A professora e cientista Pâmela Mello-Carpes reuniu os alunos de pós-graduação para fazer um comunicado alarmante. Por causa dos cortes de verbas que vêm assolando as universidades brasileiras, o laboratório de fisiologia que ela dirige na Unipampa, em Uruguaiana, só teria dinheiro para funcionar até o final de agosto. As pesquisas em andamento estavam em risco.
– Não sei como manter – disse ela aos alunos, apavorados.
No mesmo dia, depois de deixar a universidade, o telefone de Pâmela tocou. Do outro lado da linha estava o presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Luiz Davidovich. Ele queria comunicar à pesquisadora gaúcha que ela era uma das sete vencedoras do Prêmio Para Mulheres na Ciência, oferecido pela L'Oréal Brasil, em parceria com a Unesco e a ABC. A distinção significava uma bolsa de R$ 50 mil.
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– Foi muita coincidência. O prêmio nos salvou. Eu estava com todo o laboratório ameaçado, e esse dinheiro vai permitir manter a pesquisa por mais um ano – comemora Pâmela.
Além dos recursos salvadores, a distinção representa um reconhecimento importante para a cruz-altense de 33 anos, selecionada entre 400 mulheres que submeteram projetos científicos aos avaliadores. Pâmela sente-se honrada ainda por fazer parte de uma iniciativa que tem como objetivo fomentar a participação feminina na ciência:
– É algo que motiva bastante. Se você pedir às pessoas para citar o nome de um cientista, poucas vão citar uma mulher. A maioria só conhece cientistas homens. E isso não acontece porque as mulheres não fazem ciência, mas porque elas acabam tendo menos oportunidade, porque existem outros aspectos que fazem a mulher ser mais sobrecarregada, como a questão dos filhos – observa.
O prêmio foi o coroamento de mais de uma década de esforços. Em 2005, depois de formar-se em Fisioterapia na Universidade de Cruz Alta, Pâmela começou um mestrado em Fisiologia na UFRGS, em Porto Alegre. Queria estudar o exercício físico e saber se ele era capaz de reverter déficits cognitivos.
O problema é que, para testar essa hipótese, era necessário provocar tal déficit. Em parceria com um doutorando, a cientista preparou um experimento que até hoje está na base de seu trabalho – e que pode ter implicações importantes para o desenvolvimento cognitivo humano.
Separação da mãe gera déficit de memória
Pâmela separou um grupo de ratos recém-nascidos e, nos primeiros 10 dias de vida, privou-os da presença da mãe por três horas diárias. Depois, o contato materno foi restabelecido. Passados dois meses, quando os espécimes já haviam atingido a idade adulta, a pesquisadora submeteu-os a testes de memória. Constatou que eles tinham uma perda considerável, na comparação com ratos que não tinham sido privados do contato com a mãe nos dias iniciais.
– Basicamente, a gente observou que um pequeno período de separação da mãe nos primeiros dias de vida, sendo constante, acaba causando déficits cognitivos, porque se trata de um período em que o cérebro está ainda em desenvolvimento. Gera um déficit de memória que persiste a vida inteira – explica.
Constatado esse efeito, Pâmela realizou um novo experimento, em que uma parcela dos ratos privados do contato com a mãe era submetida a exercícios físicos a partir dos 45 dias de vida. Resultado: o déficit de memória não se verificava. O exercício tinha o poder de reverter completamente a perda cognitiva. A descoberta levantou questões importantes. Será que acontece algo semelhante em seres humanos? A privação de cuidados na infância pode gerar prejuízo no desenvolvimento do individuo? Seria possível revertê-los?
São dúvidas que Pâmela não abordou diretamente, mas seu trabalho com ratos já virou referência em estudos relacionados a traumas na infância e a agressões físicas nos primeiros dias de vida. Ela acredita que seu trabalho representa um primeiro passo para a realização de pesquisas em humanos e para futuras intervenções clínicas. No entanto, observa que, no caso de pessoas, a questão não envolve apenas a presença da mãe.
– Em ratos, o responsável pelo cuidado é exclusivamente a rata fêmea, a mãe. Por isso, a gente trabalha a deprivação da presença da mãe. Eles não têm a nossa relação com sociedade, família, pai, mãe. Extrapolando para os seres humanos, significaria uma criança estar privada de cuidados parentais, de qualquer parente responsável por esses cuidados, porque na nossa sociedade a criança pode ser cuidada não só pela mãe, mas também pelo pai, pelo tio, pela tia.
