Jan Vilcek escapou da Tchecoslováquia comunista no auge da Guerra Fria e se asilou em Nova York para descobrir a base biológica do famoso medicamento anti-inflamatório Remicade. A saga do médico brilhante, hoje com 80 anos, lhe rendeu a Medalha Nacional de Tecnologia e Inovação de 2013, entregue pelo presidente dos Estados Unidos, Barack Obama.
A maior parte da fortuna de Vilcek tem sido empregada em uma fundação orientada para o reconhecimento das contribuições dos imigrantes para seu país de adoção. Em entrevista ao jornal New York Times, Vilcek revela que queria ser jornalista, narra a fuga da Tchecoslováquia e descreve a descoberta do Remicade, que hoje trata problemas inflamatórios como artrite reumatoide, colite ulcerativa, espondilite anquilosante e psoríase.
P.: Você sempre quis trabalhar com pesquisa na área médica?
Na escola, eu pensei em seguir carreira no jornalismo. Mas isso não era uma opção para quem não era um comunista de carteirinha. As outras coisas que eu poderia ter considerado - Direito ou Administração - não existiam sob o regime comunista. Então, mais ou menos por exclusão, fiz o que meus pais queriam - me tornei médico. Minha mãe era médica.
Já durante a faculdade de medicina, eu me ofereci para participar de um pequeno projeto de pesquisa em microbiologia. À medida que fui trabalhando nele, fui ficando fascinado pela atividade da pesquisa. Dentro de algumas semanas, soube que era isso que eu queria fazer pelo resto da minha vida.
P.: O que fez você desertar do regime?
Não era incomum, especialmente entre profissionais, considerar desertar. Na verdade, no meu instituto [Instituto de Virologia de Bratislava], não fui o primeiro. Talvez porque eu já tivesse publicado trabalhos no Ocidente, e talvez graças a alguma ousadia pessoal, eu estava confiante de que iria encontrar emprego depois de sair de lá.
O problema era chegar até um local onde se pudesse desertar. Era necessário ter permissão oficial para realizar viagens para fora do país. Geralmente, eles não permitiam que membros de uma mesma família viajassem juntos. Era assim que eles garantiam o retorno da pessoa. Minha esposa, Marica, estava convicta de que devíamos tentar sair de lá. O irmão dela havia desertado do regime alguns anos antes, durante uma viagem ao Egito. Sempre que falávamos no assunto, parecia improvável que as autoridades iriam nos permitir ir ao exterior juntos.
Então, em outubro de 1964, chegou um convite inesperado de um cientista de Viena para que lhe fizéssemos uma visita de fim de semana. Para nossa surpresa, nós dois recebemos autorizações de viagem. Assim que recebemos essa notícia, tivemos certeza de que não iríamos voltar. Nossas duas malas eram suficientes para passar um fim de semana fora. Morávamos com o pai da Marica, e para protegê-lo, não lhe contamos nada. Falei apenas com meus pais. Foi difícil - eu era filho único. Eles disseram imediatamente: "Vá! Você vai ter um futuro melhor do que teria aqui".
Pouco antes de nossa partida, eu estava no trabalho e alguém disse: "Tem um telefonema de Viena para você". Era muito incomum receber um telefonema de um país ocidental, especialmente no local de trabalho. Eu pensei, "Ah, meu Deus, ele vai cancelar o convite!". Em vez disso, nosso anfitrião apenas nos comunicou: "Tenho ingressos para uma ópera - não se esqueça de trazer o seu smoking!".
P.: Isso era uma espécie de código?
Não. Ele não fazia ideia dos nossos planos. Nosso anfitrião tinha ingressos para "A Flauta Mágica".
Ficamos duas semanas no país e acabamos viajando para a Alemanha, onde solicitamos o reconhecimento do estatuto de refugiados. Em 5 de fevereiro do ano seguinte, desembarcamos em Nova York. Eu tinha aceitado uma oferta de trabalho da Universidade de Nova York (NYU).
Encontrei o diretor do Departamento de Microbiologia e pedi para ver o laboratório onde iria trabalhar. Ele me mostrou um lugar com paredes vazias.
"Como é que eu vou fazer ciência aqui?", perguntei.
