Zero Hora passou 24 horas na Escola Agrônomo Pedro Pereira, no bairro Agronomia, em Porto Alegre, entre a quinta e a sexta-feira da semana passada, para acompanhar a rotina dos alunos que ocupam o colégio. Com a ajuda de pais e estudantes universitários, eles se dividem entre atividades que vão de discussões sobre política a oficinas de estêncil e horta urbana. Segunda instituição da Capital a ser ocupada, a Pedro Pereira tem cerca de 1,2 mil alunos dos ensinos Fundamental e Médio. O local apresenta problemas estruturais como quadras e salas de aula sucateadas, bebedouros que não funcionam e defeitos elétricos e hidráulicos. O movimento é apoiado pela direção, por professores e por alguns pais de alunos. Leia o relato abaixo e assista o vídeo sobre as 24 horas em uma escola ocupada.
Atividades em três os turnos
A proximidade da escola com dois campi da UFRGS trouxe um dos principais apoios à ocupação. Além de ajudar com doações e em atividades cotidianas, como a preparação das refeições, estudantes de diferentes cursos – a maioria da área de humanas – são os principais realizadores das aulas, oficinas e bate-papos no local.
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Às 10h de quinta-feira, parte dos adolescentes se preparava para assistir à segunda "aula" do dia: depois de uma palestra sobre ditadura argentina, aprenderiam a fazer uma horta com alguns estudantes do curso de Biologia. Um grupo de cerca de 20 animou-se a participar da oficina – o envolvimento é voluntário. Já os oficineiros não se animaram nem um pouco com a presença da reportagem e pediram para que a atividade não fosse registrada. Ao fim da manhã, uma horta vertical e caixotes de frutas com mudas de plantas circundavam a sala do Grêmio Estudantil, com placas de madeira lembrando, em tom bem-humorado: "Reggae as Plantas".
À tarde estava prevista uma conversa com alunos de História sobre o projeto de lei Escola sem Partido, do deputado Marcel Van Hatten (PP) – o PL é um dos alvos de críticas dos organizadores da ocupação. O bate-papo percorreu temas que iam desde a greve dos professores até as necessidades e anseios dos alunos, mas o projeto acabou não sendo discutido.
Em vídeo, as reivindicações e a rotina dos alunos que ocupam a Pedro Pereira
À noite, com quórum reduzido, mais duas atividades: a exibição de um documentário e uma aula de matemática básica. Meia dúzia de alunos acompanhou o início do filme, de cerca de 30 minutos, sobre a mobilização dos estudantes chilenos em 2006. Enquanto analisava o documentário, o estudante responsável pela exibição falou sobre os riscos do vínculo com partidos e sindicatos, e também sobre a "grande mídia corporativista golpista", que, segundo ele, poderiam se aproveitar do movimento e desvirtuá-lo. Os adolescentes pouco falaram e a atividade foi encerrada com a proposta de exibição de outro documentário, sobre as ocupações em São Paulo.
A última aula ficou a cargo de Guillermo, um artista de rua que tem visitado as ocupações da Capital para apoiar os alunos e ministrar oficinas – de malabares à matemática. Quase todos os 15 estudantes que passariam a noite na escola acompanharam atentos – e por vezes confusos – as lições de multiplicação e divisão nem tão simples do voluntário, que jantou na escola e passou a noite na sala dos professores. Ele deixou a escola na sexta-feira de manhã, rumo a outras ocupações.
Rotina de tarefas
Cerca de duas horas de vassouradas fizeram com que a poeira acomodada em mais de 10 montes generosos deixasse à mostra as linhas pintadas na castigada cancha da escola. Com a quadra redescoberta, um grupo de alunos passou parte da tarde jogando vôlei no local.
Diariamente, são discutidas as atividades de manutenção a serem executadas no dia seguinte. As missões incluem a limpeza do pátio, das salas de aulas transformadas em quartos, da cozinha e dos banheiros femininos, os únicos não interditados – que estão danificados por vazamentos, mas são mantidos em boas condições pelos alunos.
