Doutor em Ciências da Educação e História, doutor honoris causa em instituições de Ensino Superior de diferentes partes do mundo, reitor honorário da Universidade de Lisboa ou embaixador da Unesco entre 2018 e 2021 – nenhum desses títulos é tão importante para António Nóvoa como o de professor. O português de 68 anos, que é referência internacional em educação, esteve em Porto Alegre em fevereiro para dar uma palestra aos docentes da Rede Marista sobre o papel da escola no ensino do futuro, tema de que trata também no seu recém-publicado livro Escolas e Professores: Proteger, Transformar, Valorizar (Editora SEC/IAT, 116 páginas, gratuito e online). Em entrevista a GZH, Nóvoa defende que o lugar dos alunos não é mais em sala de aula: a escola deve passar por uma metamorfose que envolve a criação de novos ambientes educativos, que, aí sim, permitam que os estudantes foquem em seus trabalhos.
Qual o papel da escola na educação do futuro?
Nos últimos três, quatro anos, fui embaixador de Portugal da Unesco e estive ligado à redação do seu último relatório sobre os futuros da educação, no plural. Estive também ligado à cúpula da ONU, em setembro de 2022, sobre a transformação da educação. Vivemos, hoje, a maior transformação de que se há memória na história da educação e da escola. Não há memória de nenhuma transformação tão profunda como esta, por causa da pandemia, sim, mas os problemas já estavam aqui antes. A escola, que é uma instituição extraordinária – lembro-me sempre da frase do Darcy Ribeiro, quando ele dizia que “a escola pública é maior invenção do mundo” –, chega ao século 21 precisando ser repensada. O que isso quer dizer? Fundamentalmente, que nós vivemos ainda no modelo escolar da sala de aula, das carteiras alinhadas, da disciplina de uma hora, da lição do professor. Temos uma estrutura escolar que já não faz sentido, e que hoje precisa passar por um processo. Fui buscar no filósofo francês Edgar Morin o conceito de metamorfose da escola. Metamorfose quer dizer transformar a forma da escola, a maneira como nós a organizamos.
Vivemos, hoje, a maior transformação de que se há memória na história da educação e da escola. A escola, que é uma instituição extraordinária, chega ao século 21 precisando ser repensada."
Reorganizar de que modo?
Tenho dois exemplos mais fortes para dar. Primeiro, precisamos de novos ambientes educativos. Temos que sair da sala de aula. O ambiente da sala de aula está preparado para dar aulas, para o professor dar a sua lição. Os novos ambientes educativos têm que ser mais abertos, mais diversos, com trabalhos de grupo, trabalhos individuais, onde acontecem coisas muito diversas no mesmo espaço. Para isso, precisamos repensar os ambientes educativos.
É uma questão de arquitetura?
É. Na verdade, foi arquitetura que inventou essa escola, no século 19. Mas é muito mais do que isso. É uma questão de ocupação do espaço, de pedagogia, de trabalho do professor, de trabalho colaborativo entre professores. Hoje, isso já existe em todos os lugares do mundo. No Brasil, na China, na Índia, na Europa, milhares e milhares de escolas e professores já trabalham em novos ambientes educativos. Qual é o problema? É que nós conhecemos mal isso. Já se faz muita coisa, mas nós ainda não fomos capazes de elencar, nomear, estudar e compartilhar esses milhares, milhões de coisas extraordinárias que já existem no mundo. Se não mudarmos o ambiente educativo, nós, dentro da sala de aula, faremos aquilo para o qual a sala de aula foi preparada. “Ah, queremos que os alunos sejam criativos, que sejam ativos, que comuniquem, que façam pesquisa.” A sala de aula não está preparada para isso. O segundo exemplo, que, para mim, é muito importante, é a ideia do trabalho. Estou brincando, mas serve como provocação: nós não queremos que o professor trabalhe. Nós queremos que o aluno trabalhe. E a sala de aula é feita para o professor trabalhar, planejar e dar a sua aula, enquanto o aluno a recebe. O que nós queremos é que o aluno trabalhe. Que o aluno entre de manhã na escola e saia à tarde e esteja sempre fazendo estudos, pesquisas, trabalhos em grupo, criando coisas, escrevendo jornais, cartas, lendo, preparando algum projeto, e que o professor seja aquele que, de algum modo, organiza o trabalho dos alunos, supervisiona, acompanha, avalia, apoia. Mas nada substitui o trabalho dos alunos. E o que nós precisamos instaurar nesse novo ambiente educativo é uma relação dos alunos com o trabalho, porque é a única maneira de os mantermos motivados, interessados, de termos uma pedagogia e uma educação inclusivas. A sala de aula é, por definição, um ambiente excludente. Se queremos uma pedagogia inclusiva, temos que expô-los a uma situação de trabalho.
