Uma década não foi suficiente para que todas as escolas do Brasil tivessem bibliotecas. Com previsão de universalização dos acervos escolares para 2020, como consta em uma lei federal de 2010, para além da falta do espaço, a implementação do serviço esbarra na falta de profissionais destinados a trabalhar nele. Apesar de haver bibliotecários e técnicos em biblioteconomia aptos no mercado, as rede de ensino carecem desses profissionais e o atendimento, por vezes, acontece em horário restrito, sendo feito por professores, funcionários administrativos, auxiliares de serviços gerais e até voluntários.
Das quase 168 mil instituições de Educação Básica municipais e estaduais do país, mais da metade (55,6%) respondeu, no Censo Escolar 2021, que não possuía o espaço. No Rio Grande do Sul, o percentual é bem inferior. Ainda assim, quase um terço (32,5%) das 8,4 mil escolas municipais e estaduais não tinham o serviço.
A situação é mais grave nas redes municipais existentes no RS – 51% disseram não ter bibliotecas. Na Capital, o percentual foi de 19%, sendo praticamente todas de Educação Infantil.
Entre as escolas estaduais gaúchas, o percentual sem biblioteca foi de 11,9%. Esses números, no entanto, são contestados pela Secretaria Estadual de Educação (Seduc), que, em ofício enviado em julho para o Conselho Regional de Biblioteconomia (CRB), indicou um percentual de 6,1% de instituições estaduais sem biblioteca ou com biblioteca fechada. Procurada pela reportagem de GZH, a pasta apresentou, ainda, outro dado: informou que todas as escolas tinham espaços específicos para leitura e acesso a acervo de obras literárias. Questionada sobre a diferença de informações, a Seduc respondeu que espaço de leitura inclui bibliotecas, salas de leitura e salas de aula com acervos disponibilizados pelo professor.
Falta de recursos humanos
A realidade varia muito conforme cada escola. Com apenas 26 bibliotecários na rede estadual – 14 deles nomeados recentemente – a maioria das instituições de ensino tem horário de atendimento nas bibliotecas restrito e acervos com pouca organização e catalogação. Uma lei existente há 60 anos, que regulamenta a profissão, prevê que a administração e a direção de bibliotecas são atribuições de bacharéis em Biblioteconomia.
Um dos mais tradicionais de Porto Alegre, o Colégio Estadual Júlio de Castilhos tem uma biblioteca aberta parcialmente. Segundo a direção da instituição, há apenas uma professora com carga horária de 20 horas semanais trabalhando no local, o que impossibilita que estudantes dos três turnos consigam usufruir do espaço. Para amenizar o problema, duas pessoas atuam voluntariamente: uma ex-professora aposentada e uma aluna da escola.
— Temos um acervo incrível e um espaço magnífico, mas a biblioteca é aberta em poucos momentos. Nossos estudantes sentem muito a falta deste espaço de estudo — lamenta a vice-diretora do Julinho, Paola Cavalcante Ribeiro.
Outra escola tradicional da Capital, o Colégio Estadual Protásio Alves possui um espaço grande e adequado para o funcionamento da biblioteca, mas o acervo acaba ficando desorganizado, uma vez que não há, na instituição, ninguém qualificado para fazer o trabalho de catalogação e classificação das obras – quem cuida do espaço é uma pessoa originalmente designada para trabalhar em serviços gerais, mas que, por conta de problemas de saúde, foi afastada de sua função. O horário da funcionária termina às 16h e, depois, a biblioteca só abre em caso de aulas específicas que professores queiram ministrar no espaço. A direção busca um convênio com o curso de Biblioteconomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a fim de qualificar seu atendimento.
Biblioteca ideal
Já na Escola Municipal Emílio Meyer, também de Porto Alegre, a biblioteca escolar parece um sonho entre as realidades possíveis – o ambiente é amplo e organizado, fica aberto em todos os turnos e conta com o trabalho de um bibliotecário, Rodolfo Matos, e de uma professora.
— Ao meu ver, uma biblioteca escolar teria que ter um bibliotecário e um professor trabalhando: o bibliotecário fazendo a parte mais técnica e apoiando o professor em projetos pedagógicos. Mesmo aqui, tendo um bibliotecário, nem todo o acervo está catalogado — comenta Rodolfo.
Um dos projetos mais centrais no trabalho em bibliotecas da rede municipal de Porto Alegre é o programa Adote um Escritor. Existente há 20 anos, a iniciativa envolve a capacitação de professores e uma curadoria dos escritores que se candidatam para participar. As escolas participam da escolha dos participantes e, depois que os autores são designados para cada instituição de ensino, os alunos passam a fazer estudos envolvendo seus livros e trajetórias. As escolas recebem verba para adquirir obras daquele e de outros escritores e, ao final, o autor vai até o colégio dar uma palestra e recebe um cachê por isso.
