Nada é mais importante no trabalho de um jornalista do que questionar. Seja no esporte ou em outras áreas, sempre adotei este lema como repórter. Provavelmente esta postura nunca foi tão importante na história do jornalismo esportivo como nesta histórica Copa do Catar.
Pois, neste sábado (19), fui um dos pouco mais de 10 jornalistas selecionados para fazer perguntas na concorrida e polêmica entrevista do presidente da Fifa, Gianni Infantino, aqui em Doha, na véspera do Mundial mais controverso da história. Perguntei ao dirigente o que ele teria a dizer aos diversos torcedores no mundo inteiro que estão pouco empolgados com esta Copa por conta do histórico de violações aos direitos humanos no Catar.
Acima de tudo, o meu questionamento foi fruto de um dilema pessoal que me intriga desde o início do nosso trabalho aqui em Doha. Afinal, que tom um jornalista deve adotar na cobertura do Mundial 2022?
Por um lado, estamos aqui no Catar realizando o sonho de cobrir o evento futebolístico mais importante do planeta, em meio a craques de diversos países, torcedores do mundo inteiro e em divertida atmosfera de confraternização cultural entre povos, que só um evento como a Copa do Mundo pode proporcionar.
E acreditem: este clima de Mundial é muito encantador. Assim como a suntuosidade de Doha também seduz. Por outro lado, estamos inegavelmente em um país ditatorial, com um duro histórico de violações aos direitos humanos e que nitidamente tenta usar o esporte para "limpar" a sua imagem perante o mundo.
Diante disso, o que um jornalista deve fazer? Como conciliar a cobertura dos jogos e da festa das torcidas com a responsabilidade social que o jornalismo exige?
Antes de chegar à minha vez de perguntar, Infantino propôs uma reflexão à comunidade ocidental: que olhemos para o nosso espelho antes de darmos lições de moral aos árabes. Lembrou o quanto a Europa historicamente fecha as portas a imigrantes e refugiados, citou o histórico de discriminação a minorias nos países ocidentais e afirmou que o Catar está fazendo avanços na área dos direitos humanos que são, na visão dele, ignorados pela mídia e pela opinião pública.
Na sequência, quando o oficial de mídia da Fifa me entregou o microfone para eu fazer a pergunta, lembrei imediatamente de vários amigos brasileiros que, imunes aos encantamentos in loco da Copa, me relatavam nas redes sociais estarem pouco ou nada animados com este Mundial.
Certamente, este é o pensamento de muitos que nos acompanham do Brasil. Pensando neles, ou seja, no público - e principalmente no interesse público -, decidi questionar Infantino sobre isso e lhe dar a oportunidade, via microfone da Rádio Gaúcha, de se dirigir a todos esses brasileiros que ainda não conseguiram se entusiasmar com o clima da Copa.
A resposta de Infantino foi muito longe de ser esclarecedora. Pelo contrário. O dirigente sugeriu que quem não quiser assistir à Copa, que não assista. E, na sequência, além de tergiversar e relativizar as opressões aos direitos humanos no Catar, a popular "passada de pano", o presidente da Fifa derrapou feio ao comparar as discriminações contra imigrantes com o bullying que alega ter sofrido na infância sendo um ruivo e descendente de italiano na Suíça. Uma comparação insensível e sem sentido.
Logo após a coletiva de Infantino, enquanto ainda refletia sobre as declarações do dirigente, fui procurado por um jornalista da Noruega, que queria me entrevistar sobre a pergunta que fiz. Aceitei o convite e expliquei aos noruegueses, em resumo, que muitas pessoas no Brasil se sentem incomodadas com as controvérsias envolvendo o Catar. O repórter escandinavo disse que se sentia satisfeito em saber que essa preocupação era recorrente também na América do Sul, um dos continentes mais apaixonados por futebol. Pois, segundo ele, há muito debate e revolta sobre isso na Noruega, país que não está representado na Copa.
Após a entrevista, eu e o norueguês conversamos mais um pouco sobre o tema e chegamos à mesma conclusão. Não podemos deixar de cobrir o Mundial e muito menos de levar aos nossos ouvintes, leitores e espectadores toda a emoção única que só o futebol pode proporcionar. Porém, também não podemos ignorar o contexto ditatorial do Catar, a falta de direitos aos imigrantes, as opressões às mulheres e aos LGBTs e as violações aos direitos humanos. Isso tudo precisa ser levado ao conhecimento do mundo e, principalmente, ser debatido.
De certa forma, foi o que fizemos na entrevista de Infantino. Como jornalistas, não temos o poder - e nem seria o nosso papel - de derrubar ditaduras e libertar os povos oprimidos. As únicas armas que temos nas mãos são o microfone e a caneta. Logo, o que nos cabe é falar sobre o tema, debater e, principalmente, questionar.
Penso que a falta de uma resposta convincente e sensível do dirigente máximo da Fifa foi o de menos. A resposta à minha pergunta, sugerindo que "quem não quer assistir à Copa do Mundo que não assista" ganhou as manchetes de diversos portais brasileiros e internacionais.
As demais declarações polêmicas e as notícias sobre as controvérsias do Catar tiveram muito espaço na mídia internacional e, de certa forma, contribuíram, na véspera da abertura do Mundial, para que o mundo reflita como nunca o fez sobre a relação entre futebol e direitos humanos e sobre o papel do esporte diante de temas como preconceito e discriminação.
Em meio a tantas derrapadas e insensibilidades, Infantino tem razão em um ponto. Sem relativizar o que acontece no Catar, esta é uma boa oportunidade para o mundo ocidental "se olhar no espelho" e buscar formas de combater o preconceito e a discriminação que, infelizmente, ainda existem em todo o mundo, seja em países democráticos ou ditatoriais.
O futebol nunca esteve à margem da política e das causas sociais. Se muitas vezes o esporte foi (e ainda é, inclusive no Catar) usado por governos como ferramenta de propaganda para esconder as mazelas de seus regimes, ele também pode ser utilizado por jornalistas, atletas e torcedores como um instrumento de transformação social. Entendo que, se a Copa do Mundo ajudar nesta reflexão para que tenhamos um mundo mais democrático e plural, ela já terá cumprido um papel muito importante.
E nós, jornalistas aqui no Catar, temos o dever de contribuir para este debate. Sem deixar, claro, de contar as emoções do futebol e de viver essa atmosfera maravilhosa de uma Copa. Mas, contudo, sem nunca deixar de questionar.