Silvânia Lindenmeyer, 69, realizará um sonho tardio. Após trabalhar 33 anos como contadora, aposentou-se em 2015 e mudou radicalmente de vida em um par de dias. Em uma sexta-feira, deixou o trabalho em Panambi, no Noroeste, e se mudou para Novo Hamburgo. Já na manhã da segunda-feira, caminhava emocionada no campus da Universidade do Vale dos Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, para finalmente atender a um desejo de menina: cursar a faculdade de Direito.
— Vi que iria me aposentar e pensei: o que eu vou fazer? Não podia ficar parada. Quando eu era criança, queria ser advogada, mas o pai dizia que não era para a gente, porque não tinha dinheiro e porque não era para guria, um preconceito da época. Quando me aposentei, pensei: é agora que vou fazer Direito — conta.
Natural de Novo Hamburgo, Silvânia nasceu sem a mão esquerda, foi mãe-solo e passou a vida contornando obstáculos para demonstrar, por teimosia, que não dependia da ajuda de ninguém. Veio de uma família de sete irmãos, com o pai contramestre na indústria de calçados e a mãe, dona de casa. Não faltou teto e comida, mas não sobrava dinheiro. O estudo foi estratégia para melhorar de vida. Formou-se como técnica em contabilidade e, já adulta, em Ciências Contábeis, carreira na qual encontrou emprego e sustento para a filha Morgana e a mãe Erica Paulina -as três viveram juntas durante grande parte da vida, em um relacionamento de cumplicidade e afeto.
— Nunca esperei por ninguém e sempre me virei. Quando quis fazer ginásio, fui atrás de bolsa. Quando fiz o curso técnico em contábeis, fui atrás. Esta casa aqui, fiz com o meu dinheiro — conta Silvânia em conversa com GZH na sala de estar, na segunda-feira (26), enquanto era vigiada pelo feroz cão Lobo, mistura de vira-lata com pastor alemão.
A contadora aposentada decidiu cursar Direito na Unisinos porque receberia desconto de 50% na mensalidade por ter mais de 60 anos – caso contrário, não conseguiria arcar com o valor. Ao comunicar a decisão a conhecidos e familiares, foi interpelada com as mesmas perguntas: para que vai fazer faculdade? Por que não pegar o dinheiro para descansar e viajar, assim como outros aposentados?
— É questão de valores. Quando era pequena, eu queria fazer Direito, mas não pude. Gosto de viajar, acho algo importante, quero muito ir a Roma, sou muito católica, mas não é minha necessidade agora. Meu sonho é ser advogada e vou atrás disso — diz, resoluta.
Silvânia começou a graduação empolgada, com o pique de jovens bixos. Como não dirige, diariamente pegava um ônibus até o trem para se deslocar de Novo Hamburgo a São Leopoldo, em um trajeto de uma hora. Com raciocínio extremamente articulado, sem hesitar nas palavras, anima-se ao falar do Direito: é um curso muito completo, com aulas de história, filosofia e política.
Conviver com colegas mais jovens foi um aprendizado - Silvânia por vezes expunha a opinião em discussões, discordava, observava os dilemas da juventude com curiosidade. Ao mesmo tempo, respeitava opiniões e trabalhava em grupo. As amizades mais fáceis eram com colegas "temporãos", mais velhos.
— No primeiro dia de aula, eu estava maravilhada. Todos eram muito jovens, eu poderia ser mãe ou avó da maioria. Eu sou politizada, falava muito, às vezes até atrapalhava a aula — lembra, entre risadas.
Realizar o sonho de cursar Direito exigiu persistência para retomar estudos mais velha e também vivenciar situações que, até então, pertenciam apenas à imaginação. Estagiou no núcleo de auxílio jurídico a pessoas em situação de vulnerabilidade e também trabalhou com mediações, espécie de encontro anterior para evitar o processo judicial. A primeira vez em que assistiu a um júri em uma audiência criminal no Foro de Novo Hamburgo, Silvânia ficou emocionada. Ao ouvir a leitura da sentença, tremeu.
— Sempre gostei da área criminal. Quando a juíza chamou para ler a sentença, fiquei nervosa, me sensibilizei muito. No Direito, se decide sobre a vida das pessoas e seus familiares — reflete.