Na Emílio Meyer, trabalhos das crianças demonstravam um pouco do que é o projeto – um jacaré pintado com lápis de cor denunciava uma atividade sobre o livro Três finais de um jacaré, de Christian David, enquanto cartuns denunciavam a visita do ilustrador Pedro Leite à escola.
— A gente colou os desenhos ali, porque as crianças olham aquilo, se lembram da palestra e querem retirar livros dele, sabe? Depois que os escritores vêm, eles ficam uma semana, um mês só pedindo livros daquele escritor. Se animam bastante — relata o bibliotecário.
A rede municipal da Capital, que possui 99 escolas, tem oito bibliotecários em seu quadro. Via de regra, contudo, as bibliotecas são abertas em todos os turnos de aulas, conforme Cristina Prange, assessora pedagógica de Projetos e Parcerias da Secretaria Municipal de Educação (Smed) e referência do Adote um Escritor 2022. Com a reabertura da própria biblioteca da pasta, prevista para a semana que vem, a intenção é providenciar a ampliação do quadro de bibliotecários na rede.
— Nossa rede tem muito forte a valorização da leitura, do livro. O Adote um Escritor existe para contribuir para que esse trabalho nas escolas fique mais qualificado, que se possa ter a oportunidade de conhecer diferentes escritores. É um programa muito bonito e as escolas fazem um trabalho maravilhoso — salienta Cristina.
Debates no parlamento
A implementação da Lei da Universalização das Bibliotecas Escolares tem sido debatida em diferentes esferas. No final de novembro, uma audiência pública foi realizada na Câmara dos Deputados para debater e cobrar a efetividade da legislação. Requerido pela deputada federal gaúcha Fernanda Melchionna (PSOL), o encontro envolveu entidades nacionais ligadas ao setor, entre eles o Conselho Regional de Biblioteconomia da 10ª Região (CRB10), que atua no Rio Grande do Sul. Na Assembleia Legislativa, o tema é abordado na Frente Parlamentar de Incentivo ao Livro e à Leitura, presidida pela deputada estadual Sofia Cavedon (PT).
A biblioteca precisa ser um espaço vivo, para que, assim, estimule a leitura e a pesquisa escolar. Se tu só tem um espaço com caixas de livros sem um profissional habilitado, tu não tem uma biblioteca
CYNTIA WESSFL
Presidente da Associação Rio-Grandense de Bibliotecários
Presidente do CRB10, Gislene Sapata Rodrigues ressalta que há, no RS, uma determinação do Conselho Estadual de Educação (CEEd) que obriga que, para se abrir uma escola, haja nela uma biblioteca.
— Esse cenário nem sempre se efetua. Quando vamos fazer a fiscalização, a gente vê muitas bibliotecas fechadas. Por isso, resolvemos fazer uma campanha para dar visibilidade a essa legislação, para que se tenha investimento e recursos humanos para o funcionamento — pontua Gislene.
O lançamento da campanha #soubiblioteca escolar, que envolve também o Conselho Federal de Biblioteconomia (CFB), ocorreu no dia 11 de novembro em Porto Alegre. De acordo com Gislene, a principal dificuldade é que a lei de 2010 não prevê punição para instituições que não se adequarem. A regulamentação dessa legislação é uma das demandas do grupo.
Como parte da campanha, a presidente do CRB10 tem buscado diálogo junto às redes municipais e estadual. Com a Seduc, está sendo elaborado um termo de ajustamento de conduta (TAC) junto à Procuradoria-Geral do Estado (PGE) e o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS) para modular o sistema de bibliotecas e ampliar a presença de bibliotecários. O TAC deve ser finalizado no início de 2023.
— Não vai poder ser um bibliotecário por escola, mas estamos modulando esse sistema, para a lei ser respeitada. O problema não é só não ter os bibliotecários, mas também que as bibliotecas não estejam abertas e acessíveis aos alunos — defende Gislene.
Presidente da Associação Rio-Grandense de Bibliotecários (ARB), Cyntia Wessfl destaca a diferença de realidades entre as bibliotecas de escolas públicas e particulares.
— Muitas vezes, a biblioteca vira um depósito de livros, com repasses de materiais didáticos sem nenhum uso. A biblioteca precisa ser um espaço vivo, para que, assim, estimule a leitura e a pesquisa escolar. Se tu só tem um espaço com caixas de livros sem um profissional habilitado, tu não tem uma biblioteca — analisa Cyntia.
No pós-pandemia, a bibliotecária considera que o espaço da biblioteca se tornou ainda mais importante, uma vez que os alunos retornaram às escolas apresentando problemas de concentração.