Grosseiramente, é possível resumir o que causa o fenômeno neve ao seguinte combo de fatores: nuvens carregadas no céu, temperatura baixíssima e elevada umidade no ar. Porto Alegre apresentava todos eles na noite de segunda-feira, quando Inter e Ceará entraram no gramado do Beira-Rio para disputar a décima quarta rodada do Brasileirão 2018.
Para os mais de 23 mil (mais de vinte e três mil!) que esfregavam as mãos para se aquecer durante a gélida partida, ficou claro em algum momento que nevaria no estádio. Não havia dúvidas. A sensação térmica de -7ºC, a chuva, as nuvens tomando conta do céu... o cenário que milhares de brasileiros vão buscar em Gramado se formou na Avenida Padre Cacique.
E nevou.
Do céu, o que caía era neve, não água. No campo, os jogadores começaram a sentir os efeitos da nevasca. Quem a melhor assimilou foi - pasme - o time do nordeste do Brasil. O Ceará travestiu-se de gelo. Personificou um gigantesco e intransponível iceberg à frente da sua área. Eram onze atrás da bola. Eram onze com o intuito único e exclusivo de bloquear o nosso caminho.
A noite ficava cada vez mais fria.
O ar cada vez mais úmido.
A geleira preta e branca crescia a cada segundo.
Segundo tempo. O gramado em volta da goleira do placar do estádio Beira-Rio aos poucos se transforma na Patagônia. Dez minutos: o branco da neve complica a percepção das linhas de jogo. Quinze minutos: a geleira listrada ultrapassa a marca dos 20 metros de altura. A combinação de frio, vento, neve e chuva a faz maior e mais forte a cada volta do relógio. Não há mais possibilidade de onze homens transporem essa barreira. O fenômeno meteorológico mais absurdo das últimas décadas, A Geleira Cearense, fazia a sua primeira vítima: o Sport Club Internacional.
Aí, como situações desesperadoras requerem medidas desesperadas, Odair Hellmann lançou mão da única arma conhecida pelo homem em um enfrentamento como esse. Chamou, do aquecimento atrás do gol, a única saída em meio àquela nevasca insuperável. O povo logo entendeu e se assanhou nas arquibancadas. Uma explosão de gol tomou conta do Gigante enquanto o maior camisa 10 da história do futebol gaúcho se preparava para entrar no gramado.
Andrés Nicolás D'Alessandro carregou o seu inferno particular para o campo do Ceará. Se transformou - ele, sozinho - numa espécie de aquecimento global portátil. Não há geleira que resista a boas e constantes doses de calor, poluição e loucura. E foi isso o que D'Ale fez: poluiu as linhas gélidas do Ceará. Soprou fumaça negra no céu do Beira-Rio como um Saci ansioso faz com o seu cachimbo.
D'Alessandro se espalhou pelo gramado e pelo ar.
Rompeu linhas de defesa e a camada de ozônio.
Derreteu a geleira cearense.
O time do nordeste sucumbiu à força da natureza que é D'Alessandro. Pouco a pouco o gelo foi dando lugar a água, que se espalhava pelo césped e era dissipada pelo copadomundístico sistema de drenagem do Beira-Rio. A defesa do Vozão virou líquido, se esvaiu em gotas, virou nada. O gramado já voltava a reluzir verde quando Pottker empurrou um rebote do goleiro para as redes. Era o golpe fatal. Vestindo o vermelho mais quente das últimas temporadas, o Inter derrotava seu gélido, impassível e retrancado rival.
Ao final do jogo, nada mais havia de gelado. Nem neve, nem chuva, nem nuvens. O céu se abriu sobre o Beira-Rio. Voltamos para casa aquecidos, acalorados, suando. Os casacos já eram dispensáveis. As tocas foram ficando esquecidas pelas calçadas. Presenciamos um legítimo fenômeno natural, uma força de tamanho incalculável e indescritível.
Senhoras e senhores, D'Alessandro está de volta.