A Série B, por natureza, já não é lá muito atraente. Mas há uns jogos que parecem especialmente repugnantes, assim, quando a gente vê quem vai se enfrentar. Para o colorado que pegou a tabela e leu "Inter x Luverdense, terça-feira às 21h30", absolutamente qualquer outro plano poderia parecer mais interessante do que trajar duas ou doze japonas, luvas, gorro e cachecol e partir para o gélido Beira-Rio na noite mais fria do ano em Porto Alegre.
Voltei para casa com a certeza de ter vivido um daqueles jogos que serão contados para os meus pequeninos netos quando a seguinte cena acontecer:
- Vovô, qual foi o jogo mais maluco que você já viu no estádio? - questionarão, em uníssono, ansiosos por alguma épica história.
- Inter e Luverdense, meus queridos. Inter e Luverdense. - responderei, encontrando na surpresa dos seus olhares um combustível extra para narrar a epopeia a seguir.
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Entrar no Gigante e olhar em volta era ter a certeza de que ali, reunidos, estavam alguns dos mais valorosos colorados vivos. Era frio. Era muito. E, surpreendentemente, não éramos poucos. Passávamos dos 10 mil quando o trio de arbitragem - ah, o trio de arbitragem... - pisou no gramado, conduzindo os jogadores à solenidade pré-jogo.
- TU É UM BANDIDO MESMO, CARA! DÁ UMA PRA NÓS! SÓ UMA!
De cara, uma bola levantada na área encontrou testa de Nico López e, aí, as redes do time do Mato Grosso. Eu ainda estava comemorando o gol quando ouvi um senhor, umas três poltronas à direita, começar a digerir impropérios para o bandeirinha que assinalava o impedimento do atacante. Eram três minutos de jogo e já estávamos implorando por uma marcação da arbitragem a nosso favor.
O tento invalidado de Nico mexeu com a torcida e com o time. Passamos a enfileirar chances perdidas. Foram inúmeras. Trocentas. Tantas e tantas que se passaram mais de 40 minutos. O primeiro tempo acabava num oxo que, por óbvio, despertava o diabinho em nossos corações.
1. MEDO
Ainda ouvia as vaias dirigidas aos jogadores que saiam de campo quando, nos corredores da inferior, comecei a prestar atenção numa moça que mandava o seguinte áudio no whatsapp:
- É, pai, tá ruim de novo. Vai ser a mesma coisa que o Criciúma. Hoje se empatar é lucro.
As coisas ficaram piores. Para mim, para a moça e para o pai dela. O segundo tempo fez com que qualquer esperança de vitória fosse levada pelo vento ártico que nos castigava. Criávamos e desperdiçávamos. Construíamos e éramos destruídos. Uma infernal repetição que substituía os sonhos de comemoração pela certeza de placar zerado. Já não se produzia mais aquele "Uh!" aos quase-gols. Cada jogada que acabava em defesa do goleiro nos dilacerava mais um pouco. A resposta para uma espalmada era uma coleção de palavrões que vinha de todos os lados da arquibancada.
Mais uma defesa sequer do arqueiro deles e explodiríamos. Não aguentaríamos. Quebraríamos tudo e todos que estivessem a nossa volta. Não haveria paz no vermelho.
Aí chegamos os 44 minutos do segundo tempo.
Aí o D'Ale cruzou.
Aí o Wink cabeceou.
Aí o goleiro espalmou.
Aí o Carlos pegou o rebote, com o goleiro no chão e a bola à feição.
Aí o Carlos encheu o pé.
Aí o goleiro - que estava caído dentro do gol depois da primeira defesa- se jogou como um peixe desesperado se debatendo por ar.
Aí ele defendeu.
Aí nós morremos.
Não explodimos, como eu previa. Não gritamos nada. Não xingamos ninguém. Nenhum vidro foi quebrado. Quando a mais clara das chances foi desperdiçada em dobro, quando o Diogo Silva (quem?) goleiro do Luverdense (oi?) se transformou em uma barreira intransponível, ficamos catatônitos. Olhei em volta. Vi a perplexidade estampada no rosto de todos os colorados ao meu redor.
- JÁ ERA! VAMOS CAIR PARA A C MESMO! - alguém gritou ao longe. O único grito em meio a um mar vermelho em estado de choque.
2. DELÍRIO
Ainda digeria a ideia de torcer para um clube na terceira divisão nacional quando o Carlos brigou com uma meia dúzia de caras deles e passou uma bola totalmente torta para a direita. Vi o auxiliar levantar a bandeira. Vi o juiz estender os braços, no famoso sinal da tal vantagem. Vi o bandeirinha colocar as mãos na cabeça. Quando olhei de novo para o lance, Joanderson já estava passando para Pottker marcar o gol mais lindo de toda a sua carreira.
O Beira-Rio explodiu.
Não em ira, não em revolta, mas em êxtase. Era mais do que um gol para nos dar a vantagem em uma rodada aleatória de Série B. Era como se, naquele momento, espantássemos os nossos fantasmas de inferioridade, de dificuldades, de sofrimento. Era como se as toneladas que pesam às nossas costas fossem retiradas, pulverizadas, destruídas de uma vez por todas.
Foi um gol libertador, esse do Pottker, e por ele vibramos mais do que em qualquer outro momento das nossas vidas. Não me lembro de ver o Gigante explodir assim. Venci Libertadores ali. Duas. Vi Gre-Nais, Sulamericana, Recopas, Gauchões... Nada se compara ao alívio, ao prazer, à felicidade que aquela cretina bolinha na rede nos proporcionou. Que gol infame! Que gol mais lindo! Se isso não é Prêmio Puskás, nada mais pode ser!
Depois do gol, parece que deu confusão. Parece que o jogo ficou um tempo parado. Parece até que teve mais jogo depois. Não vi nada disso. Nem eu nem os outros 10 mil que estavam lá comigo. Cantamos, vibramos, pulamos como há tempos não fazíamos. Como há tempos não nos deixavam.
- COMO UM CLUBE PODE SER TÃO IMENSO?! - gritava, eu mesmo, enquanto subia e descia os degraus da arquibancada.
Foi uma insanidade completa. Um caos total. A certeza do maior dos fracassos explodindo e se transformando na confirmação da grandiosidade da camisa que a gente veste. Que alívio. Que vitória.
- Eu sei que o vô está parecendo doido, meus netos. Mas, de algum jeito, eu sinto que uma parte de mim ainda está na arquibancada inferior do Beira-Rio, celebrando aquele gol contra o Luverdense. - é como eu estou pensando em concluir a história para os Carôllinhos.
*ZHESPORTES