O senhor atarracado e de cabelos grisalhos desgrenhados chega sorridente ao saguão do Hotel Deville, a casa do Shakhtar Donetsk em Porto Alegre. Passa batido pelos empresários de jogadores que congestionam o caminho e se apresenta um pouco ofegante. No lobby do hotel, é recebido pelo francês Franck Henouda, o representante do Shakhtar no Brasil.
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- Olá, tudo bem? - pergunta em um português arrevesado, pontuado por termos em espanhol e italiano.
Mircea Lucescu, 69 anos, se sai bem no português. Também domina o russo, o ucraniano, o inglês, o espanhol, o italiano e, é claro, o romeno da sua terra natal. Se bem que Lucescu deixou de ter terra natal.
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Virou do mundo há algumas décadas. Começou como técnico na Romênia, em 1979, trabalhou na Itália (Pisa, Brescia e Regina, entre 1990 e 1997, e Inter, em 1999), em dois dos três grandes de Istambul (Galatasaray e Besiktas) e desembarcou em Donetsk em 2004. Empreendeu o projeto de transformar o clube do leste ucraniano em potência europeia.
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Lucescu acredita que meio caminho já foi andado. A vinda ao Brasil seria mais um passo no processo de desenvolvimento do clube. Fora de campo, divulga a marca. Dentro, dá rodagem a jovens jogadores ucranianos. E permite à legião brasileira voltar para casa, jogar diante da família e dos amigos. Um afago nos diamantes que Lucescu pinça brutos por aqui e lapida na fria Ucrânia.
O técnico revela paixão pelo nosso futebol. Lembra de excursão feita com a seleção romena em 1968, com jogos de Belém a Porto Alegre, fala de outra gira pelo país com o Dínamo Bucareste. A técnica dos nossos jogadores o encanta. A postura deles o decepciona. Nesta entrevista exclusiva de quase meia hora concedida nesta quinta-feira, Lucescu diz o que precisamos ouvir.
- Há jogadores talentosos, mas que não são preparados para o futebol mundial. Para mim, o que gera a dificuldade é a educação. Culpa dos agentes, que querem trocá-los de clube a cada ano, a fim de ganhar mais dinheiro.
Confira a seguir, trechos da conversa com o técnico romeno do Shakhtar Donetsk:
Por que realizar uma pré-temporada no Brasil?
Jogando em um país socialista, que não te deixava sair, o contato com o futebol brasileiro foi muito importante para mim (antes de embarcar para a Copa do México, em 1970, a Romênia fez uma gira pelo Brasil - Lucescu era um dos atacantes da seleção). No México, ficamos em primeiro no grupo e nos classificamos bem. Foram os jogos pelo Brasil que nos ajudaram na campanha, com certeza. Éramos um time muito jovem, eu tinha 22 anos. Por isto, agora, decidi fazer o mesmo com os meus jogadores. Queria tirar o Shakhtar da Ucrânia. Mesmo com todos os riscos, jogando contra alguns dos melhores times brasileiros.
Haverá uma segunda turnê brasileira? Na próxima temporada, por exemplo?
Gostaria muito de voltar. Mas com mais tempo e não jogando a cada dois dias. Fizemos isto para poder cobrir os custos da viagem. Enfrentamos bons times, que sempre tiveram o apoio de suas torcidas, ajuda dos árbitros e trocando vários jogadores, enquanto nós nem tínhamos tanta gente assim para mudar. Contra o Atlético-MG (derrota por 4 a 2, no Independência), houve desatenção no primeiro gol, o goleiro falhou no segundo, depois levamos outro em escanteio... Criamos sete oportunidades de gol e fizemos dois. Não fiquei contente com o jogo e esperava resultados melhores, admito (perdeu para Bahia e Atlético-MG, empatou com o Flamengo). Ainda temos dois jogos (contra o Inter, nessa sexta-feira, no Beira-Rio, e contra o Cruzeiro, em Brasília, domingo), mas não quero perder jogadores para a Champions (no dia 17 de fevereiro começará a enfrentar o poderoso Bayern de Munique pelas oitavas da Liga dos Campeões).
E o desempenho do Shakhtar no Brasil?
Esperava mais dos meus jogadores brasileiros. Eles estavam mais habituados com estes gramados, saíram cedo daqui, queria apresentá-los ao Brasil outra vez. Eles jogam em suas cidades, para os amigos, para a sua torcida, era algo muito importante para mim.
Por que o senhor invadiu o campo no Independência?
Justamente porque esperava mais do meu time, como um todo. Depois que entrei (após um pênalti não marcado pelo árbitro, quando o jogo já estava 4 a 0 para o Atlético), meus jogadores mudaram completamente. Após a minha intervenção, eles passaram a dominar o Atlético e poderiam ter feito até três gols. Mas estou feliz com a nossa turnê. Precisávamos apresentar o Shakhtar ao Brasil, precisávamos ter uma imagem internacional. Somos o time europeu com o maior número de brasileiros (13).
