Escolas públicas do Vale do Taquari passam pelos desafios de reformar estruturas atingidas pelas enchentes do início de setembro e reparar o quanto antes os colégios para evitar mais prejuízos à formação dos alunos.
O governo estadual atua para minimizar o impacto dos dias sem aula com a recuperação das horas de forma presencial e com um conjunto de materiais disponibilizados à direção das escolas. Em meio à tragédia, a solidariedade e a ajuda da sociedade civil são aliadas no processo de reconstrução dos ambientes. Os envolvidos, porém, pedem atenção à saúde mental da comunidade escolar.
GZH mapeou a situação das escolas públicas de seis municípios que registraram mortes por conta das enchentes: Muçum (16 mortos), Roca Sales (13), Cruzeiro do Sul (5), Lajeado (3), Estrela (3) e Encantado (1). O levantamento indica que há cerca de 1,4 mil alunos sem aulas em 12 escolas dessas cidades, das redes municipal e estadual. Muçum, com mais óbitos, é também o município mais prejudicado na educação: as seis escolas da cidade estão sem aulas.
Escola foi atingida por granizo e enchente
Os 420 alunos da única escola estadual de Muçum, município com cerca de 4,6 mil habitantes, a General Souza Doca, devem demorar para ter um ambiente similar ao frequentado há poucas semanas. Em 11 dias, a instituição foi alvo de dois eventos climáticos que inviabilizaram as aulas presenciais.
Primeiro, uma chuva de granizo no dia 23 de agosto danificou o telhado e motivou a suspensão das atividades no prédio. Já no dia 4 de setembro, a escola localizada a cerca de 500 metros do Rio Taquari foi um dos pontos atingidos pela enchente.
— Nem nos recuperamos do granizo e veio a enchente, que danificou tudo: biblioteca, refeitório, sala de computação, nosso auditório. Perdemos tudo — relata Jamir Joanella, diretor da Souza Doca.
A água cobriu toda a parte térrea da escola e chegou até o rodapé do piso superior. A consequência da enxurrada pôde ser vista totalmente apenas depois que a água baixou. Mofo no prédio, muros e paredes derrubados, além de sinais da lama na parede são algumas das marcas na estrutura.
Todas as 16 salas de aula foram prejudicadas: ou pelo granizo ou por conta da enchente. Quando GZH esteve no local, na tarde de quarta-feira (27), serviços eram feitos para recuperar o telhado da escola. Não havia energia elétrica nem água.
Segundo a direção da escola, manter aulas online, iniciadas depois da chuva de granizo, não foi possível após a enxurrada. A maioria dos alunos perdeu tudo o que tinha — inclusive os locais onde eles moravam — e, por isso, não poderiam acompanhar conteúdos via computador. Somado a isso, diz a direção, seis dos 40 funcionários tiveram perdas.
— Professores e funcionários estão muito abalados. Não tem condição nenhuma de ter aula — acrescenta o diretor.
Questionada sobre o que sobrou para a retomada das aulas, Charlene Vigolo, vice-diretora, é sucinta:
— Professores, funcionários, algumas classes, cadeiras e vontade: é praticamente o que temos para recomeçar.
A Secretaria da Educação (Seduc) informa que está em andamento uma obra emergencial nesta escola, em parceria com a iniciativa privada. O trabalho teve início em 25 de setembro e deve durar 15 dias. Segundo a pasta, estudantes e professores são acolhidos a partir do trabalho com a Pedagogia de Emergência e com o Núcleo de Cuidado e Bem Estar Escolar da Secretaria da Educação. As aulas na escola devem ser retomadas após a conclusão.
Professores, funcionários, algumas classes, cadeiras e vontade: é praticamente o que temos para recomeçar.
CHARLENE VIGOLO
Vice-diretora da Escola Estadual General Souza Doca
Todas as escolas municipais de Muçum foram danificadas por granizo ou pela enchente. Por isso, neste momento, todos os 460 alunos das cinco instituições da rede municipal estão sem aulas. A Escola Municipal de Ensino Fundamental Jardim Cidade Alta e a Escola Municipal de Educação Infantil Pingo de Gente devem passar por reforma no telhado e voltar a receber estudantes no início de outubro. A enchente prejudicou a estrutura do Colégio Alternativo, que será desativado, conforme a prefeitura. Os 110 alunos da instituição serão realocados nas duas escolas de Ensino Fundamental do município após a reforma de ambas.
Retomada em Lajeado
Em meio a chuva, por volta das 22h do dia 4 de setembro, a diretora da Escola Estadual de Ensino Fundamental Fernandes Vieira, de Lajeado, Rosângela Mello, convocou os professores para que o grupo fosse à instituição transportar os materiais no segundo piso do prédio. O objetivo: evitar que a água do Rio Taquari atingisse os bens da escola.
O que não pôde ser transportado escada acima foi colocado sobre mesas, na esperança de evitar danos à instituição que tem 331 alunos. O primeiro pavimento, Rosângela previu, seria inundado, pois, àquela hora, a água já se aproximava na esquina da escola. Feito o deslocamento dos materiais, os professores foram embora.
