Apontada como uma mudança importante na autonomia de universidades e institutos federais, a Medida Provisória (MP) 914/2019, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em 24 de dezembro de 2019, não é vista com bons olhos por reitores de instituições gaúchas, que alegam falta de diálogo entre o governo e a comunidade acadêmica. Além disso, em coro, criticam o caráter emergencial com o qual o texto foi publicado, deixando escapar, inclusive, erros de português (no artigo segundo se lê "listra tríplice", no lugar de "lista tríplice").
A MP muda as regras para a escolha de reitores nas instituições federais de ensino. Entre as alterações determinadas pelo texto, está o peso dos votos de cada categoria para selecionar reitores e diretores, afastando a possibilidade de consulta paritária, como a adotada em algumas instituições – nela, os votos de cada ente da comunidade acadêmica têm o mesmo peso. Com a MP, fica estabelecido que o corpo docente tem 70% da representatividade, enquanto técnicos-administrativos e alunos têm 15% cada.
Antes da MP, as entidades tinham independência para definir seu próprio formato de seleção. Agora, todas ficam submetidas às mesmas normas, que eliminam práticas consideradas "democráticas" pelas comunidades acadêmicas.
— A MP tem dois vícios de origem graves. O primeiro é que a Constituição prevê que uma Medida Provisória seja usada para temas de urgência. Não faz sentido dar urgência nessa mudança de processo. E o segundo é que o governo propõe uma nova forma de escolher os dirigentes sem conversar com as universidades e institutos. Conversando e fazendo isso como um projeto de lei, sairia uma proposta melhor — argumenta Pedro Hallal, reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
No mesmo tom, Jane Fraga Tutikian, vice-reitora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), faz um balanço do impacto da medida nas instituições de ensino.
— Nos surpreende por ser mais uma agressão à democracia e à autonomia que caracterizam a universidade. Em nenhum momento se respeita a autonomia administrativa, em nenhum momento há diálogo com a universidade. No fundo, parece que há favorecimento de nomeação de pessoas não legitimadas nas eleições pela própria comunidade universitária — critica.
O documento ainda trata da formação da lista tríplice, que leva os três nomes mais votados à análise do presidente. Conforme o artigo segundo: "É obrigatória a realização de consulta à comunidade acadêmica para a formação da listra tríplice para o cargo de reitor para a submissão ao Presidente da República por meio do Ministro de Estado da Educação". Essa consulta deve ser por votação direta, com voto em apenas um candidato, para mandato de quatro anos e com voto facultativo, define o texto. Também houve alterações no sistema de nomeações do vice-reitor e de diretores de unidades.
— O vice participava da chapa. Agora, não mais. Ele será escolhido pelo reitor nomeado pelo presidente. Os diretores de unidade também ficarão a cargo do reitor. Antes, eles eram escolhidos pelas próprias unidades — explica Paulo Burman, reitor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Na manhã de sexta-feira (27), a UFPel teve uma reunião emergencial para discutir uma nova proposta de texto ao da MP para apreciação dos parlamentares. Segundo Hallal, a proposição objetiva fugir da ideia da "crítica pela crítica".
— Queremos apresentar uma alternativa para não ficar só na narrativa negativa.
Institutos são os mais impactados
Enquanto as universidades ainda trabalhavam com uma certa flexibilidade para definir os processos de escolha dos gestores (algumas já operam no sistema 70/15/15%), os institutos federais sempre funcionaram da mesma forma: o mais votado era eleito reitor, sem necessidade de apreciação do nome em Brasília. O modelo foi estabelecido já na lei de criação dos institutos federais (Lei nº 11.892/2008) e era aplicado em todas as instituições do tipo.
— Para os institutos federais, todos eles, é uma mudança drástica. Altera completamente a forma de escolher dirigentes. É uma ruptura para os processos democráticos. Considero um grande retrocesso — defende o reitor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Júlio Heck.
