Assim como outras tecnologias surgidas antes dela, a inteligência artificial veio para ficar, e seu uso repercute em praticamente todas as instâncias da vida. Se parlamentos de todo o mundo debatem formas de regulamentar essa nova realidade, a fim de promover o emprego ético dessa ferramenta, escolas têm elaborado projeto com esse mesmo objetivo, para evitar casos como o registrado na semana passada em uma escola particular de Porto Alegre, onde alunos do 9º ano do Fundamental geraram imagens falsas de nudez de suas colegas.
O Colégio Monteiro Lobato, em Porto Alegre, trabalha o uso consciente da inteligência artificial e outras questões relacionadas à cidadania digital com alunos do 7º ano do Ensino Fundamental. Nele, os temas são introduzidos e geram reflexões, que, depois, precisam ser transformadas pelos estudantes em projetos de pesquisa e em protótipos de aplicativos.
Segundo a coordenadora pedagógica dos Anos Finais do Monteiro, Cláudia Belmonte Rahal, ganhou força entre os adolescentes da instituição, no pós-pandemia, a escolha por trabalhar em projetos sobre questões como cyberbullying e etiqueta virtual.
— Em um universo de 20 trabalhos, víamos que 15 a 18 eram voltados ao mundo digital. Por isso, desenvolvemos esse projeto, em que duas professoras trabalham o que é ser cidadão nesse mundo digital e o que é esse mundo digital. Nosso projeto é uma prevenção a esse uso negativo das redes — resume Cláudia.
O desafio, conforme a coordenadora pedagógica, é que os estudantes se afastem daquele assunto, sobre o qual já estão naturalmente envolvidos, e pensem a respeito de uma forma crítica e ética. A partir da delimitação de problemas/conflitos, é aberto espaço para debate, a fim de encontrar uma solução.
— Tem que se abrir espaço para um debate consciente e reflexivo, para que, a partir do conflito ou problema trazido, se descubra um caminho, porque se a gente não propõe um caminho, a gente só aumenta a ansiedade desses adolescentes, o que não é o objetivo de nenhuma escola — avalia a profissional.
Um uso perigoso da inteligência artificial abordado em um projeto dos alunos do Monteiro Lobato é o de filtros em imagens nas redes sociais, que promovem modificações – podem envolver desde molduras ou cenários fictícios, até mudanças no rosto, como afinar o nariz, o formato da cabeça, deixar a boca mais carnuda ou os olhos de outra cor. O hábito de só fazer postagens com filtros pode desencadear transtornos de imagem e problemas na autoestima.
Outro trabalho desenvolvido por estudantes da escola em 2023 foi ligado ao cyberbullying, agressão que pode se manifestar de diferentes formas, como a exclusão de uma pessoa de um grupo de WhatsApp da turma, envio de mensagens ofensivas ou ameaçadoras, disseminação de imagens dela em situações constrangedoras, usando ou não, para isso, ferramentas de inteligência artificial. O grupo formado por Antônia Prates e Victória Ruhl, ambas de 13 anos, além de outros dois colegas, propôs um aplicativo que funcionava como canal colaborativo, no qual era possível adicionar informações sobre cyberbullying, notícias e se comunicar de forma anônima, por meio de uma caixa de mensagens.
— Nosso principal intuito era possibilitar que as pessoas se abrissem, aí colocavam “ah, eu sofri cyberbullying”, e outra pessoa que se identificava com o relato podia colocar embaixo que também sofreu, o que ocasionou — explica Antônia.
O quarteto escolheu o assunto por entender que, hoje, há mais casos de cyberbullying do que de bullying, e que sua ocorrência causa muito mal aos adolescentes, mas nem sempre é percebida pelos agressores como passível de penalização.
— A gente descobriu que muitas pessoas pensam que o cyberbullying é uma coisa segura de se fazer, no sentido de achar que, se eu fizer cyberbullying com alguém, não vai ter nenhum problema, porque eu posso criar uma conta fake e a pessoa não vai saber que sou eu. Mas, hoje em dia, existem até delegacias de crimes cibernéticos em que tem como denunciar esses crimes, e é crime, sim, fazer cyberbullying, e pode gerar várias penas — destaca Victória.
Carina Pellin, que trabalha no setor de Tecnologias Educacionais do Monteiro Lobato, relata que a ideia inicial era de que os protótipos se tornassem aplicativos de fato, mas, por enquanto, isso ainda não se concretizou.
— Eles (os alunos) foram muito além do que as ferramentas poderiam, hoje, realizar na prática. Entendemos que, apesar de estarmos fazendo esse caminho de aplicar as ideias, a gente não estaria aproveitando as ideias que hoje eles têm, se eles precisassem pensar em recursos e aplicações que fossem beneficiar, de fato, o público — observa a profissional.
Ser cidadão digital não é estar escondido atrás do nosso computador e sair fazendo tudo porque a gente tem uma proteção irreal, na verdade, que nos dá um certo anonimato. Eles vão percebendo que esse anonimato não existe, e que ser o cidadão digital é respeitar o seu colega, respeitar a privacidade do outro e respeitar a sua própria privacidade.
DANIELA DE CAMILLIS
Professora de Língua Inglesa
Professora de Língua Inglesa, Daniela de Camillis é uma das docentes que coordena a iniciativa junto aos alunos do 7º ano. Sua preocupação, no percurso do projeto, é trazer a compreensão dos direitos e deveres de um cidadão digital.