— Tínhamos ideia de que a água entraria uns 30 centímetros dentro da escola, como aconteceu em 2020. Na terça-feira de manhã (no dia seguinte), quando cheguei, vi que todo o térreo da escola estava coberto — comenta a diretora.
Assim como em Muçum, a baixa da água revelou destroços: mesas, cadeiras, livros, armários, documentos, computadores, alimentos. O prejuízo estimado pela direção é de R$ 450 mil, sem contar a estrutura do prédio. Os bens viraram entulhos no processo de recomeço da escola. A comunidade escolar abraçou o desafio, diz Rosângela:
— As famílias que perderam tudo vieram ajudar a tirar os entulhos da escola, o que sobrou da enchente.
Também ajudaram nas tarefas de limpeza do pátio apenados do sistema prisional gaúcho. As aulas retornaram no dia 18 de setembro, com as turmas alocadas no andar superior. No térreo, o piso de madeira teve que ser retirado das cinco salas, procedimento que já estava previsto por conta de outra enchente, em 2020. A enxurrada de setembro acelerou a necessidade de conserto. A estrutura será colocada em 20 dias e só depois será feita a reconstrução da sala.
Por ter ficado com metade das salas, a direção da escola teve de juntar turmas do primeiro e segundo anos, algo feito sob supervisão da Seduc. Quando GZH esteve no local, na manhã de sexta-feira (29), a biblioteca da escola servia como sala de aula do oitavo ano.
— Não é o ideal, mas é o que temos. É uma situação que desgasta bastante, mas nós (professores) temos de dar conta, pois a nossa formação também é para isso — diz Isolde Maria Villa Brust, professora de Língua Portuguesa.
Emanuel de Linhares Westerhovve, 14 anos, ficou cerca de duas semanas sem aulas. Por conta da enchente, a família do adolescente teve de deixar a casa onde morava, perto do colégio.
— Gosto de estudar, então para mim é legal (ir à escola). Fora as férias, eu nunca tinha ficado tanto tempo sem aula, mas acho que não prejudicou muito porque estamos recuperando (conteúdos) — relata o jovem.
Na rede municipal de Lajeado, uma escola e um projeto de contraturno estão sem aulas no local de origem, mas os 224 alunos foram transferidos para ambientes provisórios. Os prédios devem voltar a receber os alunos em até dois meses, segundo a prefeitura. O Colégio Estadual Presidente Castelo Branco está sem aula, mas as atividades foram transferidas para a Univates. A instituição recebeu R$ 351 mil da Seduc para usar em mobiliário e equipamentos.
Encantado
Seis das 15 escolas municipais foram afetadas pela enchente: uma de Ensino Fundamental e cinco de Educação Infantil na cidade com quase 23 mil habitantes. No momento, apenas as atividades da Emei Pequeno Príncipe, que tem 78 alunos, não foram retomadas, o que deve ocorrer na próxima semana em um espaço alugado, conforme a Secretaria da Educação. O prejuízo estimado pela prefeitura é de R$ 3 milhões. As seis escolas estaduais prejudicadas pela cheia também já retomaram as aulas.
Roca Sales
Os 284 alunos da Escola Estadual de Ensino Básico Padre Fernando estão sem aulas. A Seduc diz que "os acolhimentos devem começar em breve" e já há um cronograma. Não retornaram, também, as aulas de Educação Infantil na Emei Crescendo Feliz e Emei Cantinho da Amizade, prejudicando 147 crianças no município que tem pouco mais de 10 mil habitantes.
Cruzeiro do Sul
As aulas já foram retomadas no município, que tem seis escolas atingidas, quatro com danos apenas nas estruturas. Os casos mais graves foram na Emed Antônio Domingos Cíceri, que teve o ginásio de esportes interditado, na Emei Dona Maria Julieta, que demandou troca de todo o piso e na Emef do Passo de Estrela, que registrou queda de muros. Nenhuma escola, no entanto, foi fechada por danos na estrutura. Cerca de 700 alunos estiveram, por um período, sem atividades letivas por conta do temporal.
Estrela
As atividades presenciais foram retomadas na rede municipal. Cinco escolas foram danificadas pela água, o que impediu o funcionamento delas nos primeiros dias após a enchente. As atividades de 900 alunos chegaram a ser prejudicadas. Na rede estadual, duas escolas atingidas pela cheia têm atividades normais.
Unindo forças para superar traumas
O trabalho de retomada das escolas do Vale do Taquari não é apenas material: a saúde mental das vítimas das enchentes merece atenção especial nos municípios atingidos. A Associação da Pedagogia de Emergência se mobilizou após a tragédia e reuniu 18 voluntários para atuar nas comunidades escolares.
