Por Nilton Mullet Pereira
Professor da UFRGS
O argumento de que um professor de História é um doutrinador tem um forte componente ideológico. Sempre parte de uma postura que procura desqualificar um espaço público como a escola e duvidar da ideia de que a aprendizagem da vida e para a vida se dá também nessa relação conflituosa, difícil, às vezes frustrante, mas com trocas e novas informações, que caracteriza o espaço público e que é fundamental para o futuro das novas gerações.
O tom acusatório que assume o argumento é demasiado perverso. Primeiro, porque se insere no interior de um certo dispositivo de banalidade. Uma disposição dos modos de ver e de falar que valoriza excessivamente a opinião (a doxa) e deprecia o conhecimento acadêmico e as disciplinas científicas, tratando a opinião comum e o conhecimento como se tivessem o mesmo valor para explicar a vida social ou até mesmo a própria natureza (ver contestações às teses do aquecimento global, o movimento antivacina, o terraplanismo ou o negacionismo em relação ao golpe de 1964). Segundo, porque esse tom acusatório se sustenta numa noção um tanto simplória de que uma relação de criação e de conhecimento se dá apenas no campo de uma técnica. Para esse discurso da banalidade, a técnica seria suficiente para ensinar História, desenhar um projeto arquitetônico de uma residência, ou administrar uma cidade ou um país.
Essa leitura supõe que, se você é tão somente um técnico, você é imparcial, neutro e capaz de furtar-se de si mesmo, suas inspirações, suas paixões, seus gostos, suas referências históricas e subjetivas. No limite, o técnico perfeito seria uma máquina, mas uma máquina nunca projetada por uma pessoa, uma máquina autocriada, sem a interferência dos valores humanos, das gentes.
Ora, um professor de História é como um arquiteto. O arquiteto, ao criar um projeto de moradia para uma família determinada, é um sujeito que domina as técnicas do desenho e outras tantas que nem sei listar e, ao mesmo tempo, é também um artista, um historiador, um matemático, um sociólogo, uma pessoa, uma subjetividade. Sua criação não é meramente técnica; ele não é essa máquina autocriada que não habita lugar algum. O arquiteto tem inspiração, tem referências históricas, tem a família para quem o espaço de convívio será criado, que gosta mais disto ou daquilo. O arquiteto prefere mais o azul do que o vermelho, ou vice-versa. Poderá a família, quem sabe, não gostar muito do primeiro desenho, mas a escuta e o debate do arquiteto com os familiares serão elementos centrais que farão valer um espaço de diálogo no próprio processo de criação do arquiteto/artista/historiador/gente. A complexidade envolvida na criação e no conhecimento não pode, portanto, ser reduzida a uma doutrinação.
O professor de História é como um arquiteto, um médico, um engenheiro eletrônico, um artista, um filósofo. Ele não doutrina ninguém. Ele propõe uma relação de conhecimento que fala da vida, dos imaginários de diferentes povos, das organizações e políticas de outras sociedades, do seu presente e do modo como imaginamos hoje o tempo que passou e suas relações com os nossos próprios tempos. Sua criação, em uma aula de História, são os conceitos e, ao mesmo tempo, a crítica, o debate sobre como a vida foi produzida desde muito antigamente até os dias de hoje.
O professor de História não é um alto-falante que simplesmente conta uma história idêntica ao que ocorreu no passado. Ele conta histórias, mas conta com técnica e, também, com emoção, com as energias que o constituem, com sua própria história e sua memória, pois, não sendo uma máquina autocriada, ele é gente.”
Esse trabalho tem uma porção que envolve técnicas discursivas, metodológicas e teóricas. Essas técnicas são um conjunto de conceitos criados pelo pensamento histórico e pedagógico desde séculos passados. Elas exigiram uma porção significativa de pensamento, debate, defesas de teses e elaborações narrativas. Mas esse processo todo nunca foi puramente técnico, nunca foi uma obra de uma máquina autocriada; foi obra de pessoas e, por isso, teve e tem também uma porção de arte, de vida, de amor, de paixão, de conflito, de confronto, de memórias, de saberes dos próprios alunos, de saberes das comunidades onde estão nossas escolas.
