritou:
- O Pelé tá vindo aí.
O mundo pareceu ter parado ali mesmo. Havia um magnetismo no ar. A informação se espalhou na velocidade da luz. Houve corre-corre. Os stewarts abandonaram os postos. Os voluntários também. Alguns torcedores invadiram a área restrita para tentar um autógrafo. O alto falante o anunciou. A torcida aplaudiu em pé. Os jornalistas correram na sua direção como um enxame de abelhas, eu entre eles. Fui bem rápido. Cheguei relativamente antes, embora isso significasse só alguns segundos, e o toquei. Ele estava de costas. Eu queria apenas que se virasse, mas os seguranças entenderam que ele estava sob ameaça. Meu bloquinho de anotações se escabelou todo. O óculos caiu. Pelé viu, mas nada podia fazer. Em seguida foi cercado por dezenas de pessoas e passou a responder perguntas em vários idiomas, aí já com um cordão de isolamento feito em torno dele. Quando acabou a conversa, nossos olhares se cruzaram na porta do elevador, ele já indo embora.
- Você é brasileiro? - ele perguntou.
- Sim, jornalista.
- Tudo bem contigo? Os seguranças às vezes exageram, ainda mais fora do Brasil. Desculpa.
- Tranquilo.
- Abraço.
A porta do elevador se fechou. Pelé se importa com as pessoas, qualquer uma, foi o que pensei. Não o vi jogar, mas também não vi as naus de Cabral em nossos mares e sei bem que ele descobriu o Brasil. Entre erros e acertos de uma vida de 75 anos, restará o mito que atravessa gerações cada vez mais popular. Deve ser por isso que milhares cantaram nos estádios da Copa, esquecendo Neymar, Messi ou qualquer outro: "Mil gols, mil gols, só Pelé..."
É isso.
Só Pelé.
*ZHESPORTES