De validade imediata, a medida precisa ser aprovada pelo Congresso em até 120 dias. Caso contrário, tem seus efeitos sustados. Se for validada, a MP já trará impactos à UFRGS, que tem eleições previstas para a metade de 2020.
GaúchaZH conversou com gestores de universidades e institutos federais do Rio Grande do Sul, que interpretam as mudanças a partir deste texto. A reportagem não conseguiu contato com as assessorias da Universidade Federal de Rio Grande (Furg) e da Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Já a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) está em recesso e só retorna às atividades no próximo dia 6.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Como era
- Votação: feita com chapas, na qual as três mais votadas eram submetidas à nomeação presidencial.
- Vice e diretores: o vice-reitor fazia parte da chapa. Já diretores de unidades eram escolhidos pela comunidade acadêmica.
- Peso dos votos: já usava o sistema 70/15/15%. Contudo, esses valores já entraram em discussão dentro da universidade, garante a vice-reitora, Jane Fraga Tutikian.
Como fica
- Votação: três candidatos mais votados formarão uma lista tríplice que será encaminhada para apreciação presidencial.
- Vice e diretores: passam a ser indicados pelo reitor escolhido.
- Peso dos votos: segue na proporção 70/15/15%.
O que diz a vice-reitora
— Causa prejuízos grandes à democracia à medida que, em primeiro lugar, não há mais chapa para concorrer ou disputar a reitoria, passa a ser disputa só para reitor e o vice é escolhido.
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Como era
- Votação: feita com chapas, na qual as três mais votadas eram submetidas à nomeação presidencial.
- Vice e diretores: o vice-reitor fazia parte da chapa. Já diretores de unidades eram escolhidos pela comunidade acadêmica.
- Peso dos votos: usava o sistema paritário, com 33% para cada segmento.
Como fica
- Votação: três candidatos mais votados formarão uma lista tríplice que será encaminhada para apreciação presidencial.
- Vice e diretores: passam a ser indicados pelo reitor escolhido.
- Peso dos votos: segue na proporção 70/15/15%.
O que diz o reitor
— A proposta prevê uma divisão de 70/15/15%, o que cria um distanciamento entre os segmentos e certamente reduzirá a participação de quem tem 15% — avalia o reitor.
Universidade Federal de Pelotas (UFPel)
Como era
- Votação: feita com chapas, na qual os nomes da chapa mais votada eram levados para apreciação do governo federal.
- Vice e diretores: o vice-reitor fazia parte da chapa. Já diretores de unidades eram escolhidos pela comunidade acadêmica.
- Peso dos votos: usava o sistema paritário, com 33% para cada segmento.
Como fica
- Votação: três candidatos mais votados formarão uma lista tríplice que será encaminhada para apreciação presidencial.
- Vice e diretores: passam a ser indicados pelo reitor escolhido.
- Peso dos votos: segue na proporção 70/15/15%.
O que diz o reitor
— Quero deixar registrado que não sou favorável nem com essa forma. A única votação que eu acredito é a universal, na qual cada voto vale um, sem peso diferente, como acontece na eleição para presidente, prefeito etc. Votação paritária já representa uma distorção, porque voto de professor e técnico vale mais que do aluno, mas a universidade só existe por causa dos estudantes — diz Hallal.
Atualmente, a universidade tem uma lista tríplice formada pelos candidatos de uma única chapa mais votada. Para o reitor, a lista com nomes de três chapas pode favorecer alguém não tão bem votado.
— É como se na eleição presidencial ficasse o Bolsonaro, o (Fernando) Haddad e o Ciro Gomes e alguém tivesse o poder de reverter o poder das urnas e eleger o Ciro. Isso é absurdo.
