Esportes

Mulheres e futebol

A declaração de independência de uma estrela do futebol norte-americano

Megan Rapinoe é uma das poucas atletas famosas a ter assumido a homossexualidade no auge da carreira

Doug Mill / The New York Times
A meio-campista Megan Rapinoe comemorando a vitória sobre o Japão nas Olimpíadas de Londres em 2012

Com o início da temporada do futebol feminino nos EUA, as estrelas da seleção que brilharam nas Olimpíadas de Londres vão tentar fazer bonito em casa.

A atacante Abby Wambach está jogando numa equipe de Rochester, em Nova York; a bela Alex Morgan está em Portland, no Oregon e a goleira Hope Solo - e participante do "Dancing With the Stars" - estaria em Seattle se não estivesse se recuperando de uma lesão do pulso.

Megan Rapinoe, porém, não está com elas, o que, na verdade, nem é motivo de surpresa, pois sempre foi a diferente - a começar da posição de meio-campista, de apoio, que permite que as outras brilhem. E ela nunca foi garota propaganda de uma linha de produtos para a pele (Solo) nem teve o desejo de posar com o corpo pintado (Morgan).

Além disso, é uma das poucas atletas famosas a ter assumido a homossexualidade no auge da carreira.

Megan não se importa em ser vista como uma pessoa difícil de rotular - Prefiro me considerar excêntrica - disse ela recentemente, caminhando pelas ruas de pedras e passando por bistrôs e lojas dessa cidade francesa - Só gostaria de saber quem é que, tendo a chance de fazer o que eu faço, não agiria exatamente da mesma forma.

Não é nem que a jogadora de 27 anos não apoie o novo campeonato, a Liga de Futebol Feminino Nacional; ao contrário - tanto que tem planos de participar dele em meados do ano.

Acontece que logo depois de os EUA vencerem o Japão na disputa pelo ouro em Wembley, Londres, em agosto passado, ela recebeu uma mensagem no Facebook de uma pessoa relacionada ao Olympique Lyonnais, time francês que já ganhou seis campeonatos franceses e dois títulos europeus consecutivos. Era como se o Chicago Bulls de Michael Jordan ligasse.

Depois de um trabalho de investigação por parte de seu empresário, Rapinoe percebeu que o interesse era genuíno - e no início de janeiro ela chegou por aqui e se acomodou num apartamento mobiliado de dois quartos que tem um aquecedor que funciona de vez em quando, mas com uma conexão de Internet sólida.

Sua vida é simples: ela dirige um Smart pela cidade, fala um francês truncado nos cafés e museus que visita e joga no melhor time de futebol feminino do mundo.

Para isso, Rapinoe é muito bem paga: são onze mil euros por mês, pouco mais de US$ 14 mil, muito mais do que qualquer uma ganharia na Liga norte-americana, mas o salário "muito bom" (como ela mesma admite), não foi o único atrativo. E mesmo o futebol, mais fluido e bem jogado que nos EUA, foi só um dos motivos que a fizeram mudar.

O que mais a atraiu foi a possibilidade de "desaparecer" em outra cultura. Natural de Palo Cedro, na Califórnia, ela foi criada numa casa onde havia seis crianças, um galinheiro, cães, gatos e o que parecia uma fonte inesgotável de lagostins a seu alcance; só o fato de agora morar numa cidade conhecida por seu festival de luzes, pelas vielas estreitas, pela arquitetura e gastronomia de destaque - sem contar a paixão pelo esporte que adora - às vezes é difícil de assimilar.

E é disso que Rapinoe mais gosta. Ela faz compras. Explora a cidade. Fala o idioma (ou pelo menos tenta), embora durante o que lhe pareceu uma eternidade a única frase que conseguisse falar tenha sido - Je suis desolée, je ne parle pas très bien français ("Desculpe, mas não falo francês muito bem").

- No começo eu brincava com o pessoal dizendo que me sentia um pouco como Helen Keller, tipo não conseguia me expressar - conta ela -Claro que é exagero, mas tem um fundo de verdade. Nos EUA, emito a minha opinião sobre tudo e todos; aqui, nem tanto, mas só porque não falo a língua direito.

Ela faz uma pausa e depois completa - Do jeito que eu falo sei que parece difícil, mas adoro esse desafio.

A verdade é que a jogadora tenta se encaixar como pode; facilita também o fato de gostar e se adaptar ao estilo de vida europeu - pelo menos do ponto de vista do futebol, já que os passes certeiros e o olho clínico da atleta sempre combinaram mais com as jogadas do Velho Mundo do que as das norte-americanas, que geralmente se destacam mais pelo tamanho e pela velocidade.