Outra atividade comum é a arrecadação de fundos. Quase todos os dias, um grupo para no sinal em frente à escola para pedir dinheiro aos motoristas, que têm colaborado: em dias considerados bons, o dinheiro arrecadado passa dos R$ 100. Os alunos dizem que a verba é toda usada na ocupação, para complementar as refeições ou comprar produtos de limpeza. O que sobra se transforma em agrado para os mais persistentes.
Refeições vêm de doações
De um armário farto em alimentos ao lado de uma das mesas do refeitório sai a matéria-prima da diretora de evento do Grêmio Estudantil, Yasmin Menegassi, 16 anos, responsável por coordenar a cozinha da ocupação. Arroz, feijão, massa, milho enlatado e molho de tomate são alguns dos itens que recheiam o móvel. Eles chegam, diariamente, pelas mãos de membros da comunidade ou de pais de alunos, como doações.
– Disseram que minha comida é melhor que a da tia da merenda, porque tem sal, tem gosto. Eu já fiz fricassê, massa, arroz... Hoje quero fazer escondidinho – disse Yasmin.
Os integrantes da ocupação fazem quatro refeições diárias: café da manhã, servido às 8h30min, almoço, ao meio-dia, um lanche às 17h e jantar, às 22h. As principais são preparadas por Yasmin.
Na quinta-feira à noite, porém, a chef da ocupação preferiu assistir à aula de matemática em vez de ir para a cozinha. Preocupada com o avançado da hora – e da fome de alguns –, a presidente do Grêmio Estudantil, Gabriela Cardoso, resolveu arregaçar as mangas. O menu foi o único possível: pizza de pão, prato que costuma fazer em casa quando a comida do pai não agrada. A comida convenceu, mas, como a quantidade parecia insuficiente para os 15 remanescentes que passariam a noite na escola, Yasmin foi convocada para complementar a janta, preparando arroz. Ninguém dormiu com fome.
Banho frio obriga saídas
Tomar banho é coisa para os fortes na ocupação do Pedro Pereira. Isso porque o único chuveiro da escola, comprado e instalado pelos alunos com o dinheiro de uma vaquinha, não esquenta. Desde então, para a maioria dos que acampam no local, o jeito é fazer um bate-e-volta em casa ou recorrer a colegas para garantir o banho quente.
Mãe de Yasmin, Luciana de Abreu conta que sua casa, em Viamão, virou praticamente o chuveiro extraoficial de algumas das meninas.
– Sempre acabo trazendo mais alguém para tomar banho aqui – disse Luciana, por telefone.
Pais presentes, professores nem tanto
No começo da tarde de quinta-feira, Márcia Borges chegou de surpresa para ver como passava o filho Natan, 14 anos. Encontrou o estudante do 1º ano do Ensino Médio deitado embaixo das cobertas da sala-quarto depois do almoço, e o encheu de perguntas. Diante dos olhares curiosos dos colegas, quis saber até quando ele ficaria na escola, se estava se comportando, se o pai sabia que estava ali. Despediu-se com um beijo e um recado tão antigo quanto a maternidade:
– E olha os modos!
Pelo menos mais um casal de pais esteve na escola na tarde de quinta-feira. Dos cinco responsáveis ouvidos pela reportagem, todos apoiavam a atitude dos filhos, e alguns disseram contribuir com a ocupação. Segundo os alunos, é comum familiares irem ao colégio levar doações, cozinhar ou passar a noite com os estudantes. Apesar disso, na quinta-feira, nenhum responsável dormiu – no local havia, no entanto, pelo menos dois alunos maiores de idade, do Ensino de Jovens Adultos (EJA). O Ministério Público não quis comentar a situação.
Os professores são presença rara. Conforme os organizadores da ocupação, três ou quatro aparecem de vez em quando para visitas rápidas. Durante o período em que a reportagem esteve na escola, apenas um dos vice-diretores e o diretor foram vistos por lá. Na quinta-feira, Wagner Machado, vice-diretor do turno da tarde, ficou na escola por cerca de uma hora.
– Em alguns aspectos, a escola está funcionando melhor com eles no comando. A gente vê alunos que antes depredavam cuidando das coisas agora – comentou.
