São cerca de 5,5 milhões de colorados nesta final de Gauchão. E só um goleiro. Trata-se de Keiller da Silva Nunes, 20 anos, 1m93cm e gelado como um iceberg. Porque é consenso no Beira-Rio e na margem oposta do Guaíba, onde Keiller nasceu e cresceu, de que ele é um sujeito frio. Como foi na tarde com jeito de inverno do último domingo, em Caxias do Sul, quando sua vida mudou para sempre, e o destino o colocou como titular do Inter na decisão do Gauchão diante do Novo Hamburgo, neste domingo, a partir das 16h.
O coração do pai, Seu Antônio, 52 anos, acelerou de forma perigosa aos seis minutos do primeiro tempo contra o Caxias. Havia 10 anos, ele se preparava para ver o filho único como goleiro do time principal do Inter. Mas não imaginava que seria assim, de supetão, sem nem sequer um sinal prévio. Seu Antônio não pode se expor a emoções tão fortes assim. Quando Keiller tinha oito anos, ele teve de implantar uma válvula metálica em seu coração. A cirurgia o obrigou a se aposentar de forma precoce da função de manobrista e abastecedor na garagem da empresa de ônibus Ouro e Prata.
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Pode-se dizer que o coração do pai ajudou a fazer de Keiller um goleiro. O guri já se encantava com os uniformes diferentes e as acrobacias que a posição exigia. Em casa, sem muitos afazeres e com restrições de esforço, seu Antônio dedicou tempo total ao filho. Fazia parte da rotina deles bater bola, de leve na calçada da casa da família, no bairro Sans Souci, em Eldorado do Sul.
Os vizinhos perceberam a empolgação do guri e sugeriram que o levasse para a escolinha de futsal do bairro. Seu Antônio topou. Além de fazer o filho feliz, ocuparia seu tempo. Não imaginava a escalada do filho. Nas quadras, um técnico de um time amador gostou das defesas e convidou Keiller para jogar no campo. Não demorou até que fosse indicado para testes no Grêmio. Seu Antônio topou a ideia. Até porque o filho, sempre caladão, pouco se manifestava.
No CT do Cristal, Keiller entrou no segundo tempo. Bastaram só duas defesas para ser aprovado. Em ambas, Yuri Mamute, então a grande joia do sub-10 gremista, entrou cara a cara diante dele, que esperou o arremate, voou e mandou para escanteio. Foram quase quatro anos no Grêmio. Quando Keiller já havia trocado os treinos no Cristal pelo CT de Eldorado, perto de casa, seu Antônio foi chamado numa sala e ouviu o veredicto que assombra qualquer guri da base, o da dispensa. A razão seria maturação tardia.
Nem mesmo o histórico de pegador de pênaltis ajudou Keiller. Hoje técnico do sub-19 do Grêmio, o técnico Luiz Gabardo se lembra de uma final, por ironia, contra o Novo Hamburgo na sub-10. Ele defendeu dois pênaltis e garantiu o primeiro título de Gabardo.
Keiller não demonstrou abalo com a dispensa do Grêmio. É uma característica sua o controle emocional. Mas também não teve muito tempo para lamúrias. Logo em seguida, um treinador da base gremista que estava no Inter soube da dispensa e o levou para o Beira-Rio. Aos 13 anos, o goleiro iniciava sua trajetória no Inter, numa geração que tinha os zagueiros Eriks e Eduardo e os meia-atacantes Yan Petter e Ferrareis.
Foi mais ou menos nessa época que o guri deu o estirão e virou um adolescente espigado. Não demorou a ganhar espaço no Inter. Passou a ser olhado pelos treinadores de goleiros do clube como um diamante. As convocações para a seleções brasileira de base reforçavam a confiança. Nos juvenis, era o camisa 1 de Clemer. Foi nos juvenis que Keiller levou seu maior susto. Uma ruptura numa vértebra o tirou de ação por oito meses.
Quando chegou aos juniores, o goleiro precisou passar por um trabalho de ganho de massa. Havia ficado quase um ano parado. Foi reserva no primeiro ano, de Jacsson, e depois tomou conta da posição. Léo Martins, treinador de goleiros do sub-20, goleiro reserva do Santos campeão brasileiro em 2002, empolga-se ao falar de Keiller. Chamava-o de "Advogado". A razão, ele mesmo explica:
– Tu ias fazer algo, ele questionava. Sempre queria saber o que estava trabalhando, questionava a tática, porque jogava daquela forma. Isso é dele, sempre foi crítico. Estimulamos os goleiros aqui no Inter a serem dessa forma, a buscar a perfeição.
Martins aponta ainda outra característica de Keiller: a técnica. O treinador tem como padrão de bom goleiro o quanto suja o uniforme. Caso se embarre pouco, é porque estava bem posicionado. No caso do seu pupilo, a lavanderia quase sempre tinha o trabalho facilitado.
– É difícil pegar goleiro com a altura dele e aquela potência física. Suas percepção e a tomada de decisões são simples e seguras. Não é espalhafatoso. É da escola do Inter, de goleiros mais simples, como Taffarel, Alisson.
Giuliano Roxo, treinador de goleiros do Inter B, trabalhou com Keiller até Danilo Fernandes se lesionar, no começo de abril. É uma praxe do clube descer o terceiro e o quarto goleiros para que ganhem ritmo. Mesmo o conhecendo desde os juvenis, Giuliano ainda se surpreende com sua frieza.
– É muito bom goleiro, jogou bastante na base, sempre foi titular. Ele é muito frio, muito concentrado. Entrou na fogueira e conseguiu manter a tranquilidade.
Keiller é tão concentrado que passou a semana em regime de concentração espontânea. Evitou entrevistas, mesmo sendo um dos personagens da final. Foi preciso que seu assessor de imprensa, Rodrigo Russomano, o convencesse a posar para as fotos desta reportagem. O goleiro também pouco mudou a rotina. Fanático por futebol, assistiu a todos os jogos na TV. Mas abriu mão dos playoffs da NBA, sua outra paixão. As partidas entravam madrugada a dentro, e isso afetaria seu sono.
Nem mesmo seu Antônio, o parceiro de sempre, e a mãe, dona Silma, ouviram a voz do filho nesta semana. Keiller, que já não é de falar muito, ficou ainda mais calado. Também pudera. Aos 20 anos, é o único goleiro entre 5,5 milhões de colorados.
DE ONDE KEILLER?
Quem conta é o pai. Em 1996, ele a mulher, Silma, procuravam um nome para o filho que estava por chegar. Queriam algo diferente. Folheavam uma revista quando depararam com Keiller. O olho brilhou, e o som caiu bem aos ouvidos. Estava definido. Seria esse o nome do guri. Seu Antônio não lembra qual era a revista, tampouco quem era o Keiller ali mencionado.
– Gostamos do nome, era diferente – conta o pai, por telefone.
*ZHESPORTES