Se mantido, o corte no orçamento de universidades federais poderá impedir o retorno às aulas presenciais, afetar auxílios a alunos carentes e prejudicar a ciência brasileira e o combate à covid-19 no país, relatam reitores, pesquisadores e estudantes.
Em meio à pressão que passou a sofrer após a redução de 20% do orçamento das federais em 2021, o Ministério da Educação (MEC) enviou, na quinta-feira (13), ofício ao Ministério da Economia solicitando desbloqueio de R$ 2,7 bilhões e complementação de R$ 2,6 bilhões para evitar o fim de “diversas demandas essenciais à área da educação”, segundo o jornal O Estado de São Paulo.
Estão em risco o pagamento de água, eletricidade, limpeza e segurança das universidades, além da realização do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) e a quitação, para além de setembro, da assistência a estudantes de baixa renda e das bolsas de 92 mil cientistas, incluindo pesquisadores da covid-19. Os cortes ocorreram em meio à crise econômica e após o repasse de bilhões de reais para emendas de parlamentares – dinheiro que saiu do orçamento dos ministérios.
A despeito de o MEC ter liberado, na quinta-feira (13), 46% dos 60% de verbas bloqueadas, a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) afirma que a situação segue crítica e que o caixa das universidades deixou de terminar em maio para se esgotar entre agosto e outubro. A liberação de mais recursos depende do Congresso e do governo federal.
Os cortes repercutem na vida de milhões de brasileiros, como a estudante de Gestão em Saúde Gisele Jardim Garcia, 39 anos. Não houve nada de natural na trajetória dela até o Ensino Superior: para sustentar dois filhos adolescentes e o marido, que realizou várias cirurgias após ter a coluna desgastada em trabalho pesado, ela atuava como empregada doméstica enquanto vendia doces, estofava sofás e produzia artesanato. O retorno aos estudos ocorreu, anos após os livros terem ficado de lado, por conta do incentivo dos filhos e dos patrões, um casal de professores universitários.
— Vim do Interior, casei aos 17 anos e não tinha nem o Ensino Fundamental. Depois tive filho e trabalhava no comércio. Comecei a estudar para o Enem sozinha, ouvia vídeos do YouTube enquanto passava roupas e limpava a casa. Tinha vergonha de falar que estava estudando. Mas, no ambiente onde eu estava inserida, eu via o quão meus patrões eram prósperos, a educação que tinham, via as meninas deles estudando, e isso acendeu uma luz em mim. Pensei: “Eu também posso, vou me esforçar” — afirma Gisele, moradora do bairro Mato Grande, em Canoas.
O esforço resultou na aprovação para a Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Mas, assim como para outros alunos de baixa renda, permanecer é uma luta – vencida com o apoio dos patrões, que concedem folgas e flexibilizam o horário de trabalho de Gisele, e o suporte da universidade. Com R$ 400 mensais de auxílio-permanência, R$ 300 para alimentação e auxílio-transporte para ir às aulas, Gisele deixou os bicos de lado para se dedicar ao emprego, à faculdade e à família.
— Tenho uma casa para cuidar, tenho filhos. Meu salário é pouco para dar conta de tudo. Se eu não recebesse auxílio da universidade, teria que trabalhar mais e não teria tempo para estudar. A universidade já ampliou meus contatos e minha visão de mundo. A gente pode mudar nossa história com os estudos — diz Gisele.
O Programa Nacional de Assistência Estudantil (Pnaes), que financia o auxílio de bolsistas como Gisele, sofreu redução de 17% de de 2020 para 2021, a despeito de reitores terem solicitado mais verba para dar conta do aumento de pedidos de ajuda financeira, devido ao empobrecimento das famílias de universitários com a pandemia.
Universidades já usavam dinheiro do próprio caixa para complementar as reduções anuais em assistência estudantil, mas, com corte no orçamento das instituições, elas apontam que não há mais como dar conta. Para tentar mitigar a situação, a UFCSPA arrecada alimentos para distribui-los a alunos, mas a ação é insuficiente: de abril para maio, mais do que triplicaram as solicitações de ajuda.
— Alguns alunos estão em situação bem penosa: entraram na universidade, mas dependem do auxílio para permanecer. Muitos têm pais que perderam emprego durante a pandemia ou, pior, perderam os pais para a covid e ficaram sozinhos com os irmãos. Imagina o desespero de uma pessoa em talvez não conseguir terminar a graduação, a única forma de ter uma vida mais digna — diz Ana Boff de Godoy, chefe do Departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA e organizadora da campanha.
Na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), 30% das 3,7 mil bolsas são pagas pelo caixa da instituição – o resto vem do Pnaes. O corte orçamentário ameaça a assistência mantida com verba própria e impede incluir os 600 novos alunos que pediram ajuda neste ano. São pessoas em situação semelhante à do estudante de Engenharia Civil Victor Hugo de Oliveira, 21, e da noiva, a estudante de Medicina Ana Caroline de Sene Bernasconi, 23.