Um dos conceitos que mais transitam numa aula de História é o de ditadura: a ditadura civil-militar no Brasil, as ditaduras do Cone Sul, a ditadura nazista e outras variações possíveis. Em uma aula sobre a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), não se trata de se opor opinativamente se se é contra ou a favor; não é isso que está em questão. Esse conceito foi construído demoradamente e com significativo rigor teórico e metodológico, a partir de um trabalho calmo e paciente sobre os documentos, como bases materiais e empíricas, que permitem a produção das interpretações históricas. Trata-se, portanto, de entender o conceito e pensar determinadas realidades a partir dele.
O real nos é dado através de uma operação de linguagem. Às vezes, fazemos isso cotidianamente, de modo a dar sentido ao que vemos, mas essa operação de linguagem que é a criação conceitual não é obra de uma opinião cotidiana; é um trabalho longo e paciente do cientista que se debruça sobre os dados empíricos disponíveis e os documentos (escritos, visuais, sonoros etc.) que nos dão acesso, na forma de vestígios, ao passado. Um conceito não pode ser meramente oposto a uma opinião, ainda que a existência desta possa ser um ponto de partida para a aprendizagem conceitual. Negar a aprendizagem dos conceitos é viver em um mundo limitado, pois o acúmulo de conceitos produzidos no âmbito da criação do conhecimento é capaz de ampliar as possibilidades de mundo, bem como permitir a criação de novos mundos.
Portanto, uma aula de História não é espaço de doutrinação, e o professor não é uma máquina. Um professor de História também não é de esquerda ou de direita, nem evangélico ou do batuque, ainda que possa ter cada uma dessas crenças como constituintes de sua subjetividade. O fato é que, quando está em aula, ainda que gente, ele é definitivamente professor de História e, se for evangélico, essa porção que o compõe trará para a sala de aula um certo modo de ser: tolerante, amoroso, provocador, inquieto, falante etc. Logo, ele vive o paradoxo de ser gente e de levar sua escuta para outras gentes, de outros tipos, de outras artes, religiões e políticas. Esse saber de abertura ele aprendeu tanto com a vida (seu devir evangélico ou do batuque) quanto com a técnica, que também é vida (os métodos e as teorias históricas e educacionais).
O professor de História não é um alto-falante que simplesmente conta uma história idêntica ao que ocorreu no passado. Ele conta histórias, mas conta com técnica e, também, com emoção, com as energias que o constituem, com sua própria história e sua memória, pois, não sendo uma máquina autocriada, ele é gente. E os alunos escutam e ajudam a contar essas histórias à medida que intervêm com as suas, com seus olhares, experiências e passados.
Isso quer dizer que, como em qualquer espaço público, na sala de aula de História há sempre lugar para o imprevisível, para o imponderável: uma fala emocionada, uma discordância, um conflito. Um professor pode ficar zangado, pode falar de governos, pode falar do seu desgosto com o sistema educacional, pode criticar práticas de intolerância, pode falar sobre a vida, o presente, os problemas que afligem a todos – e tudo isso não precisa ser necessariamente aceito ou compartilhado pelos alunos ou pais ou comunidades. Essa é a base de qualquer diálogo: a escuta e a discordância. Se o professor de História precisa escutar a comunidade, os alunos e os pais, esses todos também precisam escutá-lo, sem o tom acusatório ou perverso que implica a marca “doutrinador”. E a aprendizagem histórica, bem como a nossa formação como gente, se dá nesse embate, nesse conflito de ideias que só funciona com o respeito e a tolerância.
Esse imponderável é a própria vida circulando e atravessando os corpos que habitam, momentaneamente, a aula de História. Se o abandonamos, estaremos a querer construir escolas e aulas de História como máquinas gigantes, como na alegoria criada pelo Pink Floyd em The Wall, para produzir peças que possam integrar um mecanismo preexistente e que dispõe todos em lugares já definidos, com rostos sem expressão, sem sorriso, sem criação.
A tese da doutrinação é ideológica, pois, ao querer tirar a vida da escola, o imprevisível da aula de História e o diálogo público das relações entre professores, alunos e comunidades, recria um mundo-máquina, inumano, onde as regras e as normas (sempre contingentes e criadas por um grupo particular) são mais importantes do que as pessoas.