Bernard disse que não aconselharia jovens a se transferirem para a Ucrânia.
Só ele. Douglas (Costa) é jovem. (Alex) Teixeira é jovem. São todos da mesma idade. Fred joga sempre. É perfeito. Os dois melhores da equipe são Fred e Teixeira. Não saem nunca. Querem jogar sempre. Estávamos perdendo para o Atlético, e eles pediram para permanecer em campo. Eles são jogadores de Seleção. Bernard tem que demonstrar em campo que é homem. Bernard só chora. Só veio tomar dinheiro. Sofro, mas creio que todos querem sofrer para ganhar 300 mil euros por mês.
É despreparo?
Há jogadores talentosos, mas que não são preparados para o futebol mundial. Ronaldinho foi para um PSG menor que o atual e parou no Barcelona. Romário e Ronaldo começaram no PSV (Holanda) e foram para o Barcelona. Outros têm que fazer nome. Lucas, Pato, Robinho... Por que não deram certo? Porque quando entraram nestes times, com 18 anos, 19 anos, os clubes já queriam resultados imediatos. Aí, eles chegam e partem. Trabalho com 13 brasileiros. Para mim, o que gera a dificuldade é a educação. Culpa dos agentes, que querem trocá-los de clube a cada ano, a fim de ganhar mais dinheiro. O jogador precisa saber que contrato assinado deve ser respeitado. Não quero que eles amem o Shakhtar. Eles têm que amar Inter, Grêmio, Atlético-MG... Mas quando chegarem aqui, quero o máximo. Já tive aqui Fernandinho (hoje no Manchester City) e Willian (no Chelsea). Tenho jogadores que em breve estarão nos grandes da Europa: Fred, Luiz Adriano, Alex Teixeira, Douglas Costas e Taison. Podem ter sucesso. Um em cada clube. Todos juntos fica mais complicado. Cada um tem que apoiar o outro, jogar para o time, sem individualismo.
O brasileiro é mais individualista do que coletivo?
Sim. Porque aqui se cresce jogando assim. A torcida aplaude um drible, não se importa com a organização tática. Não há juízo de valor, há juízo estético. Bernard declarou que eu não colocava os mais habilidosos para jogar? O talento precisa ser aliado à disciplina, ao coletivo.
Mesmo assim, o senhor pedirá mais jogadores brasileiros?
Vi dois ou três jogadores. Mas no momento, não. Vamos jogar com os que temos. O presidente (Rinat Akhmetov) ama os brasileiros. Lá é tudo perfeito, e ele paga em dia.
O senhor jogou contra Pelé. Conheceu uma outra Seleção Brasileira. A goleada de 7 a 1 que o Brasil levou da Alemanha tem a ver com este tipo de mentalidade individualista?
Sim. Uma equipe brasileira está sempre preparada para vencer. Não está preparada para sofrer, para trabalhar. O jogador brasileiro sempre diz que Deus decide o resultado. Isto não é correto. Tem que trabalhar para chegar a este ponto. Agora, com Dunga, um grande trabalhador, será um outro tipo de Brasil: mais exigente, com um pensamento de grupo. Dunga é um técnico que passa motivação. Daquela outra maneira, na Copa, e contra uma máquina de futebol com a da Alemanha, é impossível vencer.
Com 13 brasileiros, ucranianos e um capitão croata no time é possível se entender?
Os brasileiros têm uma cultura deles. Em uma mesa para quatro pessoas, eles fazem de tudo para encaixar 10. É impossível fazê-los ficar com os outros. Isto eu entendi. Não posso forçá-los. São pessoas muito alegres, mas esta alegria se transforma em superficialidade, em relax. Eles ficaram surpresos quando eu proibi a batucada, as cantorias e os fones de ouvidos antes dos jogos. Não falo de todos. São fantásticos. Mas pensam que podem se preparar para um jogo dois minutos antes de entrar em campo. Precisam se concentrar mais, se preparar para os jogos. Pensam que pode resolver tudo na individualidade. E não é assim.
Como é ter que sair de casa, de seu estádio, por causa da guerra (o clube se transferiu de Donetsk para Kiev, por causa dos recentes conflitos)?
Não é fácil. Nosso presidente organizou tudo para que os jogadores não sofressem com a ida para Kiev. Estamos lá, é uma cidade linda. Temos toda a estrutura necessária, mas espero voltar rapidamente a Donetsk. Estamos indo muito bem em Kiev. Só a nossa preparação foi um pouco conturbada. Seis jogadores não queriam voltar (devido à guerra). Kia (Joorabchian, o iraniano que esteve envolvido 10 anos atrás com o Corinthians) tentou provocar uma situação para tentar tomar nossos jogadores (tentou forçar a saída de alguns atletas, entre eles Douglas Costa). Não foi certo. Espero que os meus jogadores tenham aprendido algo com este episódio.