O título do Gauchão de 2000 foi mais um marco para o Rio Grande do Sul do que propriamente para o Caxias. Ainda que dois anos antes o Juventude tenha vencido o Estadual e recuperado a conquista para o Interior após quase 60 anos (em 1954, o Renner foi campeão, mas era um clube de Porto Alegre), a conqusta grená teve o charme especial de o "pobre superar o rico". A diferença econômica do Ju da Parmalat e o Inter de 1998 era bem inferior ao do Caxias da virada do milênio para o Grêmio da ISL.
Mas apesar da festa enorme e do desempenho que assombrou o RS, o título deu um reconhecimento maior para Tite do que para o clube, de certa forma. O treinador expandiu seus horizontes como profissional e, desde então, cresceu na carreira, ganhou todos os troféus que o esporte pode oferecer aos clubes e chegou à Seleção.
O Caxias, nesses mesmos 20 anos, não conseguiu nem sequer subir à Série A do Brasileirão. Esteve próximo disso, é verdade, já na temporada seguinte à do Gauchão, mas caiu na última rodada da Segunda Divisão. Pior: andou até na Divisão de Acesso do Estado, após o rebaixamento em 2015. É bom dizer que se tratou de uma exceção.
O normal é o time fazer campeonatos seguros e ir longe. Chegou a ser campeão de turno em 2012, conseguiu avançar em diversos mata-matas. Mas, nacionalmente, anda pouco. Até por isso, o foco agora é na Série D. Ninguém no clube esconde que subir para a Terceira Divisão é o objetivo da temporada.
No Grêmio, a perda do título causou machucados que só foram cicatrizados a partir da contratação justamente do treinador que lhe causou o vice. Com Tite, a partir de 2001, o clube venceu a Copa do Brasil, a última conquistantes de um hiato de 15 anos sem troféus mais relevantes.
O time balançou em 2003 e caiu para a Série B em 2004, mas após a volta triunfante, raramente ficou fora do topo no futebol brasileiro. E desde 2016, voltou a empilhar troféus, a partir do penta da Copa do Brasil, com a chegada de Renato Portaluppi. O time valoriza o Gauchão, vê a possibilidade concreta de garantir um título na temporada. O tri estadual, para o Grêmio, não vem desde 1987 (o terceiro de uma sequência de seis consecutivos).
Vinte anos depois, Grêmio e Caxias repetem uma das finais mais badaladas do Gauchão. Resta ver se as consequências de 2020 serão as mesmas de 2000. A seguir, como estavam os clubes naquela decisão e na atual.
Grêmio
Montagem do grupo
Para entender como foi montado aquele time, é preciso voltar para os dias que agitaram o verão de 2000. Uma empresa suíça de nome International Sports Leisure (ISL) anunciava o interesse de investir no Brasil e, dentre os clubes escolhidos, estava o Grêmio. A promessa era disponibilizar US$ 50 milhões para a direção buscar reforços. Em troca, os europeus reformulariam e administrariam o Estádio Olímpico, que teria até um shopping.
Como "prova" dessa intenção, ajudaram o Grêmio a buscar reforços badalados: o volante argentino Astrada (El Jefe, capitão do River Plate), o centroavante Gabriel Amato (também argentino, que estava no Rangers), Zinho, multicampeão brasileiro e meia titular na Copa de 1994, Paulo Nunes, ídolo dos anos anteriores. Eles se somariam a Ronaldinho, maior talento surgido na base tricolor. O técnico seria Emerson Leão, que havia comandado a campanha de recuperação do Inter e evitado o rebaixamento colorado em 1999 (e eliminado o Grêmio no clássicos da Seletiva para a Libertadores).
O mau começo do ano, com a eliminação precoce na Copa Sul-Minas, fez a direção demitir o treinador. Para seu lugar, foi contratado Antônio Lopes, que vinha do título da Libertadores com o Vasco dois anos antes.
