Mais de 70 anos depois do fim da II Guerra Mundial, o alemão Curtis Stanton e os holandeses Bernard Kats e Johannes Melis, sobreviventes do Holocausto radicados no Brasil, continuam contando suas histórias. Foram experiências que por muito tempo mantiveram escondidas até das próprias famílias. Com o término do confronto, disseram eles, não falariam mais sobre as lembranças traumáticas daquele período.
Mas há ocasiões especiais em que abrem uma exceção. Stanton, 88 anos, Kats, 80, e Melis, 79, recordaram detalhes da infância vivida durante o regime nazista em um evento do projeto Compromisso Moral e Lições de Solidariedade, que organiza encontros em escolas, universidades e outras instituições brasileiras. Os três europeus enxergam essa tarefa como um dever para as futuras gerações.
Por isso, na manhã desta segunda-feira (21), os alunos do terceiro ano do Colégio Marista Champagnat receberam a visita dos três homens. Por cerca de duas horas, eles relataram as suas histórias, do nascimento na Europa à chegada no Brasil. Cada uma delas mostra como a solidariedade de pessoas dispostas a se arriscarem salvou suas vidas.
– Eu vivi por cinco anos só com uma ideia na minha cabeça: como vou conseguir sobreviver? Eu queria muito sobreviver – relembra Stanton.
Ouvir sobre intolerância de quem sobreviveu um dos períodos mais marcantes de violação de direitos humanos da história fez com que alguns alunos relacionassem a época a episódios de hoje, como as demonstrações extremistas em Charlotsville, cidade dos Estados Unidos – durante os conflitos, uma americana morreu depois de ser atropelada por um carro que avançou contra a multidão de ativistas antirracismo.
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– Não tenho nenhuma opinião formada do que pode acontecer futuramente, mas não é um problema só dos Estados Unidos. Eu sempre me pergunto, o que eu poderia fazer se eu tivesse 25 anos com a cabeça de hoje? Temos que fazer alguma coisa nos nossos círculos de atuação, seja na paróquia, na comunidade – aconselhou Kats.
A luta para permanecer vivo
Stanton nasceu na Alemanha e passou por três campos de concentração durante a infância e a adolescência. Kats foi hospedado por famílias que tiveram coragem para mantê-lo fora de perigo – ao todo, morou em sete casas diferentes. Melis viu o pai ser perseguido por tropas nazistas durante a II Guerra por abrigar judeus e ter afundado um navio de guerra alemão, ancorado nas águas que banhavam a região de seu lar na Holanda.
O alemão era um dos único estudantes judeus. Por causa das brigas com os colegas, foi enviado para um colégio israelita em Hamburgo. Tinha de andar 45 minutos de bonde para chegar até lá – assim conheceu melhor a própria cidade de onde foi expulso em 1941, rumo a Auschwitz, campo de concentração na Polônia. Esse seria o primeiro dos três pelos quais ele passaria até completar 17 anos.
– Meu pai foi soldado alemão na I Guerra, mas isso não mudou nada para eles (os nazistas) – contou.
Ele viu o pai, já com a saúde debilitada, morrer num gueto, ondem viviam contidos judeus, opositores do regime e outros prisioneiros de guerra. Com 12 anos, Stanton definhava fisicamente devido ao trabalho pesado e à falta de comida.
Quando tinha 14 anos, foi transferido para outro campo de concentração junto à mãe. Na entrada, foram separados. Ela foi assassinada em uma câmara de gás. Ele mentiu que tinha 16 anos e foi novamente encaminhado para o trabalho forçado.
– Eu não sei por qual motivo eu menti. Até hoje eu não sei – disse, cogitando a possibilidade de ter sido enviado à morte junto com a mãe caso tivesse revelado a verdadeira idade.
No caminho, encontrou entre os presos de guerra um médico norueguês que o ajudou a superar sua fraqueza e as doenças que havia contraído no período. Stanton conseguiu fugir e se libertar enquanto era transportando pelos nazistas em um caminhão com outros judeus, durante uma ofensiva militar dos Aliados. O alemão e mais outros jovens foram acolhidos por tropas inglesas, e Stanton partiu para a França, onde encontrou o irmão e a irmã que não via desde a infância. Veio para a América do Sul em busca de trabalho, chegando pelo Uruguai. Instalou-se no Brasil há 59 anos e construiu família.
O Uruguai também foi o primeiro destino sul-americano de Kats. O holandês viu o pai ser preso e levado para o extermínio depois que o país foi invadido em 1940.
– Meu pai foi arrancado de casa, detido na Holanda e depois enviado a um campo de concentração. Depois de 15 dias, minha mãe recebeu uma carta avisando que ele havia morrido. Lembro até hoje da minha mãe na porta de casa com a carta na mão. Depois daquilo, seus cabelos ficaram grisalhos do dia para a noite – contou Kats, que acabou criado por famílias que abrigavam judeus durante a guerra.
A cada vez que fala sobre sua história, ele diz aprender um pouco mais como viver com os traumas e o sentimento de culpa:
– Eu sempre penso: por que eu sobrevivi e os outros não?
Melis, um holandês católico, viu a família se arriscar para abrigar famílias de judeus. Sua casa foi destruída durante um bombardeio da guerra. Refugiados em um esconderijo subterrâneo, que logo mais foi ilhado pela enchente, os Melis foram resgatados pelos americanos antes que as tropas alemãs aparecessem para prendê-los.
– Eu lembro de ser carregado nos ombros por soldados americanos com água na altura do pescoço – recordou.
Em 1951, a família de Melis veio recomeçar a vida em Porto Alegre, onde ele conheceu sua mulher e vive até hoje.
O que os alunos aprenderam
Ao final das palestras, Maria Eduarda Rocha, de 17 anos, foi uma das estudantes que se levantaram e foram falar pessoalmente com Stanton:
– Ele disse que o nazismo não pode acontecer novamente e estava muito emocionado. Eu nunca achei que fosse falar com alguém que passou por isso.
Nicolle Carlet, 16 anos, a aluna que perguntou aos palestrantes sobre o extremismo nos Estados Unidos, ficou tocada pelas lições de vida:
– Muito do que se aprende nos livros vimos que aconteceu na vida dessas pessoas, é tudo real. Eu saio daqui pensando no que eu posso fazer, como eu posso mudar alguma coisa, e não posso, nunca, deixar de discutir o que acontece no mundo.