— A pedagogia de emergência é um método para apoiar crianças, adolescentes, jovens e adultos vítimas de catástrofes. Nossa intenção é acolhê-los em um momento difícil. Nessa acolhida, fazemos um trabalho de solução do trauma. A ideia é fazer com que eles saibam que a vida vai continuar, que isso (o desastre) é difícil, mas vai passar. O nosso grande objetivo é que essas crianças não adoeçam daqui seis meses ou um ano, mas que elas encontrem esperança, alegria e afeto — diz William Boudakian, presidente da organização.
O trabalho, iniciado no dia 14, é feito em parceria com a Secretaria da Educação. São oferecidas atividades para diluição do trauma, nos quais os integrantes participam de oficinas, em ações como jogos, brincadeiras, trabalhos manuais, música, dança e rodas de conversa. Professores também recebem atenção dos integrantes da ONG.
— Os professores aqui são vítimas, direta ou indiretamente. São pessoas que tiveram casas destruídas e estão resolvendo a própria vida e a do outro também. Eles são líderes, representantes da comunidade, e precisam de cuidados, precisam ser olhados — acrescenta.
Lajeado, Estrela, Encantado, Cruzeiro do Sul, Roca Sales e Muçum foram os locais escolhidos para as atividades da ONG. A Pedagogia de Emergência também já realizou intervenções em 28 países, além de ter atuado para minimizar o impacto em tragédias ocorridas no país.
Os professores aqui são vítimas, direta ou indiretamente. São pessoas que tiveram casas destruídas e estão resolvendo a própria vida e a do outro também. Eles são líderes, representantes da comunidade, e precisam de cuidados, precisam ser olhados.
WILLIAM BOUDAKIAN
Presidente da Associação da Pedagogia de Emergência
As instituições de ensino do Vale do Taquari também tiveram a atenção de voluntários, empresas e organizações para a retomada das aulas. Isso, segundo os responsáveis pelas escolas, foi decisivo para a limpeza e reforma dos locais atingidos.
O Instituto Jama, que desde 2009 direciona o investimento social da família de Jayme Sirotsky prioritariamente para projetos nas áreas da educação e assistência social, é um dos participantes na reconstrução. Frente às informações da tragédia no início do mês, a instituição se mobilizou para atuar no Vale do Taquari.
— No primeiro momento, iniciamos nossa sensibilização através de ajuda humanitária, com doação de itens de higiene e limpeza, cobertores. Em seguida, direcionamos nosso olhar para as escolas da região, com a aquisição de equipamentos indispensáveis, como lava a jato, carrinhos de mão, pás, botas e geradores — conta Adriana Lanzarini, executiva do instituto.
Após esse primeiro auxílio, a Secretaria da Educação elencou ao instituto oito intervenções prioritárias em Encantado, Lajeado, Muçum, Roca Sales e Estrela. Entre as iniciativas, está o investimento na reforma completa do telhado da escola Souza Doca de Muçum – danificada pelo granizo – e reforma de 40% do madeiramento. Segundo Adriana, além dos esforços próprios, o instituto busca conscientizar a sociedade civil para a união de forças em prol da reconstrução das escolas do Vale do Taquari.
— Dentro do nosso propósito, a educação como prioridade, nos sentimos muito sensibilizados nessa tragédia e estamos envidando esforços e vislumbrando possibilidades para minimizar a sensação de perda e trauma causado por esse episódio. Temos certeza de que as escolas têm um papel social imprescindível para o desenvolvimento dos jovens dessas comunidades — pontua.
Dinheiro destinado à recuperação
Segundo a Secretaria da Educação, foram destinados R$ 2 milhões para nove escolas do Vale do Taquari, que serão utilizados na substituição de mobiliários danificados ou levados pelas enchentes. A pasta também afirma que somente duas escolas da região estão sem aula: Souza Doca (Muçum) e Padre Fernando (Roca Sales). Reposição de material pedagógico, kits escolares, presença na região estão entre as medidas citadas como para minimizar a influência dos prejuízos na rotina da comunidade escolar.
Raquel Teixeira, secretária da Educação, diz que o Estado tem atuado para mitigar os danos causados pelas enchentes na parte pedagógica em diversas frentes para recuperar as atividades presenciais.
— A experiência e a evidência mostram que acrescentar um sábado, um domingo, uma aula em dezembro ou janeiro, em termos de aprendizagem, não tem muito impacto. A substituição por carga horária em contraturno, trabalhos de pesquisa, de grupo, aulas extra, mas dentro do período que o aluno está na escola, tem mais resultado — pontua.
Outra medida, segundo ela, é a utilização dos chamados Cadernos de Aprendizagem Contínua, materiais criados pela Seduc com foco na "potencialização do aprendizado com progressão e flexibilidade" em Português e Matemática. Segundo a secretária, foram disponibilizados recursos para que diretores possam imprimir o material para uso.
— Estamos trabalhando muito nesses materiais estruturados, que são bem pontuais e certeiros. A pandemia mostrou que a coisa presencial é muito importante, principalmente nos anos iniciais. Nosso pedido de apoio é para a implementação desses cadernos de recuperação por parte das escolas — acrescenta Raquel.