Em 2010, depois do doutorado, Pâmela deu continuidade à pesquisa no laboratório montado em Uruguaiana, procurando entender o mecanismo que provocava o déficit de memória. Percebeu que há uma redução da neuroplasticidade, que é a capacidade do cérebro se modificar diante de experiências, algo fundamental para o aprendizado. Também identificou que o cérebro dos ratos privados da mãe sofre um desequilíbrio oxidativo que pode levar à morte de neurônios. No projeto de pesquisa que submeteu ao Prêmio Para Mulheres na Ciência, ela propôs estudar por que a neuroplasticidade é alterada e testar outras formas de neuroproteção, além do exercício físico.
Com o dinheiro do prêmio, a cientista vai verificar se uma suplementação com chá verde, que assim como o exercício físico tem propriedades antioxidantes, é capaz de realizar tal tarefa. Também pretende avaliar em que medida mudar as condições ambientais – oferecendo mais estímulos cognitivos aos animais – gera um efeito positivo.
Enquanto estudava a privação materna dos ratinhos, Pâmela viu-se diante de uma situação que é corriqueira para as mulheres cientistas: sentia-se culpada por privar o próprio filho da sua presença, por causa das longas horas no laboratório. Ela engravidou no último ano da graduação, quando já planejava fazer o mestrado e o doutorado. Resolveu seguir adiante.
– Veio aquela questão: e agora? Vou abrir mão de tudo que planejei ou vou tentar conciliar as coisas? Principalmente no primeiro ano, por mais que tivesse a ideia de que era possível fazer, eu me sentia um pouco culpada de não estar com ele. São coisas que a sociedade cobra de nós, o cuidado do filho é responsabilidade da mãe. É mais complicado para a mulher do que para o homem – afirma.
O ESTUDO
O efeito da privação materna
– Pâmela Mello-Carpes submeteu um grupo de ratos recém-nascidos à privação parental. Durante os 10 primeiros dias de vida, a rata mãe era retirada do convívio por um período de três horas diárias.
– Depois de dois meses, quando esses ratos atingiram a idade adulta, a cientista submeteu-os a testes de memória. Verificou que eles tinham uma perda cognitiva importante, na comparação com ratos que não haviam sofrido privação da mãe nos dias iniciais.
– Pâmela repetiu o experimento várias vezes, demonstrando que a ausência parental no início da vida, quando o cérebro está em desenvolvimento, limita a neuroplasticidade e provoca um desequilíbrio oxidativo, dando origem a prejuízo permanente.
O exercício físico como antídoto
– Em um experimento posterior, parte dos ratos que tiveram privação da mãe nos primeiros 10 dias de vida foi submetida a um regime de exercícios físicos, que começava após o desmame, por volta dos 45 dias de vida.
– Testados na idade adulta, esses ratos não apresentavam qualquer déficit cognitivo.
– Pâmela demonstrou que o exercício, que tem efeito antioxidante, conseguiu reverter o dano que seria causado pela privação parental.
Os próximos passos
– A pesquisadora quer testar agora outras estratégias de neuroproteção além do exercício físico. Uma das frentes diz respeito ao chá verde, que tem propriedades antioxidantes.
– Pâmela também quer verificar se mudanças ambientais – a presença na caixa de brinquedos, túneis, escadas – podem representar um estímulo cognitivo que compense a privação parental.
AS OUTRAS PREMIADAS
– Marilia Danyelle Nunes Rodrigues, também gaúcha, mas atuante da Universidade Federal Rural da Amazônia, é uma bióloga que pretende criar uma cartilha para promover a conservação do pirarucu, espécie ameaçada de extinção
– Jenaina Ribeiro Soares, da Universidade Federal de Lavras (MG), estuda a estrutura de novos nanomateriais com perspectiva de aplicação em diferentes indústrias
– Diana Sasaki Nobrega, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, investiga uma classe de problemas matemáticos relacionados com a resolução de problemas reais de conflito
– Rafaela Salgado Ferreira, da Universidade Federal de Minas Gerais, desenha moléculas capazes de ajudar no tratamento do zika e da doença de Chagas
– Gabriela Nestal de Moraes, do Instituto Nacional do Câncer, investiga uma nova terapia para o câncer de mama a partir de informações de pacientes que não respondem a quimioterapia
– Fernanda Maria Policarpo Tonelli, da Universidade Federal de Minas Gerais, estuda o uso de tilápias-do-Nilo como biofábricas de substâncias como o hormônio do crescimento humano