"Estamos nos Estados Unidos", disse ele. "Você se senta e redige essa coisa chamada 'pedido de subvenção'".
Demoramos anos para nos adaptar. Mesmo que ambos falassem inglês, compreender os sotaques era difícil. Conseguíamos nos comunicar, mas, muitas vezes, não sabíamos o que as pessoas estavam falando. E havia situações de interação social bastante intrigantes - os coquetéis, por exemplo. Nunca tínhamos ido a um coquetel. Eu gostava da informalidade da vida norte-americana, no entanto. Foi algo revigorante.
P.: Como foi que o Remicade aconteceu?
Consegui as subvenções na NYU e fiz uma pesquisa sobre a interferona. Nós contribuímos para a elaboração da primeira interferona comercializada para uso humano.
Graças à interferona, conheci Michael Wall, que no início de 1980 fundou a empresa de biotecnologia Centocor. Ele estava interessado em algumas das pesquisas imunológicas básicas que estávamos realizando, especialmente sobre as citocinas, que são proteínas semelhantes a hormônios que têm um papel na regulação da resposta imune. Então, em 1984, a NYU assinou um amplo acordo com a Centocor para licenciar os direitos sobre anticorpos monoclonais para as citocinas que pudessem ser descobertas em nosso laboratório.
Nós trabalhamos em muitas coisas no meu laboratório. Cerca de quatro anos após aquele contrato, desenvolvi com o meu colega Junming Le um anticorpo para a citocina TNF, que suspeitávamos ter um papel na sepse e em algumas doenças autoimunes.
Juntamente com a Centocor, fizemos todos os tipos de testes desse anticorpo em pessoas e animais, nem todos bem sucedidos. O grande avanço veio por volta de 1991, quando dois reumatologistas ingleses o utilizaram em um grupo de pacientes com artrite reumatoide. Esses pacientes tinham sido submetidos a todo tipo imaginável de tratamento e estavam muito mal. E eles melhoraram imediatamente!
Em seguida, na Holanda, um médico experimentou o anticorpo em um paciente com doença de Crohn. Mais uma vez, os resultados foram impressionantes. Em 1998, o Remicade foi aprovado para o tratamento da doença de Crohn.
Depois disso, o medicamento recebeu a aprovação da Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA) para tratar cerca de meia dúzia de problemas inflamatórios - artrite reumatoide, colite ulcerativa, espondilite anquilosante e psoríase.
P.: E a Fundação Vilcek, como começou?
Bem, de repente, de modo bem inesperado, nos vimos em uma situação em que dispúnhamos, digamos assim, de mais meios do que precisávamos para ter uma vida confortável. Então, minha esposa e eu começamos a pensar: "Talvez devêssemos criar uma fundação?". A princípio, pensei que colocaríamos pequenas quantias de dinheiro na pesquisa médica. Mas depois percebemos que nunca conseguiríamos competir com Howard Hughes ou com a Fundação Gates.
Precisávamos atender um nicho que fosse um pouco mais específico, então. Foi quando decidimos: "Por que não combinamos nossas origens na pesquisa biomédica e nas artes? Somos imigrantes. Vamos sensibilizar a opinião pública a respeito da contribuição dos imigrantes para a ciência biomédica e as artes".
P.: Você quis combater algum sentimento negativo em relação aos imigrantes?
Não quando tivemos essa ideia em 2000. Mas no ano seguinte houve o ataque ao World Trade Center, e em seguida, esses sentimentos ruins foram crescendo e passaram a nos incomodar. Queríamos enfatizar as contribuições dos imigrantes para os Estados Unidos. Tínhamos a expectativa de ir contra alguns dos sentimentos negativos.
Pude destinar uma porcentagem de royalties futuros que me foram designados pela invenção do Remicade para a fundação. Não fazíamos ideia de que ele - e os dois outros medicamentos similares - se tornariam as drogas que mais gerariam receita em todo o mundo. Cada uma delas é responsável por arrecadar cerca de 8 bilhões de dólares por ano.
P.: Se você soubesse, teria destinado uma porcentagem menor para a fundação?
(Risos.) Não, eu teria destinado uma porcentagem maior.