Este texto faz parte da cobertura da Copa do Mundo. A seção 'A Copa da minha vida' é publicada diariamente no caderno digital sobre o Mundial do Catar
Numa Copa do Mundo, nasceu meu amor pelo futebol, exatamente como deve ser: passional, irracional e arrebatado. Eu tinha quatro anos e, mesmo sem compreender a complexidade dos sentimentos envolvidos, já percebia a velocidade com que gritos de euforia viravam semblantes de tristeza; a força do brado de vitória convertido em lamento e os sorrisos brilhantes que davam lugar às lágrimas dolorosas. Falo de 5 de julho de 1982, no mítico Sarriá, diante do impiedoso algoz que respondia por Paolo Rossi.
Meu pai, fervoroso torcedor da Seleção Brasileira, tinha preparado tudo para o jogo. Família convidada, churrasco e cerveja gelada, casa toda embandeirada de verde e amarelo. Tudo pronto para ver o espetáculo de uma seleção magistral e poética com seu "futebol-arte". Sabíamos de cor a escalação com Valdir Peres, Leandro, Oscar, Luizinho, Junior, Toninho Cerezo, Sócrates e Zico; Éder Aleixo e Serginho Chulapa. Em resumo: quem viu essa seleção jogar jamais esquecerá.
Tenho certeza de que você já percebeu a falta de um nome nessa escalação. Mas aí, preciso abrir um pouco mais do baú das minhas memórias com você. Meu pai era (segue sendo na eternidade) um colorado apaixonado. Daqueles que estavam na missa de lançamento da pedra fundamental do Beira Rio, em 7 de julho 1963. Entendeu a falta de um nome? Essa seleção para nós era formada por 10 craques e uma divindade: Paulo Roberto Falcão.
Voltando à Copa da minha vida... Com quatro anos de idade, no distante milênio passado, as memórias são indefinidas e reinventadas. Lembro da festa, da bagunça, da empolgação. Tempos de um patriotismo diáfano que cumpria um propósito na agenda política para o regime militar brasileiro. Lembro de vermos a Copa numa televisão de tubo com imagem em preto e branco — não sem bombril na ponta da antena para "aperfeiçoar" a recepção do sinal — que teimava em falhar. Mas acima de tudo, lembro do meu pai dizendo:
— Com esse plantel, essa Copa é nossa e ninguém tasca!
Rossi marca para Itália aos cinco minutos do primeiro tempo. Doutor Sócrates, sete minutos depois, empata e classifica o Brasil para semifinal, afinal havíamos massacrado a Argentina por 3 a 1 no jogo anterior. Rossi, sim Rossi, 13 minutos depois, marca seu segundo gol e elimina o Brasil. Que jogo elétrico, senhoras e senhores!
Para delírio absoluto do Brasil — e na minha casa colorada quase um infarto coletivo — aos 24 minutos do segundo tempo, Falcão recebe a bola de Júnior e ao invés de passar para Cerezo, que estava marcado por uma legião de italianos, acerta um chute de canhota e empata o jogo. Lembro do mestre dos mestres, Armindo Antônio Ranzolin, gritando a plenos pulmões:
— Tinha que ser ele, Paulo Roberto Bola Bola Falcão!
Gol da classificação. Gol de uma explosão de gritos e foguetes que, até hoje, consigo ouvir no recôndito doce das lembranças de uma vida.
Rossi, sim, o malévolo Rossi, seis minutos depois, entretanto, marca seu terceiro gol e elimina o Brasil. Que jogo trágico, senhoras e senhores!
Com apenas quatro anos, conheci a ciclotimia irracional do esporte. Fui apresentado, naquela Copa, à força avassaladora da paixão pelo futebol. Lembro das pessoas chorando. Lembro de uma desolação coletiva com ares de tragédia. Mas o inacreditável mesmo, para mim naquele momento, era ver meu pai, meu super-herói de sorriso largo, chorando como uma criança indefesa e perdida. Era ver que seu choro ali, no bairro Boa Vista, em Porto Alegre, ecoava o choro de Falcão no Sarriá, em Barcelona, na Espanha. Diante dos meus olhos, meus super-heróis choravam linda e livremente.
Essa foi a Copa da minha vida. A Copa que me fez perceber no futebol um elo de amor com meu pai. A copa que me fez ser colorado orgulhoso da senda de vitórias. Aprendi, não sem dor, que o futebol tem uma força que tece vínculos e pode impulsionar transformações que vão para muito além dos gramados. Aprendi, como homem negro, que o câncer do racismo da sociedade entra em campo e ataca com violência, numa espécie lúgubre de paradoxo, justamente os pés que conquistam as copas dos nossos sonhos.
Em 2022, esse apaixonado por futebol tem a honra, como advogado, de integrar, a convite da presidência da CBF, o grupo de trabalho que proporá um conjunto de medidas regulatórias para combater o maldito racismo e a violência nos estádios do Brasil. Desde a Copa da minha vida, sigo amando o Inter e a Seleção Brasileira como traços da herança afetiva que atualiza, jogo a jogo, em cada grito, em cada lágrima, em cada gol a presença do seu Ary ao meu lado. Afinal, futebol é amor, e com amor não se brinca.