Como autor do Dicionário de Porto-Alegrês, como tu vê(s) o dilema de pais e educadores: usar o "tu" conjugando o verbo na segunda pessoa do singular, mesmo correndo o risco de soar pernóstico, ou usar o "tu" conjugando o verbo como se tivesse usado "você", mesmo estando "errado"?
O nosso tu cotidiano, usado com o verbo flexionado na terceira do singular, é amplamente vencedor. Apenas pessoas com grande autocontrole, e em situações em que o falante se vigia muito, é que fazem a flexão canônica. Eu sou 100% a favor de usar misturado, tu vai, tu foi etc. Isso não tem nada de ruim, de feio, de rebaixado. Bastaria olhar para outras línguas, outras situações, em que línguas como a nossa, neolatinas e/ou ocidentais, igualmente fazem essas combinações heterodoxas. Em Buenos Aires, a mistura ocorre entre a segunda do plural e a segundo do singular - "Si vos ahora no te dormis
", coisa comum, familiar, sem estresse. Até no jornalismo mais leve isso ocorre, e autoridades e intelectuais não pernósticos falam assim o tempo todo, fazendo conferência e tal. Em francês, não ocorre a mesma coisa, mas algo parecido: eles cortam os "s" de plural sem nenhum constrangimento. O que ocorre é que nós, cá no Sul, não temos uma condição central, hegemônica. Se Porto Alegre fosse Capital Federal, cultural, política, econômica do país, falaria como bem quisesse e seria imitada
Daí que a nossa maneira de falar nos parece meio vergonhosa, meio caipira, e não faltam caga-regras (perdão pela má palavra) de temperamento parnasiano para nos jogar em rosto a gramática (velha). Sou a favor de, nas escolas, mostrar aos alunos as formas canônicas, explicar o funcionamento e tudo o mais, mas, ao mesmo tempo, sou a favor de viver harmoniosamente com o nosso dialeto, que é um jeito de falar, que tem vocabulário particular e algumas marcas gramaticais, como esta do tu com verbo na terceira. (Aproveito para te dizer que tinha já observado que entre pessoas cultas não caretas - jornalistas, escritores, artistas etc. - ocorre o fenômeno de certa forma oposto: em e-mails dessa gente, passou a ser comum escrever tu vai, tu foi etc., coisa que antes não ocorria, porque se marcava a distância entre a língua falada, essa aí, e a língua escrita, tu vais, tu foste etc. Quer dizer: neste segundo universo, pelo contrário até, o que está acontecendo é uma aproximação da escrita à fala corriqueira!).
O "tu" está saindo do vocabulário dos gaúchos?
O que uma suposta predominância do "você" sobre o "tu" nas escolinhas infantis diz sobre nós e sobre o tempo que vivemos? É uma pasteurização do mundo?
Não sei se trata de predominância, mas reconheço a presença do você. Tenho mesmo exemplos próximos, familiares até, de pais que usam o você com os filhos, sendo que todos vivem em Porto Alegre e nunca antes tinham feito essa opção, que agora parece ter certo prestígio social. Aqui talvez haja uma chave: entre as classes confortáveis - não imagino que esse fenômeno ocorra nas escolas de classes baixas -, há mesmo uma perspectiva de vida mais, como dizer?, cosmopolita, ou talvez seja melhor dizer antilocalista, nem que seja na marra. Nunca foi tão comum como hoje essas classes confortáveis facilitarem viagens aos filhos, para vivência no Exterior (muitas vezes aproveitando as bolsas federais, Ciência Sem Fronteiras, por exemplo); e nunca como agora, acrescento, essas classes estiveram mais afastadas da vida cotidiana do mundo local - o apartheid social, que é também geográfico, se estabeleceu de modo impressionante, e agora está totalmente naturalizado o fenômeno. Quem não se sente integrado ao mundo cultural local também se descola dele, talvez, pela linguagem, e começa renegando esse "tu", que soa meio agressivo, talvez meio regressivo. Por outro lado, me parece que esse fenômeno terá a ver com a agora total dominação de São Paulo sobre a vida mental brasileira. Faz uns meses, escrevi sobre isso em um texto para o jornal: as meninas e adolescentes do Estado, quando querem ser "modernas"- sei bem que a palavra não se usa mais
-, agora imitam o sotaque paulistano, e não mais o carioca: em vez de chiarem nos "s", elas fazem aquele ditongo nos gerúndios, "fazeindo" etc. Quer dizer, há todo um clima, nesse mundo das classes confortáveis (pretensamente) cosmopolitas, favorável a abandonar marcas locais.
Se vier a acontecer, de fato, o fim do "tu", significará o que para a identidade do gaúcho?
Isso de identidade geral já é outra coisa, creio, porque terá de levar em conta outras classes, outros ambientes sociais. Qual o peso do mundo gauchesco tradicionalista (ou próximo a ele) nisso tudo? Por outro lado, é de ver que agora estamos vivendo o auge da internet como meio de comunicação (agora de muitas mãos simultaneamente), o que implica termos agora, pela primeira vez na história da humanidade (sim, sem exagero!), um novo patamar de uso da língua escrita: nunca se escreveu tanto, nunca tanta gente tomou a palavra etc. Isso tem um efeito, que não sei medir, de grande homogeneização, ou de abrandamento das singularidades, de qualquer língua escrita! Isso, sim, tem força para relativizar identidades, penso eu.