Estou brincando, mas serve como provocação: nós não queremos que o professor trabalhe. Nós queremos que o aluno trabalhe. E a sala de aula é feita para o professor trabalhar, planejar e dar a sua aula, enquanto o aluno a recebe.
Que tipos de ambientes são esses?
Há milhares. Eu não quero dizer milhões para não exagerar. A Unesco fez três grandes relatórios sobre educação. O primeiro foi em 1972, sobre “Aprender a ser”, o segundo foi um relatório de 1996 sobre “Educação: um tesouro a descobrir” e o terceiro nós publicamos no ano passado, que se chama “Reimaginar juntos os nossos futuros: um novo contrato social da educação”. Quando fizemos esse relatório, nós consultamos, ao longo de três anos, cerca de 1 milhão de pessoas. Fizemos duas perguntas: como vai ser o futuro da educação e o que vocês estão fazendo agora. Na pergunta sobre como vai ser o futuro da educação, recebemos respostas sem nenhum interesse. Banalidades. Mas, quando perguntavam às pessoas “o que vocês estão fazendo agora nas suas escolas?”, vieram respostas extraordinárias, desde em países pobres da África, por professores de comunidades paupérrimas, nos lugares mais diversos do mundo. Nós entramos nessas escolas e o que vemos são os alunos trabalhando. Entramos num grande espaço e vemos num canto três ou quatro alunos desenvolvendo um projeto qualquer artístico, no outro canto dois ou três alunos estudando matemática, no outro um aluno na frente de um computador fazendo algum projeto. Parece que entramos em um laboratório de pesquisa científica. Os pesquisadores estão trabalhando, cada um no seu posto, alguns trabalhando uns com os outros, mas há uma sensação de que ali há uma relação de estudo, de trabalho, de pesquisa. São ambientes muito diversos. Às vezes são ambientes mais internos à escola, como bibliotecas, espaços mais abertos, de recreio, salas de estudo, outras vezes são ambientes mais ligados às comunidades, com uma ligação com o que está fora da escola, mas todos eles se caracterizam pela mesma realidade: os alunos estão ali fazendo tarefas, estudando, trabalhando, desenhando, construindo projetos, fazendo alguma coisa, e isso eu acho que é a marca da pedagogia. Aliás, é muito curioso. Nós falamos muito da Escola Nova, conceito que tem cem anos, mas o primeiro conceito desse movimento foi Escola do Trabalho, que vinha de um pedagogo alemão chamado Georg Kerschensteiner, que foi muito influente nesse movimento. Depois, tiveram medo de que “trabalho” fosse confundido com o trabalho manual. Mas a Escola do Trabalho é onde o aluno trabalha. Esse conceito de Escola de Trabalho era muito mais poderoso do que o conceito de Escola Nova, que não diz nada. Essa ideia parece central neste momento de transformação da educação e das escolas.
Na sua experiência junto à Unesco, o senhor conheceu escolas no mundo inteiro. Há muita diferença entre o que se está fazendo em regiões mais ricas e mais pobres?
Do ponto de vista pedagógico, não. É curioso, e uma das coisas que nos surpreenderam na Unesco. Temos uma espécie de monitoramento do que os países e as escolas estavam fazendo em resposta à pandemia. Foi ali que encontramos respostas extraordinárias em países e escolas muito pobres e respostas sem nenhum interesse em países e escolas ricas. É claro que, do ponto de vista das desigualdades, é outra coisa. A pandemia foi trágica nesse sentido, sobretudo para as meninas, especialmente em certas regiões da Ásia e da África em que, por exemplo, muitas meninas entre 11 e 13 anos deixaram de ir à escola e, agora, já não voltam mais. As famílias não deixam. Sempre houve uma resistência à ideia de que, quando a menina começa a despertar um pouco para a sexualidade, ela siga indo à escola. Há um medo. Então, em vez de promover a educação sexual como deveriam, tira-se a menina da escola. E a pandemia foi arrasadora nisso. Há milhões de meninas em todo o mundo que não vão voltar à escola. As desigualdades sociais no mundo são fortíssimas. Mas, do ponto de vista das respostas pedagógicas, o que nós vimos foram coisas extraordinárias. Literalmente em escolas que funcionam sob uma árvore, na África, vieram respostas extraordinárias, inteligentes, de uma lucidez pedagógica enorme.
O senhor teria um exemplo?
