Por André Cauduro D’Angelo
Mestre e bacharel em Administração pela UFRGS e professor na PUCRS
Meu artigo Los Invictos, publicado em GZH em 23 de abril, foi alvo de réplica por parte de Jorge Barcellos, servidor da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, na semana seguinte (30 de abril). Como ambos os textos geraram manifestações de leitores, acho que vale acrescentar algumas notas a respeito do tema.
Começo pela resposta de Barcellos. Resumidamente, segundo ele, meu artigo faria parte de um movimento de “ataque ao serviço público”, cuja intenção é “derrubar o último refúgio de garantia do Estado, a estabilidade”.
Primeiramente, questionar privilégios do funcionalismo não significa atacar o serviço público. Trata-se de um truque retórico: pretextar ofensa à instituição para revestir seus integrantes de uma imunidade à crítica que obviamente não têm.
Segundo: meu texto não ataca a estabilidade do funcionalismo. Esta, aliás, até pode ser vista como um mal necessário, dado o risco que a assunção de novos administradores, a cada quatro anos, significaria para a continuidade e a qualidade dos serviços prestados. O problema é o combo de vantagens somados à estabilidade: remuneração acima da média, aposentadoria integral, direito de greve, licença-prêmio, penduricalhos, inexistência de aferição de desempenho, possibilidade de acionar judicialmente o empregador sem risco de demissão etc.
Para reforçar seu argumento, Barcellos afirma que a estabilidade consta em todas as Constituições brasileiras desde 1915. Ora, Cartas Magnas não são obras da Divina Providência, e sim documentos escritos por homens e mulheres que representam grupos de interesse e atendem a lobbies e pressões, entre os quais aqueles exercidos pelas bem organizadas corporações públicas. “Constitucional” não é sinônimo de “certo” ou “bom”, tampouco reflexo do interesse da maioria, necessariamente.
O autor cita também uma estatística segundo a qual metade dos servidores públicos recebe até R$ 2.727 mensais e pergunta: “Onde estão os milionários?”. Não sei, até porque não falei em milionários no meu texto. Mas basta um contingente elevado de funcionários com salários módicos para eles se tornarem um peso para o Estado e para a sociedade, sob a forma de carga tributária. Não é só a remuneração, portanto; a quantidade de servidores também merece discussão. E, como produtividade é um conceito demasiado empresarial para os ouvidos sensíveis do funcionalismo, na esfera pública só se concebe fazer mais se recursos humanos e materiais forem adicionados, e nunca conservados ou subtraídos, como sugere o sentido original da palavra.
O mais revelador do artigo de Barcellos, contudo, é o seguinte trecho: “(...) todos sonham com o que outros têm. O discurso neoliberal é contra qualquer valorização das diferenças (...) e vantagens obtidas na luta dos servidores” (grifos meus). E refere-se aos críticos como “los invejosos”. Trata-se de uma confissão involuntária de privilégio (Freud explica). Caso contrário, por que os servidores seriam alvo de inveja? Talvez porque sua “diferença” esteja em auferir “vantagens” (palavras dele) às custas do pagador de impostos, não?
Entendo o raciocínio de Barcellos e de outros que lhe emprestaram apoio. Geralmente são servidores públicos que se sentem injustiçados por serem concursados e cumpridores dos seus deveres. E que costumam enxergar como privilegiados colegas que ocupam cargos de confiança, ou que são melhor remunerados, ou que trabalham pouco e/ou mal, ou que se aposentam cedo, ou que vivem de licença médica (a lista de “ous” é quase infinita).
Trata-se de um caso clássico de efeito de ancoragem, viés cognitivo que distorce julgamentos de acordo com o padrão de comparação adotado. E o do funcionalismo nunca é a iniciativa privada, e sim o próprio serviço público, terreno fértil em distorções e benefícios generosos. Em outras palavras: invictos não se sentem invictos porque estão rodeados de outros mais invictos do que eles. Prova maior é que servidores não abandonam o emprego público para tentar a sorte na iniciativa privada, enquanto o caminho inverso está repleto: o Brasil não é o país dos concurseiros à toa.
Existem outros invictos no Brasil? Certamente. Banqueiros, empresários que desfrutam de isenções fiscais eternas, vencedores suspeitos de licitações, partidos políticos. E o remédio para isso, lamento informar, é um pouquinho “neoliberal”, sim: menos Estado. Pois em quanto mais posições ele joga, mais invictos tende a produzir.