Em 2019, Geovana Benites estava nos primeiros semestres do curso de Jornalismo da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Certa manhã, antes de seguir para a sala de aula, passou no xerox do prédio:
— Lembro que eram 8h30min e eu tinha de entregar um trabalho impresso. Estava toda a turma na fila: eles tentavam nos atender o mais rápido possível, sabendo que estávamos atrasados para a aula — conta a jovem, hoje com 24 anos e no último semestre do curso.
Ela se refere a Abilio Paulo Martins, 73 anos, e Seno Luiz Klein, 64, que, naquele dia, imprimiam materiais para estudantes no xerox da Fabico. A cena contada por Geovana ficará apenas na memória de quem frequentou o prédio nos 23 anos em que a dupla administrou o serviço de cópias: no dia 1° de fevereiro, os sócios decidiram entregar o lugar à instituição e encerrar o negócio.
— É uma pena que eles não vão mais estar na Fabico, porque eram uma mão na roda para nós, nos ajudavam. Fora isso, eram pessoas legais, que faziam as coisas de forma tranquila. Foi bem triste ter essa notícia — resume a estudante de Jornalismo.
Nas mais de duas décadas de atividade, Abilio e Seno fizeram cópias de páginas de livros, impressão de arquivos digitais e encadernações para os cursos da faculdade e outros próximos ao prédio. Também tinham clientes de fora do meio acadêmico. As filas, portanto, eram comuns na rotina do prédio, nas cerca de 12 horas diárias de funcionamento do xerox, de segunda a sexta-feira:
— Tinha dias que estávamos tão ocupados que passávamos o tempo todo sem conversar, não dava tempo. Conversávamos só na hora de ir embora — diz Abilio.
O trabalho na Fabico rendeu amigos e elogios aos “tios do xerox”, forma carinhosa pela qual Abilio e Seno são tratados na faculdade.
— Os dois nos atendiam muito bem, tinham paciência, principalmente com os alunos que estavam entrando na faculdade. Sempre me causava admiração o jeito que eles lidavam com aquela papelada, sem se perder. Eles faziam parte da comunidade acadêmica da Fabico — diz Léo Saballa Jr., jornalista e apresentador do Bom Dia Rio Grande, da RBS TV, que foi estudante da graduação e do mestrado na Fabico.
Pandemia mudou tudo
Abilio e Seno afirmam que o xerox teve de se adaptar ao modo como estudantes e professores passaram a consumir conteúdos desde 2000: o que antes existia apenas em formato físico, migrou, aos poucos, para o digital. Docentes que deixavam materiais de aulas no xerox começaram a disponibilizá-los em plataformas na internet.
Computadores, celulares, tablets: as tecnologias alteraram o serviço, mas não foram capazes de fechar o negócio em mais de duas décadas. Isso, porém, mudou a partir de 2020, com a pandemia de covid-19.
— Os professores começaram a dar aula online e colocar materiais online. Quando voltou (o presencial), todo o material estava na internet. Os alunos se acostumaram com isso. A tecnologia é uma revolução, não podemos estar nessa coisa básica: ou se moderniza ou cai fora — diz Abilio.
A dupla conta que a empresa conseguiu se manter nos últimos anos porque o aluguel foi suspenso durante a pandemia, nos meses sem aulas no campus. No entanto, a volta às atividades presenciais da UFRGS, em junho de 2022, foi acompanhada pela redução de 90% nas vendas do xerox. Traduzido em recursos, houve dias, nos últimos meses, em que os sócios faturaram R$ 30 ou R$ 40.
Por isso, eles avisaram a universidade que deixariam o espaço no dia 1º de fevereiro. Quando GZH esteve no local, na manhã de segunda-feira (27), os dois estudavam como vender os equipamentos do xerox, para desocupar a sala, que custava à empresa cerca de R$ 900 por mês, conforme Abilio:
— De junho (de 2022) até fevereiro, aguentamos tirando dinheiro dos nossos bolsos porque o que recebíamos aqui não dava nem para o aluguel.
Abilio diz que quer trabalhar na área da gastronomia e que ainda não se aposentou. Já Seno é aposentado e planeja trabalhar na academia do filho.
Em nota à reportagem, a direção da Fabico disse compreender "a natureza do pedido" e que a "rescisão foi efetuada de forma amigável"; ressaltou, ainda, ter estado "sempre aberta ao diálogo e disponível para discutir as propostas do concessionário." A administração da faculdade afirmou que o xerox não será assumido por nenhuma outra empresa, e que os alunos podem buscar o serviço em uma gráfica próxima ao prédio da Faculdade de Medicina.
Universidades com foco no digital
Na Feevale, a digitalização de materiais de estudo é uma política institucional. Segundo Carlos Henrique Schwartzhaup, gerente de Tecnologia da Informação, o aluno que precisa imprimir materiais tem à disposição um sistema de autoatendimento. São cerca de 150 pontos espalhados pelos três campi e polos da Feevale. Por isso, não há uma sala de xerox, similar ao espaço que havia na Fabico.
— Há pelo menos oito anos trabalhamos para que os professores coloquem todo o conteúdo das aulas no formato digital, para que o aluno não seja incentivado a imprimir. Também temos livros digitais para que não ninguém precise tirar cópias em um ponto de impressão — explica.
Segundo Schwartzhaup, a pandemia também impulsionou a adoção do digital no lugar do papel na instituição. Antes da crise sanitária, ele estima que a Feevale fizesse 300 mil impressões por mês. Hoje, são menos de 100 mil cópias mensais. A prática de imprimir conteúdos não foi retomada com a volta das aulas presenciais. E são várias as motivações da universidade para atuar na redução de cópias físicas:
— Existe a preocupação com o meio ambiente, do uso de papel, de toner, de energia elétrica. Também está diretamente ligado ao custo do aluno. Então, a ideia da universidade é continuar nesse formato, pois não há motivo para voltar — comenta.
A Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) tem um sistema parecido ao da Feevale. São, ao todo, oito pontos, nos prédios 7, 8, 11, 12, 16, 30, 32 e 50. Nesses locais, o aluno consegue imprimir sozinho os materiais com o uso da carteirinha de estudante ou mesmo por meio de um aplicativo de celular.
Além desses pontos, há cinco anos a PUC tem duas empresas terceirizadas que fazem a função de xerox no prédio 5 e na biblioteca. Segundo Luís Fernando Vial, diretor da gráfica Todesprint, o serviço de xerox (como cópias e encadernação) para alunos e professores representa hoje 20% das vendas da loja.
— Existe a demanda na universidade, mas ela é bem menor do que anos atrás, reduziu com os meios virtuais. A pessoa prefere digitalizar um livro do que tê-lo impresso. Não se vive mais de xerox: ele é um complemento, um adicional, dentro de um portfólio de produtos oferecidos para professores, alunos e demais clientes — diz.