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Ainda que promissoras, as carreiras em Tecnologia da Informação (TI) seguem sendo um mistério para parte da população. Dados da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e de Tecnologias Digitais (Brasscom), referentes a junho, apontam que a Região Sul passou a representar 19,3% do total de empregos de TI no Brasil, registrando crescimento de 5% nos seis primeiros meses do ano. No período, de acordo com a associação, foram 10.582 novas contratações na região.
Além disso, segundo o estudo Demanda de Talentos em TIC e Estratégia STCEM, publicado pela Brasscom em dezembro de 2021, a projeção é de que as empresas de tecnologia brasileiras demandem 797 mil talentos de 2021 a 2025. No entanto, de que maneira a formação adequada tem chegado à população de baixa renda? Quais projetos existem para incentivar o ingresso de minorias sociais nessa área?
Francielle Fernandes Rodrigues, 24 anos, explica que desde muito nova teve contato com computadores. Há cerca de 14 anos, os pais foram donos de uma lan house (local para acessar a internet bastante popular no início dos anos 2000). Porém, a aluna de bacharelado de Ciência da Computação conta que demorou a conhecer a existência do curso. Moradora do bairro Formosa, em Alvorada, e estudante de escola pública, Francielle afirma que durante o Ensino Fundamental e Médio não se recorda de ter visto, na escola, alguma informação que fizesse alusão à área de TI.
— Até que um dia fui em uma feira de profissões, um evento promovido por uma universidade privada de Porto Alegre, e lá descobri o curso. Eu só sabia que gostava de mexer no computador, mas não sabia o nome do curso nem nada do tipo — relembra Francielle, que hoje cursa o último semestre da graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Matemática
Apesar da existência de um laboratório de informática na instituição de ensino que frequentou, ela conta que foram poucas as vezes em que pôde utilizar o espaço. Na época, por não ter quantidade suficiente de computadores para os alunos da turma, eles acabavam não frequentando o laboratório tanto quanto poderiam.
A preparação para o vestibular foi outra etapa desafiadora para a estudante. Francielle recorda de ter pesquisado, de forma independente, quais eram as matérias que tinham maior peso na UFRGS para possibilitar o ingresso no curso desejado. Por fim, obteve uma vaga por meio do Sistema de Seleção Unificada (Sisu). No primeiro semestre, uma surpresa: a disciplina que tinha mais dificuldade era justamente a sua favorita: matemática. A estudante precisou buscar auxílio fora da universidade para conseguir acompanhar o ritmo das aulas:
— Foi bem complicado. Não sofri tanto com programação nos primeiros semestres mas, sim, com matemática. Eu vi que era muito diferente do que eu tinha aprendido nos anos anteriores. Percebi também uma diferença enorme entre o que eu sabia e o que os meus colegas, que haviam estudado em escolas particulares, sabiam.
A solução encontrada foi contratar uma professora de matemática particular, para diminuir a dificuldade. Há três anos, Francielle trabalha em uma empresa gaúcha com atuação nacional no ramo de venda de livros.
Em família
O fascínio da estudante pelo curso de Ciência da Computação inspirou também o técnico em informática Marco Antônio de Souza Rodrigues, 43 anos, pai de Francielle. O profissional, que trabalha com manutenção de computadores, conta que sempre foi inclinado para a área de tecnologia.
— Quando ela iniciou, me incentivou muito a tentar ingressar no curso também. Foi uma coisa que eu sempre quis mas, na minha época, não tinha tanto acesso a curso pré-vestibular gratuito, por exemplo, ou às políticas de cotas raciais.
Marco fez o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2019, e começou a graduação em 2020. Atualmente, está no segundo semestre e busca uma colocação no mercado de trabalho na área de desenvolvedor. Para ele, o início da graduação também foi um desafio do ponto de vista do conteúdo.
— Sinto bastante dificuldade, principalmente, na matemática. Eu não vim com a base necessária para me sair bem logo no início. Precisei buscar recursos por fora para conseguir ir bem — destaca o estudante.
Enquanto a oportunidade não aparece, o técnico em informática trabalha com manutenção de computadores, design gráfico, manipulação de imagens e separação de artes para serigrafia. Para organizar a rotina de trabalho e estudo, ele conta que optou por deixar todas as disciplinas no turno da manhã. À tarde, se dedica aos trabalhos e, à noite, estuda para a faculdade e também realiza cursos de linguagens de programação:
— A universidade ensina a lógica para entender como funcionam os programas. Mas é possível estudar outras linguagens. Busco sempre cursos gratuitos.
"Possibilidade de emancipação"
Formada em Gestão de Pessoas, Andreza Rocha teve as primeiras experiências profissionais há oito anos, na área de RH para empresas de TI. Assim, sempre esteve próxima de temas voltados para a tecnologia. Ela participou da fundação de diferentes iniciativas sociais na área. Em Porto Alegre, foi fundadora do Afropython, um movimento de inclusão e empoderamento de pessoas negras em TI. Depois, fundou a Afro Tech BR.
— Por esse trabalho (desenvolvido na Afro Tech BR), fui a única brasileira convidada para representar a comunidade do Brasil nos Estados Unidos, no principal evento da Microsoft no mundo — relembra Andreza.
Atualmente, ela trabalha no Afroya Tech Hub. A iniciativa tem o objetivo de ser um espaço global de projetos e diversidade para inserção, desenvolvimento, ascensão e pertencimento de talentos negros ao ecossistema de tecnologia e inovação.
Quanto ao perfil do profissional de tecnologia no Brasil, hoje, Andreza destaca o que é percebido a partir de pesquisas: homens brancos, de 20 a 30 anos, com escolaridade alta. Para ela, a principal barreira que precisa ser enfrentada por pessoas de baixa renda, que queiram seguir carreiras em TI, é a desinformação. Há a necessidade, explica Andreza, de que essas profissões sejam divulgadas ainda durante o Ensino Fundamental.
— Hoje a área de TI nem sequer é apresentada como uma perspectiva de ocupação. Quando essa alternativa chega, as pessoas já estão há bastante tempo no mercado, trabalhando em outras áreas. Se a gente sabe que são empregos que remuneram bem, por que não estamos fazendo com que todas as pessoas saibam disso? Hoje, TI é uma possibilidade de emancipação — afirma a profissional.
Mapeamento
Além de incentivar a entrada de novos profissionais na área, o Afroya tem o objetivo de apoiar quem já está no mercado de trabalho.
— A ideia nasceu dessa necessidade de criar novas narrativas. Somos muitos, participamos da construção de tecnologias e queremos fazer parte do debate — afirma Andreza.
No momento, a equipe do Afroya está trabalhando no desenvolvendo da pesquisa Quem Somos, que tem o objetivo de mapear os profissionais negros que trabalham com tecnologia no Brasil. Quando concluída, resultará em um relatório que deve conter informações sobre quem são essas pessoas, onde estudaram, se tiveram acesso a políticas de ações afirmativas, entre outras informações. A coleta dos dados começou em 11 de agosto e segue até o final de setembro. O lançamento oficial dos resultados ocorrerá no dia 12 de novembro, em São Paulo.
Participe:
/// Se você é um profissional negro, da área de tecnologia, e quer participar da pesquisa, reserve cerca de 15 minutos e clique aqui.
*Colaboração: Guilherme Jacques