Alardeada como uma das grandes metas do programa Mais Médicos, a criação de 2.290 vagas em novos cursos de Medicina corria, até semana passada, o risco de não sair do papel. Sob suspeita de irregularidades e forte contestação das universidades e das cidades que não foram contempladas pelo edital,a medida estava desde agosto de 2015 passando por análise do Tribunal de Contas da União (TCU). Somente na sessão da última quarta-feira, os ministros decidiram que sua manutenção é de interesse público.
Ainda não há garantias, porém, de quando – e se – o edital aberto em 2014 será, enfim, homologado. A indefinição, ao mesmo tempo em que traz preocupações às universidades da rede privada que tiveram suas propostas aprovadas, também renova a esperança daquelas que ficaram de fora. Isso porque o edital 6/2014 da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) ainda precisa ter seu resultado confirmado pelo próprio Ministério da Educação (MEC), que terá outros recursos para avaliar.
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O edital foi suspenso há nove meses, quando o TCU acolheu representação de uma instituição baiana de Ensino Superior que apontava discrepâncias na avaliação das propostas. Nesse meio tempo, o ministério já trocou de gestão cinco vezes. A iniciativa foi lançada por José Henrique Paim no governo Dilma Rousseff. Na época, 39 municípios considerados prioritários pelo governo em 10 Estados foram selecionados – quatro deles no Rio Grande do Sul.
Meses depois, o então ministro Renato Janine Ribeiro anunciou que as propostas de três cidades brasileiras foram vetadas. Entre elas, a de São Leopoldo, feita pela Unisinos. Confiando na qualidade de seu projeto, a universidade acredita que sua exclusão será reconsiderada. Também a Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) estuda se conseguirá reverter a escolha pela Faculdade Estácio, que ainda não tem unidade em Ijuí.
Nesses quase dois anos, a não ser pela grande pressão e por articulações entre instituições privadas, prefeituras e políticos com o ministério e o TCU, pouco mudou. No Estado, os planos de dar início em 2015 às obras e começar a oferecer o curso já neste ano foram enterrados, dando lugar à hesitação. Ninguém quer mover uma pedra sem ter a certeza de que o MEC deu por encerrado o caso.
A iniciativa faz parte de um plano que o governo federal vê cada vez mais distante: o de oferecer 11.447 novas vagas em cursos de Medicina até 2018. No ano passado, outros 22 municípios – concentrados nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste – foram pré-selecionados em um segundo edital para receber a graduação. Com a indefinição da primeira etapa, porém, a previsão de oferecer essas vagas até o final de 2016 não deve se concretizar.
Cautela e esperança entre as universidades
Tantas dúvidas relativas ao processo fazem com que as universidades contempladas tratem o tema com cautela – e dão novo ânimo às instituições que tentam reverter os resultados iniciais do edital. Todas, após a decisão do tribunal, aguardam um posicionamento favorável do MEC.
Ele pode vir de duas formas: ou o ministério publica, sem revisões, o edital, ou acolhe os recursos de universidades não contempladas e revê as autorizações antes definidas. Há ainda um terceiro caminho: algumas instituições planejam ingressar na Justiça, somando-se às outras sete ações que já contestam a seleção e pedem a revisão ou o cancelamento do processo.
Para a Unisinos, que viu sua proposta em parceria com a prefeitura de São Leopoldo ser considerada inadequada pelo MEC, a expectativa é de uma reavaliação. Ao vetar também Limeira (SP) e Tucuruí (PA), o ministério havia garantido que nenhuma delas foi excluída e que as 170 vagas disponíveis para esses municípios seriam ofertadas novamente.
"A Unisinos tem convicção de que o MEC acolherá o seu recurso, considerando os sólidos argumentos apresentados e que sustentam o mérito e a qualidade do seu projeto político-pedagógico do curso de Medicina", explicou a universidade, em nota. "O projeto de curso de Medicina da Unisinos insere-se num conjunto de entregas na área da saúde que são importantes para São Leopoldo e região. E, nesse contexto, a universidade não medirá esforços para sua aprovação pelo ministério", completou.
Entre as instituições que tiveram as propostas aprovadas, por outro lado, a esperança dá lugar ao cuidado. Aparceria entre Feevale e prefeitura de Novo Hamburgo, que poderia ter levado ao início das aulas de Medicina no Vale do Sinos ainda no primeiro semestre, aguarda o aval final do MEC.
– Temos tudo o que é necessário nos dois primeiros anos de curso prontos, mas não podemos contratar professores ou construir novas instalações sem essa confirmação. A frustração é bastante grande por termos nos classificado e não sabermos com certeza quando poderemos oferecer o curso – diz a reitora Inajara Vargas Ramos.
Também pronta para abrir as vagas assim que receber a autorização, a Universidade Regional Integrada (URI) de Erechim considera que a demora no processo foi uma injustiça com cidades e universidades contempladas.
– Agora nos cabe pressionar o Ministério da Educação para publicar o edital o mais breve possível, antes que entre outra medida na esfera judicial trancando todo o processo novamente – garante o reitor Luiz Mario Spinelli.
Já a Faculdade Estácio aguarda confirmação oficial para dar início às suas instalações em Ijuí. "Medidas operacionais como estas só serão tomadas após a conclusão do processo, ou seja, a escolha da instituição que poderá ofertar os cursos de Medicina em Ijuí", afirmou a Estácio, por meio de nota.
Ministra do TCU julga lei inconstitucional
Questionamentos quanto à seleção das propostas, os métodos de escolha e a imparcialidade da avaliação estão entre os principais motivos apontados nas representações encaminhadas ao TCU. Conforme as instituições que contestaram o processo, as regras foram modificadas no meio do jogo: somente quando o edital havia sido aberto é que foi apresentada a metodologia elaborada pela Fundação Getulio Vargas (FGV) para atestar a saúde financeira das concorrentes, uma das etapas que acabaram sendo fundamentais para a classificação.
Mencionando "uma série de critérios inadequados", a ministra Ana Arraes, relatora do processo, defendeu até o fim que havia diversas irregularidades e vícios na aprovação dos novos cursos de Medicina pelo Mais Médicos. Segundo ela, a própria lei que instituiu o programa seria inconstitucional, ferindo o direito à iniciativa privada frente aos interesses públicos.
"Verificou-se [...] a inconstitucionalidade (do edital) ao regulamentar por atos infralegais matéria reservada à lei em sentido estrito, bem como ao trazer inovação no ordenamento jurídico na relação público-privado na prestação de serviços públicos", afirmou a ministra, em seu posicionamento no tribunal.
Incluído por sete vezes na pauta da sessão do TCU, o processo passou por três pedidos de vista ao longo de quase um ano até ser votado. Na última quarta-feira, 20 de julho, o ministro Vital do Rêgo, revisor do processo, reconheceu alguns dos vícios apontados pela relatora, mas não os considerou suficientes para a anulação do edital. Todos os ministros, à exceção de Ana, o acompanharam.