- Não é difícil entender por que ela gosta de lá - afirma Julie Foudy, antiga estrela da seleção dos EUA e atual comentarista da ESPN - Ela sempre foi uma jogadora que ama as sutilezas do jogo e o bom e velho toque de bola.

E acrescenta - O lance com a Megan é que ela pode passar despercebida durante os 90 minutos e você achar que não fez nada, mas se assistir ao vídeo, vai ver que criou todas as chances de gol.

Quanto às conversas da atleta com o técnico falador do Lyon, a situação às vezes beira o cômico, com ele tentando passar as estratégias através de uma combinação de inglês truncado e gestos; apesar de todas as dificuldades, ela parece ter se adaptado bem, tendo marcado três gols em nove partidas.

Quando chegou para treinar com a equipe pela primeira vez, Rapinoe ouviu vários comentários surpresos das colegas sobre sua aparência. "Ela não é grandona como as outras", ouviu uma dizendo para a outra, o que acabou lhe servindo de lembrete - A percepção geral é a de que os EUA são um time de gigantonas que chega empurrando todo mundo, mas isso não tem nada a ver comigo, revela.

Por outro lado, a reação também a fez se sentir mais à vontade, pois provou que não é a americana típica. Bem ou mal, a observação a fez se sentir parte do grupo.

A saída do armário

Talvez o único aspecto de sua vida em que se sinta menos à vontade na França do que nos EUA seja o relacionado à sua sexualidade. Ela revelou à família que era lésbica há oito anos - e confessa que não foi uma tarefa fácil, uma vez que moravam de frente para uma igreja.

Eventualmente Rapinoe revelou sua homossexualidade numa entrevista à revista Out, pouco antes das Olimpíadas, e desde então sempre falou sobre o assunto abertamente. Sua mãe, Denise, confessou se preocupar com a reação de alguns segmentos da torcida - tem muita gente de famílias convencionais que pode não aceitar - explicou - mas a jogadora afirma que a grande maioria é muito receptiva.

Já na Europa, ela sente um desconforto constante - e nem é por causa das colegas de time, mas mais por causa de um sentimento social intangível. Talvez seja a essa sensação a que Robbie Rogers, o jogador da seleção masculina dos EUA que assumiu sua homossexualidade em fevereiro, se referia quando afirmou que se voltasse a jogar seria na sua terra natal e não na Inglaterra, onde competiu recentemente.

Embora muita gente pense que os europeus sejam progressistas e liberais em geral, Rapinoe diz que as percepções a respeito das mulheres nem sempre acompanham esse ritmo. Um assessor do presidente do time do Lyon foi duramente criticado depois de sua participação num programa de rádio no qual se recusou a responder uma pergunta feita por uma ouvinte por acreditar que as mulheres "deviam voltar a cozinhar".

A atleta confessa que levou um susto ao perceber que o machismo ainda existe na Europa, sim, e está em todo lugar.

Metas realistas

Ultimamente ela tem sentido mais o fato de estar longe de casa principalmente porque torce para o novo campeonato dar certo e para que o esporte tenha um destaque para lá de significativo no cenário esportivo nacional.

Como outras atletas, sonha com estádios cheios e confederações estaduais com recursos para investir. Por que não? Ela começou a carreira da maneira tradicional, usando um uniforme rosa que - praticamente a engolia de tão grande que era - relembra a mãe.

Rapinoe foi reconhecida no grupo de meninas de seis anos e acabou jogando em times famosos - inclusive no universitário masculino de Portland até ser convocada para a seleção, em 2006, da qual fez parte por 72 jogos, marcando 22 gols quando ainda se recuperava de duas lesões sérias no joelho.

- É claro que quero ver o campeonato dando certo e todo mundo curtindo- diz ela - mas também quero que o país seja realista.

As duas tentativas anteriores de montar um torneio feminino nacional falharam devido a problemas financeiros e má gestão. A nova versão tem o apoio da Federação Norte-Americana de Futebol, o que, segundo a jogadora, é um detalhe importante. Ela só pede a todos - organizadores, jogadoras e torcedores - que ajustem suas expectativas.

- Se acho que precisamos de um campeonato? Claro que sim. Se acho que tem que ser a melhor coisa que inventaram depois do pão fatiado? Não necessariamente. Acho que foi aí que erramos no passado. É importante montar uma disputa nacional, mas seria bom se parassem de achar que vai ser um torneio europeu. O objetivo não é esse - conclui ela.

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