O casal veio da cidade de São Paulo para Pelotas a fim de se tornarem os primeiros da família a cursar o Ensino Superior em uma universidade federal. Sem o suporte financeiro, jamais conseguiriam manter os estudos.
— A gente, enquanto estudante, fica em desespero por não saber o que vai acontecer daqui para frente. Não temos condições de pagar aluguel sem auxílio. Fazemos cursos de turno integral, não tem como trabalhar. O que não levou a gente a desistir é a família ter depositado na gente a esperança de uma melhora de vida com o Ensino Superior — diz Victor.
Pesquisa impactada no país
As verbas de órgãos de pesquisa vêm caindo ano a ano, o que reduz a atratividade da atuação em ciência no Brasil e elitiza a carreira, afirmam especialistas. O orçamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), uma das principais entidades de fomento de pesquisa, que é mantida pelo MEC, é o menor em 10 anos. Como consequência, as universidades vêm complementando com o próprio orçamento as bolsas de pesquisa, algo que fica inviabilizado com o corte nos recursos.
São afetados estudos como o do grupo liderado por Carmem Gottfried, professora de Bioquímica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do Laboratório de Pesquisa em Transtorno do Espectro Autista. No local, 13 pesquisadores estudam as origens da condição desse público e possíveis medicações.
— Se houver esse corte tão dramático, a universidade não consegue manter as condições mínimas para retornar aos laboratórios. Corta bolsa, não tem pós-graduando; corta dinheiro para pesquisa, não tem insumo; corta recurso, não tem as condições mínimas. É dramático. Um país sem pesquisa não tem condições de avanço — afirma Carmem.
Atividades ligadas ao combate à covid-19 são financiadas por verba específica vinda do governo federal, mas a perspectiva de ter a eletricidade cortada assusta cientistas, uma vez que amostras e insumos de pesquisa caros são refrigerados, exemplifica Thiago Ardenghi, pró-reitor adjunto de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
— Trabalhamos com pesquisas de ponta que precisam de freezers e máquinas de alta capacidade para funcionar. Não posso parar a luz de um laboratório de cultura de células. Um dos campos de testagem da vacina de Oxford é aqui na UFSM. Se você acaba com a luz ou a segurança da universidade, esse tipo de pesquisa com impacto populacional enorme é perdido. Sem limpeza em laboratório, como fazer pesquisa em animais? Ter aulas remotas não quer dizer que as pesquisas pararam. Sem mínimas condições de manter o campus, os laboratórios acabam. Fora o descrédito: ao reduzir o investimento em educação, que incentivo damos para a próxima geração que quer ser cientista? — questiona.
Na pandemia, a UFCSPA, que é dedicada a cursos na área da saúde, passou a complementar com orçamento próprio estudos sobre novas variantes do coronavírus e a produção de álcool gel e face shield. Com a queda no orçamento, tudo está ameaçado, inclusive as bolsas, alerta a instituição.
— É provável que a gente vá ter que cortar bolsas. As mais caras são as de pós-doutorado, então talvez comecemos por aí. Quem já tem a bolsa, vamos manter porque temos o planejamento, mas não vamos dar mais. E mesmo renová-la, algo que ocorre no geral, fica difícil — diz a reitora da UFCSPA, Lucia Pellanda.
Contatado pela reportagem, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) afirma que faz um esforço com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), a Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso e a Ciência (SBPC) para sensibilizar o Congresso Nacional e garantir recursos orçamentários adequados.
Em nota, o MEC comentou sobre a situação. Confira a íntegra:
"A portaria do ME nº 5.545, de 11/05/2021, disponibilizou para as unidades do MEC todo o valor das despesas discricionárias que estavam bloqueados no órgão 93000, condicionado ao dispositivo “regra de ouro”, inciso III do caput do art. 167 CF. Não se trata, portanto, de crédito adicional, pois o orçamento já estava alocado nas unidades, apenas não estava disponível para empenho.
Importante considerar que, até o dia 21/05/2021, o Decreto de programação orçamentária e financeira deve ser publicado e pode limitar o empenho dessas despesas no MEC.
Valor total do Orçamento Disponibilizado para o MEC em Custeio (Em R$)
- Direta 265.883.504,00
- CAPES 1.083.917.216,00
- INEP 493.752.434,00
- FNDE 184.483.376,00
- FIES 325.625.911,00
- INES/IBC/FUNDAJ 37.895.749,00
- INSTITUTOS 1.119.807.565,00
- UNIVERSIDADE 2.592.436.661,00
- Total 6.103.802.416,00
A medida não altera o valor do bloqueio de R$ 2,7 bi em atendimento ao Decreto 10.686, de 22/04/2021.
O MEC está atento a situação que preocupa suas unidades vinculadas e, na expectativa de uma evolução positiva do cenário fiscal, seguirá envidando esforços para reduzir o máximo que for possível os impactos na LOA 2021."
Quer ajudar?
Você pode auxiliar os alunos carentes da UFCSPA entrando em contato com a professora Ana Godoy pelo e-mail anabg@ufcspa.edu.br para doar alimentos e cestas básicas.