Há um tema que, para mim, é muito importante, que é a cooperação. Quando se fala em novos ambientes educativos e em trabalho, se fala em cooperação. Para trabalhar, temos que cooperar. Lembro de uma resposta em um país africano muito pobre, em que um município decidiu dar uma pequena bolsa, de uns R$ 10 por mês, a alunos de 11 e 12 anos, para ajudar outros de sete e oito anos na sua escolaridade. E isso mudou tudo. É impressionante como mudou a vida daquela aldeia. Os R$ 10 que eram dados a esses meninos eram fundamentais para a vida da família, mas a mudança se deu porque os alunos de sete e oito anos passaram a aprender coisas que eles não aprendiam com o professor. É uma política pública muito simples, que não custou praticamente nada e que mudou a vida naquela aldeia. Houve uma grande diversidade de respostas pedagógicas. Mas, quando falo nos novos ambientes educativos e no trabalho, é porque a sensação que tenho é que em todas as escolas há dois denominadores comuns: novos ambientes educativos e a instauração de uma nova relação com o trabalho. Umas vão mais pelo currículo, outras, pelas artes, outras, pela ciência, outras, pela relação com famílias e comunidades, outras, pela tecnologia, mas em todas elas esses dois pontos são comuns.
Muito se critica, quando se fala nessas transformações, a formação dos professores, mas o senhor diz que há também muitos bons exemplos pelo mundo. A formação tem passado pelas mudanças de que precisa?
Não. A formação dos professores está numa fase muito difícil, em todo o mundo. É claro que as situações são diferentes. É claro que a situação no Brasil é pior do que em Portugal do ponto de vista salarial, do ponto de vista estrutural. Mas o problema de fundo é o mesmo. Nós temos que ter a consciência hoje de que, ainda que haja uma grande desigualdade entre a Finlândia, a China, o Brasil, Burundi etc, o problema de fundo é igual em todo o mundo. E um dos problemas sobre os professores é uma espécie de desprestígio, um mal-estar da profissão. Em Portugal, os professores são relativamente bem remunerados, e, ainda assim, estão em greve há dois meses, em uma situação de mal-estar como nunca estiveram antes. É um problema salarial, mas é bem mais do que isso. Eu, muitas vezes, brinco que se, por exemplo, nós marcarmos um jantar para 12 ou 13 pessoas que não se conhecem bem e se começar a falar em profissões, eu já sei que as pessoas que ficaram caladas são professoras. Enquanto que, se tivermos um jantar com um médico, ele arranja logo uma maneira de nos dizer que é médico, os professores parece que se retraem. E isso tem a ver com muitas coisas, mas também com a formação dos professores. Não estamos atraindo para essa profissão os melhores alunos do Ensino Médio, as licenciaturas estão desprestigiadas. Falta alguma coisa na formação. Tenho vindo ao Brasil divulgar a ideia de que precisamos de um novo lugar para a formação de professores. As universidades e as escolas são importantes, mas nem uma, nem outra conseguem formar professores sozinhas. Então, tenho divulgado a ideia de um terceiro lugar que eu chamo de “casa comum da formação e da profissão”, que é um lugar de encontro entre a universidade, as escolas, os gestores municipais etc, para construir uma nova realidade institucional da formação de professores. Um pouco parecido com a função do hospital universitário. É o lugar onde estão os práticos, os teóricos, os cientistas, os pesquisadores, as políticas públicas etc, para ver se, a partir daí, se começa a construir uma formação de professores mais robusta, tanto na formação inicial como na formação continuada. Felizmente também no Brasil há um exemplo concreto disso, que é o Complexo de Formação de Professores da UFRJ, onde eu trabalhei em 2017. Na época, o reitor era o Roberto Lehrer. Lançamos esse projeto, o complexo está criado há cinco anos e tem se desenvolvido muito bem. É uma experiência que, hoje, merece ser estudada e trabalhada. Não sei se vai acontecer ou não, mas espero muito que esse novo governo do Brasil possa estender a experiência do complexo da UFRJ a mais universidades.
No Rio Grande do Sul, o Sesi tem o projeto de criar um Centro de Formação em Educação com um formato semelhante.