Partidos de fora
O principal alvo dos organizadores é o PL 44/16, que permite que entidades do Estado sejam transformadas em fundações – o que, no entendimento dos alunos, configura uma ameaça ao ensino público. Os estudantes também são contra o projeto Escola sem Partido, apoiam a greve do professores e são contra o parcelamento de salários dos docentes. Ao contrário de outras ocupações, no entanto, dizem querer sindicatos e partidos políticos da porta para fora. Eles se orgulham da organização do movimento em sua escola, que contou com o apoio a União Brasileira do Estudantes Secundaristas (Ubes) – cuja bandeira, que estava anexada junto a cartazes, foi retirada do prédio na sexta-feira.
Carteado e filme: a noite na ocupação
Os organizadores não recomendam que os alunos durmam todas as noites na escola. A semana é dividida em dia sim, dia não: sim, quando todos são bem-vindos, e não quando deve pernoitar apenas um grupo menor, entre 10 e 20 estudantes.
Na noite anterior à visita da reportagem, cerca de 70 alunos haviam acampado nas salas de aula da Pedro Pereira. Nesses dias, são utilizadas duas ou três salas, e, segundo os organizadores, há quartos separados para meninos e meninas. Quinta-feira eram pouco mais de 10 os que pernoitaram no local.
Quando fica apenas o pequeno grupo, todos passam a noite no mesmo "quarto": uma sala nos fundos do segundo pavimento, onde colchões infláveis doados e colchonetes são distribuídos. Não há horário fixo para ir para a cama. Na quinta-feira, todos subiram para o dormitório improvisado por volta das 23h.
Enquanto um grupo assitia ao filme Interestelar colocado no DVD (a televisão do Grêmio Estudantil foi deslocada para o quarto provisório), metade dos alunos iniciou um carteado. Diante do barulho, foram estimulados a continuar o jogo na biblioteca. Sono e silêncio gerais só foram realidade perto das 2h.
Se a hora do repouso é flexível, no entanto, o contrário ocorre quando o assunto é despertar. Antes do café, servido às 8h30min, todo mundo tem de estar de pé. Cada dia, um estudante ou dupla fica responsável por madrugar para abrir os portões da escola, às 6h30min (os alunos e professores têm entrada liberada no horário escolar), e preparar o café da manhã.
Os líderes
Principal porta-voz da Pedro Pereira desde que os alunos ocuparam o local, em 12 de maio, Antônio Henrique Fonseca Porto, 16 anos, comemora o resultado do que considera o maior mérito da ocupação da escola onde estuda desde o 7º ano do Ensino Fundamental: a organização que fez com que o movimento servisse de referência para alunos insatisfeitos de outros colégios da Capital.
Antônio é vice-presidente do Grêmio Estudantil. O estudante do 3º ano do Ensino Médio visitou ocupações em São Paulo e é líder da "comissão estadual das escolas ocupadas". Extrovertido, carismático e vaidoso, comunica-se sem dificuldades com quem quer que seja.
– O Antônio gosta dos holofotes – comentou a presidente do Grêmio Estudantil, Gabriela Cardoso.
A simpática estudante do 2° ano do Ensino Médio só se apresentou à reportagem no meio da tarde de quinta-feira. Ela assumiu o Grêmio Estudantil dias antes da ocupação. Aluno do último ano, Antônio não podia mais concorrer à presidência. Antes da ocupação, no entanto, a escola já era o lar de Gabriela, que percorria as dependências da Pedro Pereira de pantufas na manhã de sexta-feira. Envolvida com as atividades do grêmio, ela costumava passar os três turnos no local.
Desde que os alunos estão acampados por lá, é a única que ainda não voltou para casa. O pai apoia na mesma medida em que se preocupa com a filha.
– Acho importante a luta deles. Estamos sempre em contato, mas já estou ficando preocupado, porque ela não veio em casa ainda – diz o vidreiro Alexandre Cardoso, que integra o Conselho Escolar.
Já Antônio, nos últimos dias, é um dos que mais passa tempo fora da escola. Além de ir em casa diariamente para tomar banho, tem percorrido outros colégios e participado de reuniões com integrantes de outras ocupações. Ele ainda não sabe exatamente o que quer fazer quando deixar a escola, no fim do ano. Para começar, pretende se candidatar a uma vaga no curso de Direito.
– Quero fazer isso, mas ainda não sei o que vou fazer depois que me formar – conta.