Vinte anos depois, o time que chega na decisão do Estadual ainda é fruto de uma base que teve começo entre 2015 e 2016. Peças-chave da equipe, Geromel e Maicon já estão no clube há meia década. Outros jogadores importantes, como Kannemann (quatro anos), Cortez (três) e Alisson (dois), participaram de conquistas relevantes.
Há também atletas formados na base, como Matheus Henrique, Jean Pyerre e Pepê, que galgaram seus espaços até se fixarem como titulares. Em 2020, os reforços foram Vanderlei, Orejuela (e Victor Ferraz) e Diego Souza (que deve ficar de fora do primeiro jogo da final).
— Temos um jeito de jogar há quatro anos. Jogamos sempre para ganhar, agredimos o tempo todo, buscamos o gol — resumiu Renato Portaluppi, em entrevista coletiva.
Momento do time
A invencibilidade em Gre-Nais que o Grêmio ostentava em 2000 dava uma certa sensação de segurança a time e torcida. Já se passava mais de um ano desde a última derrota, e, para completar, a classificação à final foi ajudada por um gol de Ronaldinho cobrando uma falta que desviou na barreira e enganou o goleiro colorado.
Era nessa supremacia sobre o rival o pilar de um time que prometia mais do que entregava até então. Leão havia saído, Antônio Lopes não conseguia engrenar bons jogos (tanto que acabou demitido logo depois do Gauchão, nas primeiras rodadas do Brasileirão), e a equipe passava por transformações. As estrelas contratadas (à exceção de Zinho) não deram o resultado esperado. Todos perderam lugar para guris que subiam da base, como Gavião, Pansera, Anderson Polga e o atacante Adriano. Muitos deles seguiram nas temporadas seguintes e levaram o Grêmio às conquistas de 2001 (Gauchão e Copa do Brasil).
— Não conseguíamos uma sequência boa, tinha muita cobrança, então a molecada começou a ganhar lugar no time — recorda Zinho.
E veio a calhar que a pior partida da equipe foi justamente na final. Amassado pelo Caxias, o Grêmio levou 3 a 0 no Centenário na partida de ida. Na volta, não teve forças para reagir. E na chance mais clara, a última cena do campeonato, Ronaldinho cobrou um pênalti e Gilmar defendeu, coroando o título da equipe da Serra.
Pois em 2020, boa parte da segurança de time e torcida se dão, justamente, por uma invencibilidade em Gre-Nais. Em setembro, o clube comemora dois anos sem perder para o rival. E, para chegar à final do campeonato, ganhou do Inter com um gol de falta que desviou na barreira (ainda na fase classificatória) e depois superou o Colorado com um 2 a 0 na Arena, na decisão do turno.
Essa supremacia sobre o Inter tem sido o pilar de um time que, segundo vários analistas — e até os próprios integrantes do grupo —, pode mais do que vem apresentando. Até a quarta rodada do Brasileirão (a última disputada antes desta reportagem), o time tem 50% de aproveitamento. E estudava preservar titulares para enfrentar o Vasco, de olho na decisão do Estadual.
— Vejo situações bem opostas, hoje e 20 anos atrás. O Grêmio vive um momento melhor, o Caxias não entra em campo há quase 30 dias. O ambiente vai ser outro, sem torcida, quando jogamos foi um caldeirão. Mas a lição que ficou foi: o primeiro jogo foi determinante. Levamos 3 a 0 e ficou muito difícil virar. Agora, o Renato é cascudo, o grupo está preparado. Vejo o Grêmio atual com mais favoritismo do que nós, na época — finaliza Zinho.
Estrutura
Em 20 anos, o Grêmio mudou bastante em termos imobiliários. Inclusive, de bairro. Saiu o Estádio Olímpico, localizado entre Azenha e Medianeira, palco da final de 2000, entrou a Arena, erguida às margens da Free-Way, no Humaitá/Farrapos. O local para treinos também mudou: se antes os atletas fazias suas atividades no gramado suplementar do Olímpico, hoje em dia, as práticas são no CT Luiz Carvalho, localizado do outro lado da BR-290, quase em frente à Arena.