— Ser cidadão digital não é estar escondido atrás do nosso computador e sair fazendo tudo porque a gente tem uma proteção irreal, na verdade, que nos dá um certo anonimato. Eles vão percebendo que esse anonimato não existe, e que ser o cidadão digital é respeitar o seu colega, respeitar a privacidade do outro e respeitar a sua própria privacidade. Nós conversamos no ano passado, por exemplo, sobre a evasão de privacidade, que é a permissão que damos de pessoas terem dados sobre nós, aonde vamos, o que estamos fazendo, e o perigo de ter isso tão espalhado — descreve a docente.
Um dos temas mais trazidos pelos estudantes é o padrão irreal de beleza reproduzido nas redes sociais. Outro assunto recorrente é o vício nessas mesmas redes. Com a proliferação de ferramentas que utilizam recursos de inteligência artificial, o debate sobre seu uso ético e como se proteger de seus riscos tem crescido em sala de aula, conforme Daniela.
— Nas nossas aulas, a gente privilegia o pensamento crítico e a criação. Eu não quero que o meu aluno busque um texto para construir um texto em inglês, por exemplo, e que ele busque um texto pronto que vai ficar muito bonitinho, que não foi ele que pensou. A inteligência artificial é inevitável, ela não vai ser banida do planeta, mas que seja usada para o bem, como qualquer outra ferramenta: a mesma tecnologia pode ser usada para fazer um bem espetacular para a humanidade ou para destruir a humanidade. Por isso, a gente tem que dominar aquela ferramenta e não se deixar dominar por ela — pontua a professora.
Podcast
Em Maquiné, no Litoral Norte, a Escola Estadual de Educação Básica Lourenço Leon Von Langendonck mantém o podcast Mergulhando na Educação. A iniciativa é realizada por alunos do 3º ano do Ensino Médio.
O projeto visa explorar o impacto da inteligência artificial no contexto educacional. No total, cinco episódios oferecem uma plataforma para que os estudantes, juntamente com o professor Emerson Magni, da disciplina de Empreendedorismo e Responsabilidade Social, reflitam e discutam sobre a presença crescente dessa tecnologia nas salas de aula.
O docente leciona Matemática e outras disciplinas surgidas com a reforma curricular do Ensino Médio. Como Magni sempre se interessou por tecnologia, sendo também professor dessa área no Senac, acabou "abraçando" as aulas na rede estadual que tinham essa demanda. Foi daí que surgiu o Mergulhando na Educação, fruto de reflexões junto à turma do 3° ano.
— Eu vi que os alunos estavam utilizando muito a inteligência artificial, e nós, claro, tentando orientá-los sobre a melhor forma de utilizar. Então, pensamos em utilizar a inteligência artificial para conversar com ela, e o podcast tem esse intuito, através de questionamentos e orientações que damos para as mais diversas plataformas — explica.
Um dos programas adotados pelo grupo foi o Clipchamp, que edita áudios e permite gerar vozes feitas por inteligência artificial. Com isso, os jovens conseguem interagir com a própria inteligência artificial: eles elaboram perguntas – que, para terem boas respostas, precisam ser bem planejadas – e as fazem para o ChatGPT, por exemplo. O resultado é levado ao Clipchamp, que "responde", por meio da voz gerada pela tecnologia.
— É esse o novo momento que estamos vivendo, de lidar com o algoritmo e com essa varredura que a inteligência artificial faz na internet para buscar informações. Procuro despertar neles a questão do cuidado ao utilizar a inteligência artificial, a fim de buscar se realmente aquelas informações que ela está passando são verídicas — pontua Magni. O trabalho envolve, ainda, discussões sobre plágio, facilitado por ferramentas como ChatGPT.
A partir de entrevistas conduzidas pela inteligência artificial, os participantes têm a oportunidade de abordar temas como os benefícios e desafios da utilização da inteligência na educação, bem como as precauções para garantir uma integração responsável e equitativa. O objetivo do projeto é oferecer espaço para o desenvolvimento de habilidades críticas e de pensamento reflexivo, preparando os alunos para enfrentar os desafios do mundo moderno.
Uso ético
Rosa Maria Vicari, professora do Instituto de Informática e do Programa de Pós-Graduação em Informática na Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta que situações como a registrada na semana passada em uma escola particular de Porto Alegre alertam para a necessidade de se educar para o uso consciente e ético da inteligência artificial, bem como para a necessidade de se regular esse tipo de tecnologia.
— Algo que ajudaria seria as empresas que desenvolvem esses sistemas “assinarem” as criações realizadas, ou seja, acrescentar uma marca d’água que identificasse que aquela foto, vídeo ou texto foi feita pelo sistema X. Em paralelo, tanto escolas quanto famílias precisam educar para essa nova realidade, além de evitar a exposição de menores de idade nas redes sociais — afirma Rosa, lembrando que é “praticamente impossível” eliminar uma informação que foi para a internet.
Para ajudar pais e instituições de ensino, entidades ligadas à Organização das Nações Unidas (ONU), como a Unesco e a Unicef, têm produzido materiais com recomendações sobre o uso da inteligência artificial. O próprio Programa de Pós-graduação em Informática na Educação da UFRGS vem promovendo esse debate e elaborado materiais para orientar escolas.