Como parte do projeto Saudade do Esporte, o Grupo RBS relembra nesta semana a conquista do Inter no Mundial 2006 sobre o Barcelona.
No dia seguinte após Fernandão levantar a taça mais importante da história colorada, o colunista Luis Fernando Verissimo publicou na coluna em Zero Hora emocionante texto que pode ser conferido no vídeo acima, na voz de Adroaldo Guerra Filho, ou na íntegra abaixo.
Não me acordem
Coluna publicada em ZH em 18 de dezembro de 2006
O passado é prólogo. Certos acontecimentos dão força a esta frase, transformam tudo que veio antes em preliminar, em mero antecedente. Ou, para usar outro termo literário, em prefácio. Você se dá conta de que tudo que houve até ali — toda uma vida, toda uma história — foi simplesmente preparação para aquele certo momento, depois do qual nada será como era. E o passado ganha uma lógica que não tinha. Você passa a entender tudo em retrospecto.
Tudo tinha um sentido que você apenas não percebera, na falta do momento máximo. A vitória do Grêmio em Tóquio em 1983, os anos medíocres, o quase rebaixamento, as finais desperdiçadas, os vexames, as desilusões — tudo era prólogo para ontem.
Agora ficou claro, agora ficou lógico. Os próprios destaques como melhor do mundo conquistados pelo Barcelona e pelo Ronaldinho faziam parte da preparação para o nosso 17 de dezembro, que não teria o mesmo gosto épico se o adversário fosse outro. Tudo era armação para aumentar o brilho e o drama do nosso momento máximo. Tudo se encaixava.
Ou você pensa que a saída do Pato e do Fernandão, ontem, foi obra do acaso, esse autor sem imaginação? O resultado de ontem veio sendo construído aos poucos, desde antes da fundação do Internacional, antes de Pedro Álvares Cabral, antes de Homero e das Pirâmides. E eu sabia que havia uma justificativa histórica para o topete do Gabiru.
Há dias a leitora Poliana Lopes me lembrou de um texto que eu tinha escrito, e esquecido. Ela teve a gentileza de me mandar o texto, e eu peço licença para repeti-lo agora. Era assim:
"Meu caro colorado. Desculpe esta carta a céu aberto, é que não sei nem seu nome nem seu endereço. Na verdade, só vi você na rua, de mãos dadas com seu pai e cercado pelos seus irmãos, que vestiam a camiseta do Grêmio (suponho que fossem seu pai e seus irmãos). Você estava com a camiseta do Internacional.
Quase parei o carro para olhar melhor, mas não era miragem. Você tinha uns quatro ou cinco anos e estava de camiseta vermelha! Seu pai vestia uma camisa branca exemplarmente neutra, mas posso imaginar como tem sido a sua vida em casa. As provocações, os petelecos, aflauta, o martírio.
E lá estava você de camiseta vermelha, o antigo escudo orgulhosamente no peito, desafiando todas as provações. Não sei se você sabe que vários colorados da sua geração não agüentaram e trocaram de time. Levaram pais e avós ao desespero, mas não suportaram a pressão do sucesso gremista. Você aguentou. Você não sabe, mas é um herói.
E fiquei pensando que, quando for a nossa vez de novo, teremos certamente a torcida mais dedicada, fiel, convicta e feliz do Brasil. Porque será a torcida dos que resistiram. Aguente só mais um pouco. Meus respeitos."
Mas isto tudo também pode ser um sonho. Se for, por favor: não me acordem.