Fazer faculdade na terceira idade não é fácil. É caro, abri mão de algumas coisas e passei a economizar. Quando me formei em Contábeis, fiz formatura. Agora, vou me formar em gabinete, sem festa. Mas vou passar na OAB e mostrar para esses guris que tudo vale a pena e que a gente pode tudo, basta querer
SILVÂNIA LINDENMEYER
Graduada em Ciências Contábeis e Direito
A graduação terminou em novembro e resultou em uma monografia sobre Direito do Trabalho e o rompimento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho, intitulada “O valor da vida no acidente de trabalho”. O rigor de Silvânia com seu trabalho foi demonstrado em um comentário na reunião de alinhamento com seu orientador, no qual sugeriu adiar a formatura se o trabalho não estivesse bom.
— Se é para eu passar só com um “Aprovada”, eu não me formo agora. Termino no semestre que vem — disse ao professor.
Não foi necessário postergar o fim do curso. O esforço da aluna foi reconhecido pela banca com nota máxima: “Aprovada com distinção”. A colação será de gabinete, em março, e a celebração virá apenas após Silvânia passar no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), cujo índice de reprovação supera 70% dos candidatos.
Coordenador da graduação em Direito e professor de Direito Penal, Tomás Grings Machado descreve Silvânia como engajada, dedicada e competente. Uma história demonstra como a universitária tem opiniões fortes, mas sabe repensar o ponto de vista: ao discordar da correção de um trabalho feita por um docente, a contadora enviou um e-mail à coordenação do curso, insatisfeita. Mais tarde, retornou para afirmar que entendera o outro lado e que estava tudo certo.
— É muito da Silvânia ter uma postura crítica, ainda que possa repensar a partir do diálogo. É uma aluna que tem uma deficiência em um dos braços e tem a questão da idade, mas superou e não se acomodou. Poderia ter criado para si uma imagem de alguém que necessita de apoio para crescer, mas não adotou essa postura. Batalhou, foi crítica quando precisava, acolhedora quando precisava e trilhou uma caminhada muito bonita no curso de Direito. A história dela mostra que uma formação no Ensino Superior não é só para jovem do Ensino Médio. É para qualquer pessoa que se comprometa a estudar — diz Machado.
Em conversa com GZH na terça-feira (27), a filha e empresária Morgana Lindenmeyer, 40 anos, descreve Silvânia com admiração e voz de veludo. A mãe é exemplo de determinação, independência, perseverança e superação.
— Quando a mãe tem um objetivo de vida, ela corre até conseguir. Ela nasceu sem um braço e isso foi determinante pra ela desde pequena. Diziam “isso ela não pode”, “isso ela não consegue”, desde jogar vôlei até ter filha sozinha e fazer faculdade. Mas ela sempre pegou esse gancho para fazer tudo dar certo. Desde pequena, correu atrás de tudo. Ela é uma batalhadora, nunca se prendeu a estereótipos, sempre foi fora da caixa. O maior ensinamento dela é não desistir das coisas, ser humilde e perseverar. É o que minha mãe é — afirma Morgana, orgulhosa.
No tempo livre, Silvânia gosta de ouvir música – entre os artistas favoritos, estão Caetano Veloso, Gal Costa e o francês Charles Aznavour. Aos netos de 12 e 16 anos, a futura advogada tenta ensinar o gosto pelo estudo e a importância de lutar pelos objetivos. Sentada na mesa com decoração natalina, mostra ao repórter o retrato da família e enche os olhos de lágrimas.
— Fazer faculdade na terceira idade não é fácil. É caro, abri mão de algumas coisas e passei a economizar. Quando me formei em Contábeis, fiz formatura. Agora, vou me formar em gabinete, sem festa. Mas vou passar na OAB e mostrar para esses guris (aponta para os netos na fotografia) que tudo vale a pena e que a gente pode tudo, basta querer — afirma a formanda.
Depois da OAB, Silvânia planeja trabalhar como advogada – de preferência, em Direito do Trabalho ou Criminal. Ela não aspira a seguir carreira em empresa para bater ponto diariamente, prefere gerir o próprio tempo, talvez trabalhar em uma ONG.
— O que é líquido e certo é que não vou ser do lar e que vou trabalhar pelos mais fracos. Sou privilegiada porque tive acesso à educação, sempre tive onde morar e o que comer, me mantenho sozinha e consegui cursar duas faculdades. Trabalhei 33 anos, ainda tenho sonhos e quero realizá-los — reflete.