Em administração, a estrutura continua parecida, com um presidente eleito pelos torcedores. Mas quanta diferença: em 2000, as fichas do Grêmio estavam em uma parceria com a ISL, empresa suíça que prometia grande aporte financeiro. A empresa decretou falência, o acordo naufragou e o clube penou para se recuperar. Vinte anos depois, após a implantação de uma política de austeridade e de aposta nas categorias de base, acumula anos de superávit.
Caxias
Montagem do elenco
O time que ganhou o Gauchão para o Caxias em 2000 já jogava junto há mais de um ano. Inclusive Tite. O treinador havia deixado o posto de comentarista da Rádio Caxias para assumir o clube no início de 1999, herdando parte do grupo campeão da Copa Daltro Menezes, ainda comandado por Nestor Simionatto. A direção reforçou ainda mais buscando jogadores que se destacavam no Interior. Ao todo, mais de 35 jogadores disputaram posição na temporada que teve, além do Gauchão, a Copa Sul e a Série C nacional. Como o time não subiu (foi eliminado pelo Serra-ES, que ascendeu para a Segunda Divisão ao lado do Fluminense), o ano 2000 seria de revisão.
Tite pediu, e foi atendido, que pelo menos seus titulares não fossem negociados. Foi nessa aí que o zagueiro Ademir Bertoglio viveu sua situação mais curiosa. Ele estava no Caxias havia quase 10 anos desde a subida para o profissional.
Em 1999, foi titular de quase todos os jogos ao lado de Paulo Turra. No final da temporada, dividiu posição com Emerson. Como não sabia seu futuro no clube, não quis arriscar perder a chance de ir para o América-RN, que havia caído para a Série B nacional. Resultado: ficou seis meses em Natal, teve salário atrasado e não fez parte do time campeão gaúcho.
— Acho que sou eu quem dá azar. Fiquei só meio ano fora e o Caxias foi campeão — brinca Ademir, que agora pode ser campeão atuando do outro lado do balcão, como gerente de futebol.
Dos 11 titulares das finais, 10 estavam no time em 1999. Apenas o lateral-esquerdo Sandro Neves chegou na temporada do título, vindo do Rio Branco-PR.
A situação é exatamente oposta ao time atual. Da equipe que disputou o Gauchão e a Série D do ano passado, quando foi eliminada para o Manaus, ninguém é titular hoje. São 11 mudanças no time e na casamata, com a saída de Paulo Henrique Marques e a ascensão de Rafael Lacerda.
Outro ponto diferente está na geografia: enquanto aquele Caxias de 2000 era basicamente formado por atletas que haviam atuado no RS, o atual teve reforços buscados em diferentes Estados. Um dos destaques do time, o lateral Ivan veio do Rio Grande do Norte, por exemplo. O atacante Tilica, que fez base no Grêmio, estava em Santa Catarina. Até Gilmar, que tinha passado pelo Caxias, atuava no Cuiabá-MT.
A ronda pelo mercado nacional deu certo em pouco tempo. Além disso, o Caxias soube aproveitar o primeiro turno mais curto, com a dupla Gre-Nal ainda em formação e garantiu sua vaga na decisão ainda no verão.
Fase do time
Há duas semelhanças entre as campanhas de 2000 e 2020. Uma delas é o desempenho excelente no primeiro turno, que valeu vaga na final. A outra é o aproveitamento diante do Grêmio.
O Campeonato Gaúcho de 2000 teve uma fórmula diferente da atual. A primeira fase contou apenas com times do Interior. O Caxias se classificou em segundo lugar, atrás do Esportivo. Além deles, 15 de Campo Bom, Passo Fundo e Santa Cruz avançaram para se juntar a Inter, Grêmio e Juventude, os representes gaúchos da Série A, no octogonal semifinal.
Os três times da primeira divisão nacional foram batidos pelo Caxias (1 a 0 no Ca-Ju, 2 a 0 no Inter e 2 a 1 no Grêmio). No total, a equipe de Tite teve cinco vitórias, um empate e uma derrota, campanha que lhe garantiu a conquista do primeiro turno.