Tenho acompanhado iniciativas absolutamente extraordinárias de experiências pedagógicas no Brasil. Trabalhos que se fazem em colégios, o que se faz, às vezes, na rede pública, mas, muitas vezes, é pouco conhecido, pouco discutido, estudado. Esse é um trabalho que precisamos fazer: conhecer o que se faz, estudar, divulgar, compartilhar o que se faz. Há poucos dias, um jornalista do Rio Grande do Sul me perguntou: “Qual é a grande novidade que o senhor nos traz?”. E eu respondi: “A única novidade que eu tenho para lhe dar é que não há nenhuma novidade”. As novidades já estão todas aí. O futuro da educação não vai vir de uma nova lei, de uma nova reforma, de um novo método, de uma nova tecnologia ou de uma nova teoria. Vai vir da capacidade de se perceber o que já está acontecendo e de ir construindo um movimento. O Edgar Morin dizia, sobre as questões climáticas: “Há milhares de coisas no mundo extraordinárias, mas nós não as conhecemos ainda e, sobretudo, elas ainda não se transformaram em um movimento”. Na educação é exatamente a mesma coisa. Há milhares de coisas extraordinárias no Brasil e no mundo, mas nós não as conhecemos suficientemente bem e ainda não fomos capazes de criar uma dinâmica de um novo movimento da transformação da educação e da escola.
A educação e a escola pública nasceram para combater a desigualdade. Dizia-se muito que a educação é como um elevador social. No dia em que a educação deixar de ser isso, ela não servirá para nada."
Pensando na educação em países desiguais, como o Brasil: o combate à desigualdade é um papel da educação ou é de outras instâncias de políticas públicas?
A educação e a escola pública nasceram para combater a desigualdade. Dizia-se muito que a educação é como um elevador social. No dia em que a educação deixar de ser isso, ela não servirá para nada. A educação é sempre um processo que, nós acreditamos, pode contribuir para combater as desigualdades. Qual é o problema? Em números redondos, segundo cálculos da Unesco de antes da pandemia, haveria no mundo cerca de 1,6 bilhão de alunos de até 15 anos em escolas de todo o mundo. A humanidade, hoje, tem 7 bilhões de pessoas, mais ou menos. Segundo a Unesco, 800 milhões saíam das escolas aos 15 anos sem terem aprendido nada. Portanto, a escola não só não contribuiu para combater as desigualdades como, pior ainda, as acentuou. A gente pensa e diz, como é possível as crianças ficarem 10 anos numa escola e a metade delas sair de lá sem aprender nada? Havia um colega nosso, acho que era o Bernard Charlot, que dizia: “Há muitas crianças que passaram muitos anos na escola sem nunca lá terem entrado de verdade”. Nunca entraram numa cultura escolar. Por isso que a ideia do trabalho é tão importante. Ora, escolas desse tipo acentuam as desigualdades, e isso é absolutamente dramático, porque a escola tem um papel decisivo nesse combate às desigualdades e temos de construir uma escola que tenha essa capacidade e essa ambição. No dia em que a escola perder isso, para que a gente vai querer escola? Porque a gente quer a escola justamente para dar oportunidades às pessoas que elas nunca teriam se não tivessem estudado. A educação é uma viagem. É uma viagem para outros lugares, outras paragens, outras culturas, outras possibilidades. E isso é algo que tem que ser matricial. Em um país como o Brasil, isso é central, e por isso é que falar sobre educação pública de qualidade, em que todos os meninos e as meninas aprendam, é absolutamente central. Poderíamos ter falado sobre jogos, recreio, questões emocionais, e tudo isso é muito importante na escola, mas a escola não é feita para isso. A escola é feita para trabalhar. Portanto, o jogo, a dimensão emocional são instrumentos para conseguirmos trazer a criança para a dinâmica do trabalho e da aprendizagem. Há um verbo que, para nós, é muito importante: cuidar. Mas isso não significa dividir uma hora para ensinar matemática e outra para cuidar dos meninos. O que me interessa é fazer duas horas em que a matemática e o cuidado estão juntos, em que eu cuido dos meninos através do processo de aprendizagem da matemática. E obviamente há países em que essa dinâmica de combate à desigualdade é ainda mais necessária, e o caso do Brasil é um caso típico de uma escola e uma educação públicas que ainda não cumpriram promessas feitas no século 20.
Não cumpriram por quê? Por falta de investimento financeiro?
O investimento financeiro é importante, mas não tudo. Eu às vezes sinto o Brasil, em muitos casos, travado. Senti isso nas universidades nos últimos anos. Sei que a situação política era horrível, a situação financeira era difícil, mas eu dizia muitas vezes: ok, isso é verdade. Só que alguma coisa os impede de mudar o currículo da formação dos professores? Alguma coisa os impede de dar aulas de maneira diferente? Não há nada que impeça. O Complexo de Formação de Professores do Rio de Janeiro foi feito praticamente sem dinheiro. Não estou desvalorizando a importância dos investimentos, mas o problema vai além disso.