Depois de quase um ano de polêmicas, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, na terça-feira (5), uma nova versão do "parecer 50", sobre educação de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O texto antigo, que tinha sido aprovado no fim de 2023, não foi homologado pelo ministro Camilo Santana e levou a movimentos – contrários e a favor – de famílias e especialistas no tema.
Em acordo costurado com o Ministério da Educação (MEC), o texto foi reduzido de 69 para 22 páginas e redigido novamente para retirada de trechos que "criavam tensão", como disse o conselheiro Paulo Fossatti, presidente da comissão que elaborou o novo parecer, durante a sessão no CNE.
Uma dessas questões era a recomendação de um acompanhante especializado para alunos autistas, que os ajudaria inclusive em atividades pedagógicas. O texto aprovado cita apenas os chamados profissionais de apoio, já previstos em lei e que devem ser contratados pelas escolas, com funções de auxílio a locomoção, higiene, comunicação, interação social, mas sem "desenvolver atividades educacionais diferenciadas".
Por outro lado, permaneceu no texto outra questão que causava divergência: a exigência dos alunos com TEA terem um Plano de Educação Individualizado (PEI). O parecer sugere uma lista de perguntas que as escolas devem fazer em um "estudo de caso" analisando, por exemplo, se o aluno gosta de estudar, sua interação na escola, desenvolvimento afetivo e a opinião da família. E fala da criação de plano com "medidas individualizadas de acesso ao currículo para estudantes autistas".
O parecer deixa claro que o estudo de caso ou o auxílio do profissional de apoio não deve estar condicionado à existência de laudo médico do aluno. E ainda ressalta que é crime não apenas a negativa de matrícula de estudantes com TEA, mas também a cobrança de valores adicionais e "a procrastinação no processo, manifestada muitas vezes por meio de exigências como entrevistas, testes, avaliações e documentos extras". O parecer ainda precisa ser homologado pelo ministro.
Há 634.875 alunos diagnosticados com TEA nas escolas públicas e particulares brasileiras, alta de 1,4 mil% nos últimos 10 anos, segundo o MEC. Crianças no espectro autista têm alterações de neurodesenvolvimento que afetam, em geral, a comunicação, linguagem, interação social, comportamentos e aprendizagem.
Hoje usa-se o termo espectro porque há diferentes graus de autismo, com características que podem estar presentes ou não em cada um, com maior ou menor necessidade de apoio.
Apesar dos alunos estarem matriculados em escolas regulares – e não em instituições especializadas em cada deficiência, como no passado – é consenso que essa educação inclusiva não se efetivou como deveria.
Quais eram as polêmicas em relação ao parecer 50?
O grande nó da discussão era que o Parecer 50/2023 previa diretrizes para inclusão de autistas com base em pesquisas ligadas à análise do comportamento, área da Psicologia menos difundida no Brasil, mas prevalente em países como os EUA.
Como o próprio nome indica, é uma ciência focada no desenvolvimento por meio de mudanças no comportamento. O texto listava, por exemplo, práticas que deveriam fazer parte do ambiente escolar, da formação de professores e de acompanhantes dos alunos com TEA. A lista foi retirada da nova versão.
Ela citava procedimentos usados por terapeutas como o "reforçamento", que é a "aplicação de uma consequência", como um comentário elogioso, "após uma resposta dada pelo aluno que aumenta a probabilidade de ele emitir a resposta no futuro em situações semelhantes". Críticos do texto viam tentativa de impor abordagem médica na educação, que vai contra a função e a autonomia da escola.
Quem defende as práticas comportamentais argumenta que são as únicas com evidências científicas para o TEA e que outras correntes da Psicologia sequer passaram por testes clínicos randomizados. Em abril, o movimento #homologacamilo cresceu nas redes sociais, pressionando o MEC a ratificar o documento anterior. O mesmo grupo entregou ao ministro documento com cerca de 2,6 mil assinaturas de apoio ao texto.
