Era uma noite de quarta-feira úmida e chuvosa como tantas dos invernos portoalegrenses. Ainda em ZH, mas já desligando o computador, atendo o celular. Do outro lado, meu filho, de nove anos. Ele e minha mulher vinham me buscar, de carro:
- Pai, traz um lanche do bar?
Respondi o que todo pai responde a um filho pouco antes das refeições.
- Não, aguenta a fome até a janta.
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O Pedro nunca aceita ser a penúltima palavra, o que ainda vai me causar alguns problemas, mas isso não importa agora.
- Pai, o lanche não é para mim. É para uma pessoa com fome na rua.
Não me surpreendi. O Pedrinho já tinha decidido dar um jogo seminovo de rodas de skate para um menino, depois de vê-lo se equilibrando sobre cacos carecas redondos numa praça. Decidiu, foi lá, conversou com o piá, mais ou menos da idade dele, e combinaram tudo. Então estou acostumado, de certa maneira.
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Conversamos um pouco. Ele tinha avistado, numa das esquinas da Avenida Ipiranga, um jovem sujo, pés descalços, desdentado e esfarrapado. Duvido que tivesse 15 anos, e posso apostar que foi o que o impressionou. Não queria dinheiro. Não falava. Apenas avançava dois passos, em silêncio, da calçada até a rua, a cada sinal vermelho, com um papelão cinza erguido acima dos ombros onde estava escrito assim:
- Tenho fome. Só preciso de um lanche. Obrigado.
Expliquei ao Pedro que o certo é ensinar a pescar, e não só dar o peixe. Repeti o que aprendi com meu pai, que não nasceu em berço esplêndido. A esmola é o combustível da preguiça. E, de certa forma, o lanche era uma esmola. Aquele menino não poderia se alimentar eternamente da benevolência de quem se comovesse com a cena de rua. Nosso gesto seria apenas um paliativo, uma mentira para nos aliviar a consciência. Não disse exatamente assim, mas essa foi a lição. Só que a última palavra tem de ser do Pedro.
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- Sim, mas e nós vamos deixar o guri com fome, neste frio? Acabamos de comprar uma chuteira de R$ 200 e não podemos dar um lanche para ele?
Os pés das crianças aumentam rapidamente, o que é péssimo para as finanças familiares. Ele voltava do shopping quando avistou o adolescente na sinaleira. Pensei rápido:
- Feito. Vou comprar um sanduíche e um suco aqui no bar de ZH.
Enquanto descia as escadas, uma dúvida intrigante: por que eu tinha concordado? Teríamos de voltar à esquina, tarde da noite. Porto Alegre é uma cidade insegura. As pessoas estão entregues à própria sorte.
Chovia.
Talvez o menino nem estivesse mais na sinaleira. Talvez fosse um golpe. E se fôssemos assaltados? Voltamos lá, encontramos o guri, o Pedro entregou o lanche e recebemos de volta um sorriso acompanhado de um agradecimento, pronunciado com total clareza e sem erros de concordância.
- Muito obrigado por perderem um pouco do tempo de vocês comigo.
Uma punhalada com lâmina de aço. Ainda assim, por que concordei com aquela caridade brega, se discordava do contexto? O estalo me veio no dia seguinte, ao ouvir o presidente do Atlético, de Madri. Enrique Cerezo se cansou de oferecer milhares de euros a mais para Carlitos Tévez. Ele preferiu trocar a Juventus pelo seu time do coração, o Boca Juniors. A uma rádio espanhola, Cerezo reconheceu a derrota. E desabafou:
- É duro competir com o sentimento.
Aí está. Foi o sentimento que moveu o Pedrinho, na sabedoria de seus nove anos, a insistir naquele lanche. E foi o sentimento orgulhoso de ver um filho se comover com a injustiça e a dor alheia que me fez concordar com ele.
Tévez, no auge da carreira, aos 31 anos, não jogará de graça na Bombonera, é claro. Mas perderá dinheiro. A compensação virá em carinho, respeito e admiração de uma nação, que a torcida do Boca é uma nação. Outros jogadores já agiram assim. Não o fariam em começo de carreira, mas não se trata disso. Juninho Pernambucano encerrou a carreira no Vasco recebendo R$ 1 por mês, só para citar um exemplo recente. Sebastian La Brujita Verón voltou para Estudiantes a pedido do pai, a lenda Juan La Bruja Verón, mandando Catar, China e alhures às favas. Já Leo Moura só não foi para o Vasco esta semana por pressão rubro-negra nas redes sociais.
Feio.
Este é o Grande Mal do futebol pós-escândalos de corrupção, na Fifa e com seus tentáculos na CBF. Precisamos de menos dirigentes, empresários e jogadores que só pensam em mais e mais dinheiro. Precisamos é de mais sentimento, isso sim.