"Nhaí, amapô! Não faça a loka e pague o meu acué, deixe de equê senão eu puxo o teu picumã."
A presença dessa frase no enunciado de uma das questões do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2018 tirou Jair Bolsonaro do sério no ano passado. Foi um dos exemplos que o então presidente eleito usou para afirmar que a prova seguia um viés ideológico de esquerda e promovia a ideologia de gênero. A frase estava em pajubá, dialeto usado por gays e travestis. Em uma transmissão em vídeo, Bolsonaro prometeu:
— Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão dessa forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Não vai ter isso daí.
A partir da declaração, temeu-se que Bolsonaro quisesse ver a prova com antecedência, para interferir nela – o que colocaria em xeque o caráter sigiloso do Enem. Não há indício de que Bolsonaro tenha tido acesso ao exame, que ocorre em 3 e 10 de novembro, mas uma portaria de março deste ano criou uma comissão encarregada de expurgar os itens considerados polêmicos do Enem.
GaúchaZH encaminhou ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (Inep), órgão do Ministério da Educação responsável pelo Enem, um conjunto de questionamentos sobre a elaboração do exame deste ano, entre eles se Bolsonaro tomou conhecimento prévio das provas e se a Presidência acompanhou de alguma forma a preparação delas. Em meses anteriores, o ministro da Educação, Abraham Weintraub, havia dito que Bolsonaro não pediu para ler o Enem, que não o havia lido e que não iria lê-lo.
O Inep, porém, enviou uma resposta breve e genérica, sem abordar o envolvimento do presidente da República. Afirmou que a única alteração no processo, neste ano, foi a publicação da portaria número 244, acrescentando: "A atual gestão orientou que as questões das provas do Enem 2019 mantivessem o foco do exame, de medir a capacidade de ler e compreender texto, e não abordar temas que possam polemizar o ensino. O Inep possui equipe técnica especializada que acompanha todo o processo de preparação do Enem".
A portaria em questão criou uma comissão com a incumbência de realizar uma "leitura transversal dos itens disponíveis no Banco Nacional de Itens (...) para verificar a sua pertinência com a realidade social, de modo a assegurar um perfil consensual do Exame". A partir dessa leitura, segundo o decreto, a comissão pode recomendar que certas questões não sejam utilizadas na montagem das provas. Técnicos do Inep também emitem pareceres e, no fim, o presidente do órgão bate o martelo sobre a exclusão ou não dos itens.
A comissão encarregada de ler todas as questões que estão disponíveis, para barrar as indesejadas, é formada por três pessoas. Há um representante do Ministério da Educação, Marco Antônio Barroso Faria, e um representante do Inep, Antonio Maurício Castanheira das Neves. O terceiro membro representa a sociedade civil, ou seja, os mais de 200 milhões de brasileiros. A pessoa escolhida pelo governo para exercer essa função é o procurador de Justiça de Santa Catarina Gilberto Callado de Oliveira.
O procurador tem um perfil ideológico conservador, com pendores para a monarquia – participou de vários encontros monárquicos e escreveu sobre o assunto. No campo educacional, mostrou pouca afeição por professores e universidades. Três anos atrás, ao falar sobre degradação familiar na Câmara Municipal de Brusque (SC), disse que família e escola cumpriam sua função no passado, mas que hoje isso se perdeu:
— Era fácil fazerem isso, pois recebiam a criança com bases sólidas. Hoje, elas já chegam corrompidas, e muitos professores, também corrompidos, acabam por destruir o que restava das funções educativa e emocional das crianças.
Em uma entrevista, Callado de Oliveira também atacou as universidades, por supostamente promoverem ideologias de esquerda:
— Destaco a contaminação ideológica nas universidades, que vêm formando juristas e políticos com mentalidade cada vez mais liberal e esquerdizante. Vejam-se os constituintes de 1988. Estavam desiludidos com os instrumentos legais usados pelos governos militares contra os presos políticos e, por isso, criaram extenso rol de franquias para os acusados, sem dar a devida atenção às vítimas e à própria sociedade.
Em sua manifestação em Brusque, relatada no site da Câmara Municipal, o procurador afirmou que "a família é uma criação divina", fazendo referência ao Gênesis, primeiro livro da Bíblia. Disse que é preciso resgatar a moralização da família e enaltecer seus valores éticos e cristãos. Também se insurgiu contra o que considera "ideologia de gênero".
— Infelizmente, esse projeto tem recebido respaldo de algumas instituições e particularmente do Supremo Tribunal Federal. Hoje, o inimigo da família é o STF.
Em sua fala, o representante da sociedade brasileira na comissão do Enem também tachou de pseudofilósofo e canalha o filósofo iluminista Jean-Jacques Rousseau.
— Ele retirou todo e qualquer fundamento divino da família. Nivelou o homem aos animais — criticou.
Também em Brusque, em um fórum ocorrido em 2018, Callado voltou a criticar o STF:
— Os tribunais podem, e infelizmente fazem isso, manipular a lei. Dar uma certa elasticidade às leis. Inclusive a Suprema Corte. Não faz muito tempo, o STF julgou descriminalizado o aborto de fetos anencéfalos, sob o fundamento de que uma norma constitucional é plurissignificativa, polissêmica. Ainda que seja uma norma explícita, clara, que não admite tergiversações em sua interpretação. Por exemplo, a questão da união civil entre pessoas de mesmo sexo. A Constituição é clara: é entre homem e mulher. E o ministro relator deste acórdão disse que a norma constitucional é polissêmico. O primeiro significado, que é o significado explícito, claríssimo, é inconstitucional.
GaúchaZH pediu ao Inep entrevistas com os três membros da comissão, mas ainda não houve resposta. A portaria 244 determina que os integrantes devem assinar um Termo de Compromisso de Confidencialidade e Sigilo.
Também foram enviadas questões relacionadas à comissão. GaúchaZH perguntou quantos itens há no banco de questões, se os integrantes da comissão leram todos eles, quantas questões recomendaram que não fossem utilizadas e quantas dessas questões, por recomendação deles, foram excluídas. Outro questionamento foi sobre o critério de escolha de Callado de Oliveira como representante da sociedade civil. O Inep ainda não respondeu.