Por outro lado, Camilo sofreu pressões e cartas de repúdio de entidades e especialistas, pedindo que não homologasse o parecer. Muitos vieram de movimentos sociais. A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), do MEC, passou a debater o tema e fazer articulações com especialistas dos dois lados para se chegar a um texto comum que pudesse ser votado novamente no CNE.
Acompanhante especializado: o que muda?
O Brasil tem um arcabouço de leis e regulamentações sobre a inclusão, a mais relevante delas é a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, que prevê acesso em escolas regulares de crianças com deficiências, o que inclui o autismo. Mas as leis nem sempre são claras quanto às exigências e usam termos diferentes para atribuir funções e direitos.
O acompanhante especializado está previsto em lei de 2012, como direito da pessoa com TEA em "casos de comprovada necessidade". Já o profissional de apoio está na Lei Brasileira da Inclusão como alguém que "exerce atividades de alimentação, higiene e locomoção do estudante com deficiência e atua em todas as atividades escolares nas quais se fizer necessária".
No jargão de famílias e terapeutas da área, esses profissionais muitas vezes são chamados de acompanhantes terapêuticos ou ATs, nomenclatura que não aparece na legislação sobre inclusão, e têm a função de ajudar os alunos em qualquer atividade, desde a locomoção até as pedagógicas.
A versão anterior do parecer previa que alunos com TEA tivessem o acompanhante especializado que também auxiliasse em atividades pedagógicas, já que o profissional de apoio não teria essa função. Secretários de Educação discordavam da exigência porque poderia levar ao entendimento de a escola deveria contratar um acompanhante para cada aluno autista, o que seria inviável do ponto de vista orçamentário, segundo eles.
Mas o texto aprovado retirou esse item e manteve apenas o profissional de apoio. Segundo o MEC, no entanto, o escopo desse profissional ainda é discutido. O ministério pretende apoiar institutos federais e universidades para formar esses profissionais, além de regulamentar a função. O governo não tem dados sobre quantos são no Brasil e qual a formação dos profissionais de apoio.
Como ficou o PEI?
Um "plano de atendimento educacional especializado" também é previsto em lei, mas sem detalhes de como e por quem ele deveria ser elaborado. Muitas escolas têm o Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE), que costuma ficar mais restrito às atividades feitas em salas de apoio para estudantes com deficiência.
O texto antigo do parecer 50 previa que o chamado Plano de Educação Individualizado (PEI) fosse uma versão ampliada, implementado em "todo o espaço escolar, podendo auxiliar atividades em casa para responsáveis/ cuidadores". Dizia ainda que ele deve ser elaborado em, no máximo, 60 dias após o começo das aulas.
Outra parte polêmica afirmava que o PEI deveria ser elaborando conjuntamente por professores e outros profissionais que atendem o aluno, família e estudante com autismo. Essa possibilidade de participação da família era motivo de preocupação entre secretários, que viam risco de interferência de pais e mães em questões pedagógicas.
Outras correntes críticas à adoção do PEI entendem que ele individualiza muito o atendimento e que vai contra um modelo social de inclusão. O PEI foi mantido na nova versão do texto, mas com menos ênfase e menos detalhes. Há a descrição de como deve ser o "estudo de caso" do aluno autista e a menção tanto ao PAEE quanto ao PEI.
No estudo de caso, que descreve o contexto educacional do aluno, suas habilidades, preferências, desejos, o parecer diz que as escolas devem fazer "entrevistas, diálogos com a família" e também ouvir "profissionais de outros serviços setoriais, como assistência social e saúde, de forma complementar, quando considerado necessário pela equipe pedagógica".
— A vitória do parecer é a vitória da democracia, da busca do consenso, da ciência e do engajamento de toda uma sociedade que por mais de 330 dias se manteve mobilizada para que esse parecer fosse aprovado — disse a advogada Flavia Marçal, que fez parte do primeiro grupo de especialistas que escreveu a versão antiga do texto.