Embora pessoas com deficiência e transtornos globais do desenvolvimento estejam ocupando cada vez mais espaço no Ensino Superior, ainda são minoria. Em 2022, 79,2 mil estudantes matriculados em cursos de graduação no Brasil faziam parte desses grupos, o que representa 0,8% em relação ao total de matrículas daquele ano. Os dados são do Censo da Educação Superior, do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Quando a estudante Isabella Bauer, de 21 anos, perdeu a audição, em 2020, ela estava começando o último ano do Ensino Médio e pensou que não teria condições de fazer uma faculdade. A jovem morava em Portão e estudava na Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, em Novo Hamburgo, e teve dificuldades para acompanhar as aulas neste ano, por conta da pandemia de covid-19 e a repentina mudança das aulas presenciais para o remoto.
O motivo da perda de 70% da audição ainda é um mistério, mas os médicos acreditam que é uma questão relacionada à mãe de Isabella, que teve toxoplasmose durante a gravidez. A jovem passou a viver com a condição aos 17 anos e ainda está aprendendo a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Com isso, ela achou que seria muito difícil cursar uma graduação.
Mesmo com as inseguranças, ela decidiu ir atrás do sonho: atuar, produzir e dirigir filmes. Então, prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e conseguiu uma bolsa do Prouni para o curso de Realização Audiovisual na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos), em Porto Alegre. Embora a instituição tenha tido que fazer adaptações para recebê-la, ela conta que a decisão valeu a pena, e que tem sido bem acolhida pela equipe. Ela é a primeira aluna com deficiência auditiva no curso e está no segundo ano.
Eu achava que não era pra mim, que não teria acessibilidade e recursos.
ISABELLA BAUER
Estudante de Realização Audiovisual
— Para mim sempre foi um sonho distante fazer faculdade. Eu achava que não era pra mim, que não teria acessibilidade e recursos. As pessoas me dizem, 'vai fazer cinema pra quê, se o som faz parte do curso?' Mas tem outros jeitos de fazer cinema, não tem um só. Mas eu fico muito feliz de ter conseguido essa oportunidade, eu comecei a entender que precisava ocupar esses lugares — conta a jovem.
Além de fazer trabalhos como atriz e modelo, desde outubro do ano passado, ela tem criado conteúdo nas redes sociais. Isabella aborda a rotina como pessoa com deficiência em vídeos leves, com bom humor, como forma de inspirar outras pessoas. A jovem já alcançou 74 mil seguidores no perfil de Instagram @isabella.bauer.
Avanços nas universidades
Embora a Unisinos tenha intérpretes disponíveis para atender a estudantes com deficiência auditiva, como Isabella não sabe Libras, ela precisou recorrer a outros recursos. Antes mesmo de começar o curso, ela já utilizava um software gratuito no computador para captar o áudio e converter em texto. Ela também utiliza um aplicativo pago no celular para conseguir se comunicar com as pessoas no dia a dia, quando está na rua, por exemplo.
A instituição adquiriu microfone de lapela para os professores, para captar melhor o som durante as aulas. Assim, a fala é convertida em texto no notebook da aluna, mas o software não é perfeito e, às vezes, ela tem dificuldade para acompanhar. Quando o professor fala alguma palavra em outro idioma, por exemplo, ele anota no quadro para que ela compreenda.
A Unisinos conta com o Núcleo de Atenção ao Estudante, que atua nos processos de inclusão. Atualmente, a universidade tem 263 estudantes com algum tipo de deficiência ou necessidade pedagógica especial. Na Universidade La Salle (Unilasalle), por meio do Núcleo de Atendimento aos Estudantes, a instituição acolhe os alunos e identifica suas necessidades para garantir o atendimento necessário. A universidade tem 119 estudantes com deficiência.
Para além da acessibilidade arquitetônica, a instituição garante apoio pedagógico aos estudantes com dificuldades ou deficiência intelectual, recursos de aprendizagem, materiais adaptados, bem como profissionais treinados para auxiliar os estudantes. A Unilasalle também conta com apoio de uma tradutora e intérprete de Libras.
As iniciativas vão desde a adaptação constante dos materiais didáticos, com a autodescrição das imagens, por exemplo, até a criação de laboratórios adaptados, com computadores equipados com softwares, mouse e teclado em braille.
— Tudo começa no momento de inscrição do estudante na universidade. Ele tem a opção de se autodeclarar com algum tipo de necessidade. Quando é efetivada a matrícula, o núcleo faz contato com esse aluno para marcar uma conversa com uma psicóloga, e assim, identificamos quais são essas necessidades e o que precisamos adaptar para garantir o atendimento adequado — explica a coordenadora da EAD na instituição, Michele Kreme.