Em nota, a administração da universidade defende que: "Mais do que manifestar nossa contrariedade com a Medida Provisória apresentada, a administração da UFPel reforça que existe uma proposta alternativa a ser também apreciada pelo Congresso Nacional, caso esse entenda que o expediente justifique o regime de urgência. Nessa proposta, não deve haver lista tríplice, mas sim a nomeação direta do candidato mais votado em processo eleitoral conduzido em cada Universidade e Instituto e referendado pelo Conselho Superior da instituição".
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
Como era
- Votação: seguia sistema de chapas (com reitor e vice), que eram submetidas a consulta na universidade e depois voltavam para apreciação do conselho universitário. Este era responsável por encaminhar uma lista tríplice ao Ministério da Educação (MEC).
- Vice e diretores: o vice-reitor fazia parte da chapa.
- Peso dos votos: usava o sistema 70/15/15%.
Como fica
- Votação: três candidatos mais votados formarão uma lista tríplice que será encaminhada para apreciação presidencial.
- Vice e diretores: passam a ser indicados pelo reitor escolhido.
- Peso dos votos: segue na proporção 70/15/15%.
O que diz a reitora
— Autonomia é um dos nossos princípios. As universidades funcionam bem com a autonomia garantida. Não entendemos que haja critérios de urgência para uma medida assim, sem ser discutida — avalia a reitora, Lucia Campos Pellanda.
Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS)
Como era
- Votação: o nome mais votado era levado para submissão da presidência, sem lista tríplice.
- Vice e diretores: diretores de campi eram escolhidos pela comunidade.
- Peso dos votos: usava o sistema paritário, de 33% por categoria.
Como fica
- Votação: será preciso elencar três nomes para a elaboração da lista tríplice que será levada à presidência.
- Vice e diretores: passam a ser indicados pelo reitor escolhido.
- Peso dos votos: passa a ter a proporção de 70/15/15%.
O que diz o reitor
— Na lei de criação dos institutos, não estava prevista a lista tríplice. Era votação direta e o primeiro colocado ia para (nomeação em) Brasília — explica Heck.
Instituto Federal Sul-Riograndense (IFSul)
Como era
- Votação: o nome mais votado era levado para submissão da presidência, sem lista tríplice.
- Vice e diretores: diretores de campi eram escolhidos pela comunidade.
- Peso dos votos: usava o sistema paritário, de 33% por categoria.
Como fica
- Votação: é preciso elencar três nomes para elaboração da lista tríplice que será levada à presidência.
- Vice e diretores: passam a ser indicados pelo reitor escolhido.
- Peso dos votos: passa a ter a proporção de 70/15/15%.
O que diz o reitor
— Ao longo desse tempo em que tiveram eleições proporcionais (desde 2008), os institutos federais avançaram nas ofertas de vagas e cursos e nos rankings de avaliações de resultados. Entendemos que esse processo democrático mais efetivo contribuiu também para a melhoria da qualidade e, por isso, essa MP traz retrocessos — pontua o reitor do IFSul, Flávio Nunes.
Instituto Federal Farroupilha (IFFar)
Como era
- Votação: o nome mais votado era levado para submissão da presidência, sem lista tríplice.
- Vice e diretores: diretores de campi eram escolhidos pela comunidade.
- Peso dos votos: usava o sistema paritário, de 33% por categoria.
Como fica
- Votação: é preciso elencar três nomes para elaboração da lista tríplice que será levada à presidência.
- Vice e diretores: passam a ser indicados pelo reitor escolhido.
- Peso dos votos: passa a ter a proporção de 70/15/15%.
O que diz a reitora
— Hoje, a legislação nos assegura a escolha do reitor em uma votação uninominal. A MP traz uma quebra desse processo e fere de forma impressionante o processo democrático dos institutos federais — fala a reitora do IFFar, Carla Comerlato Jardim.
Sobre a escolha dos diretores de campi ficar a cargo dos reitores, ela completa:
— Isso é algo negativo, pois cria a possibilidade que tenhamos gestores não eleitos pela comunidade e, sim, por alguém proveniente de uma lista tríplice.