No segundo, o time relaxou. Tite pôde fazer experiências, rodar o grupo, mas, mesmo tendo uma queda de rendimento, venceu os clássicos contra o Juventude. Perdeu para Inter e Grêmio, é verdade, resultado, aliás, que classificou os tricolores para a decisão.
Mas contra a equipe de Ronaldinho, Amato, Zinho, o Caxias se impôs no Centenário. Tite relembrou esta partida à Rádio Gaúcha:
— Foi um jogo histórico. Quem assistiu, assista de novo. Quem nunca assistiu e é mais jovem, assista. E vai ter certeza do grande espetáculo, é claro, por parte do Caxias. Me lembro de um comentário do professor Ruy Carlos Ostermann, por volta dos 30 minutos do segundo tempo. Está 3 a 0, há um cruzamento, o Adão cabeceia e a bola passa muito próximo, quase fizemos o quarto gol. Dito por ele, o professor Ruy: "Incrível. Está 3 a 0 e o Caxias continua atacando o Grêmio".
Depois da goleada da ida, em uma quarta-feira, a final estava prevista para domingo, no Olímpico. Mas a chuva que caiu ao longo do dia fez a direção gremista pedir adiamento. A FGF aceitou e, na quarta-feira seguinte, Porto Alegre viu o Caxias administrar tranquilamente a vantagem e comemorar o título.
Vinte anos depois, a fórmula de ganhar o primeiro turno se repetiu. E vencer o Grêmio, também. O Caxias enfrentou duas vezes o time de Renato Portaluppi. Ainda pela fase de grupos do primeiro turno, ganhou por 2 a 0 na Arena. Na decisão, um gol de Diogo Oliveira foi a diferença no 1 a 0. No total desta etapa da competição foram sete jogos, com quatro vitórias, dois empates e uma derrota (quando já estava classificado).
No segundo turno, o começo era promissor. Abriu empatando com o Inter, depois venceu São Luiz e Novo Hamburgo. Veio a covid-19. Foram quatro meses até a retomada. E mesmo depois, não se classificou para a semifinal por detalhe. A equipe perdeu o Ca-Ju, mas venceu o Pelotas e chegou viva na última rodada. Mas a combinação de seu empate com o Ypiranga e a vitória de virada do Esportivo sobre o Juventude lhe tiraram da semifinal.
E fizeram o time parar de jogar. Até quarta que vem, serão 28 dias sem entrar em campo. O clube buscou adversários, para fazer amistosos mas não encontrou equipes disponíveis ou interessadas — mesmo oferecendo realizar os testes de coronavírus nos adversários. Para piorar, perdeu quatro atletas. O time ficará desfalcado, por exemplo, dos centroavantes Gilmar (lesionado) e Da Silva (que pertence ao Grêmio). Jean Carlos e Tilica foram negociados. Apesar dos problemas, Rafael Lacerda mantém o otimismo:
— Chegaram as duas melhores equipes do Gauchão. Vai ser muito difícil, mas almejamos a vitória e trabalhamos para isso.
Estrutura do clube
Em termos imobiliários, o Caxias não teve lá tantas mudanças nos últimos 20 anos. Mas, é claro, houve melhorias tanto no Centenário quanto no Centro de Treinamentos, localizado em frente ao estádio. A estrutura foi reformada, os acessos tiveram ampliação e a iluminação foi reforçada.
Afora isso, há diferenças no gerenciamento do clube. Ainda que em 2000 já existisse uma profissionalização, as decisões de gestão partiam mais de dirigentes eleitos e do treinador do que propriamente de uma equipe. Atualmente, o clube conta com categoria de base, gerência de futebol e um corpo de profissionais para cuidar de outras áreas, desde manutenção até o esporte em si.
— E tem outro ponto muito importante. Hoje, os salários estão em dia. Na época atrasava mesmo — completa Ademir Bertoglio.