Na Feevale, na última terça-feira (12), foi inaugurado um espaço para centralizar as atividades pedagógicas oferecidas pelo Núcleo de Apoio à Inclusão e Acessibilidade (Naia). Batizada de Coworking de Aprendizagem, será uma sala destinada ao atendimento presencial de alunos com deficiência, para realização de mentorias com professores e monitores, bem como encontros de grupos de estudos.
Na graduação, a Feevale tem 69 estudantes com necessidades especiais, incluindo pessoas com Transtornos do Espectro Autista (TEA) e com deficiência, como surdez, cadeirantes, pessoas com baixa visão e deficiências múltiplas. Na UniRitter, todos os alunos com deficiência são atendidos pelo Núcleo de Apoio Psicopedagógico e Inclusão (Napi).
Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), existe há dez anos o Núcleo de Inclusão e Acessibildade (Incluir). O grupo é responsável pelas iniciativas de inclusão, acessibilidade e permanência de pessoas com deficiência e TEA na comunidade universitária. Já a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) criou em 2001 o Laboratório de Ensino e Atendimento a Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas.
Em 2019, a instituição criou o Centro de Apoio Discente, com diversas iniciativas para atender às diferentes necessidades dos alunos. Com diferentes núcleos de atuação, os serviços foram ampliados aos estudantes com transtornos do desenvolvimento, como Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), dislexia, discalculia e disortografia, além de fornecer assessoria aos professores, para que possam atender melhor aos alunos.
Barreiras persistem
Para a presidente do Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Comdepa), Giselle Hübbe, muitos avanços foram observados desde que foi promulgada a Lei Brasileira de Inclusão, em 2015 (Lei nº 13.146). Apesar da legislação ter promovido avanços, é preciso garantir o cumprimento dela.
— Mesmo com a proteção desses direitos garantida pela lei, seguimos recebendo denúncias de violação de direitos, e não são casos isolados. Problemas em processos seletivos, negligência do corpo docente, falta de materiais adaptados e profissionais capacitados são algumas das principais denúncias — destaca.
Para o presidente da Associação de Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs), Glailton Winckler da Silva, um dos principais desafios é garantir o acesso à Educação Superior para pessoas que não dominam a tecnologia, por exemplo. Boa parte dos recursos de inclusão utilizados atualmente são ferramentas tecnológicas, e algumas pessoas encontram dificuldades até mesmo para usar o computador. Outro problema são sites e plataformas digitais desatualizados, que não contam com ferramentas de acessibilidade.
— Ainda vemos muitas plataformas inadequadas, sem inversor de cores, ampliador e leitor de tela, por exemplo. Há anos, temos um curso de tecnologia assistiva na Acergs, para dar orientações sobre isso. O correto seria que esses aspectos fossem levados em consideração quando o site ou aplicativo é programado, desde o momento da construção da plataforma, mas esses parâmetros ainda são esquecidos. Quem sofre com isso são pessoas com deficiência visual ou baixa visão — afirma.
Foi a Educação a Distância (EAD) que abriu as portas do Ensino Superior para Elaine Nascimento, 49 anos, que é cega e trabalha na Acergs. A paulista mora em Porto Alegre desde 2018 e está no segundo ano do curso de Licenciatura em Educação Especial na faculdade Censupeg, com sede em Viamão. As aulas são remotas, mas ela conta que tem à sua disposição todos os recursos necessários e apoio dos professores.
Meu sonho é alfabetizar crianças com deficiência, quero ser professora na sala de recursos.
ELAINE NASCIMENTO
Estudante de Educação Especial
— Fui atrás do curso porque tinha acessibilidade, uma amiga que me indicou. Antes eu tinha entrado em um curso de magistério na Restinga, presencial, eu queria fazer antes de ir para a faculdade. Mas não fui bem acolhida. Mas agora está dando certo, tenho tudo que preciso. Meu sonho é alfabetizar crianças com deficiência, quero ser professora na sala de recursos.
Para a presidente da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Porto Alegre, Marilda Cruz Nonnemacher, outro obstáculo que impede os jovens de ingressarem numa universidade é a falta da inclusão ao longo da trajetória escolar, ou seja, desde a infância.
— É importante se ter consciência de que se não houver inclusão adequada e verdadeira na base, a pessoa dificilmente chegará ao Ensino Superior. E é isso que estamos vendo, a falta de preparo dos profissionais para lidar com esses alunos desde a Educação Básica — explica.