A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) publicou no Diário Oficial Único (DOU), no último dia 18, a portaria de número 34. Pelas regras previamente combinadas entre a Capes e entidades acadêmicas, ficava estabelecido que nenhum programa poderia perder mais que 10% do total de bolsas. O novo documento, no entanto, determinou que cursos com nota igual a 3 no conceito Capes estarão sujeitos a uma redução de até 50% nos benefícios. Para aqueles mais bem avaliados, os cortes ficarão limitados a 20%, o dobro do acertado anteriormente.
A publicação causou revolta em grande parte da comunidade científica brasileira. Além disso, a medida chega menos de um mês depois de outras três portarias, a 18, a 20 e a 21, publicadas no fim de fevereiro e que mudavam os critérios de distribuição das bolsas para os programas de pós-graduação do Brasil. Dentre as mudanças, conforme o ministro da Educação, Abraham Weintraub, estavam a priorização de áreas de relevância, de cursos melhor avaliados, do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), do número de titulados e de doutorados em detrimento de mestrados.
Em nota publicada em seu site, a Capes afirma que a nova portaria não implica em nenhum corte. Inclusive, afirma que cerca de 42,1% dos cursos receberam um incremento na quantidade de bolsas a serem distribuídas. Outros 37,7% do total dos programas teriam mantido o número de bolsas que tinham antes da implantação do modelo e "apenas" 20,2% teriam sofrido redução de cotas, cujo valor ficaria com o chamado empréstimo, para não prejudicar os atuais detentores dessas bolsas. Ou seja, o estudante que tem a bolsa continuaria recebendo normalmente o recurso até o final de sua vigência. Em números gerais, haveria uma inserção de cerca de 3.386 bolsas no sistema.
Mesmo que o órgão do governo alegue que aumentou a quantidade de bolsas distribuídas para parte dos 5.477 cursos espalhados de norte a sul do Brasil, a comunidade científica alega que não foi exatamente isso que ocorreu e reclama que a mudança foi feita de maneira intempestiva e sem o diálogo necessário.
— Assim que vi a portaria 34, fiquei estarrecido. Ela revogava todas as outras anteriores e mudava completamente o modelo que foi acordado entre Capes e entidades científicas do Brasil. Você tirou as condições de estabilidade do modelo, tirou a trava de 10%. Pedi uma reunião com o presidente (da Capes, Benedito Guimarães Aguiar Neto, que ocorreu em 25 de março) e fomos muito claros em relação à portaria. Benedito afirmou que iria levar nossas questões para o Ministério da Educação. Eles atropelaram o modelo que foi construído com diálogo. Esse modelo conseguiu desagradar a todo mundo. A pedra angular da democracia é composta por transparência e diálogo — afirma Carlos Henrique Carvalho, presidente do Fórum Nacional de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação (Foprop).
Na nota de esclarecimento sobre a portaria 34, a Capes, para provar a existência de aumento de bolsas no sistema, citou três instituições públicas que teriam se beneficiado com o documento: Universidade de São Paulo (USP), que teria recebido 257 bolsas de mestrado e 518 de doutorado; Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com 211 de mestrado e 257 de doutorado; e Universidade de Campinas (Unicamp), com 102 de mestrado e 108 de doutorado.
No entanto, nenhum dos números confere com os apresentados pelas universidades quando consultadas. A UFRJ emitiu nota repudiando a portaria. "Na UFRJ, as perdas chegarão a 242 bolsas para os programas de pós-graduação atendidos pelo Programa de Demanda Social (DS). Esse número ultrapassa o limite de 10% inicialmente proposto pelas portarias 20 e 21 da Capes e atingirá implacáveis 20,8%. O impacto mais alto será sentido nas bolsas de doutorado, em que a perda chegará a 24%. Nos programas de pós-graduação contemplados pelo Programa de Excelência Acadêmica (Proex), as perdas chegarão a 96 bolsas", afirmou a instituição, em comunicado em seu site oficial.
A Unicamp também protestou em seu site e alegou que entre todos os programas teve um balanço de 94 bolsas de doutorado perdidas e 22 bolsas de mestrado ganhas.
— A política de pós-graduação brasileira é uma das mais bem sucedidas, mudam os governos e a política permanece. Nós não podemos quebrar essa política, isso não dependia de governo. Meu medo é de que isso se quebre. Além disso, o momento também não é o melhor para isso. Vivemos uma pandemia — ressalta Fernanda Sobral, vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Além de serem favoráveis à revogação da portaria, Foprop e SBPC concordam no que diz respeito aos impactos que um documento como este pode trazer para o meio acadêmico brasileiro.
— Muitas pessoas vão ter dificuldades para continuar pesquisas já em andamento. Na medida que se tira bolsas, como esse pessoal vai sobreviver? Eles vão abandonar a academia e buscar outras formas. Chegamos a um determinado patamar e agora vamos entrar em uma curva descendente — completa Carvalho.
Na última sexta-feira (27), o Ministério Público Federal encaminhou um ofício para o presidente da Capes, recomendando a suspensão ou revogação da portaria 34.
Como fica a situação no Rio Grande do Sul?
Os cortes e as mudanças também atingiram o Estado. Três das principais universidades do RS sofrerão com os cortes feitos pela portaria 34. A federal de Pelotas (UFPel) teria um aumento quantitativo de 3,1% nas bolsas de mestrado e 2,6% de doutorado nos cursos com nota entre 3 e 5 (Demanda Social) e de 12,7% nas de mestrado e 8,8% nas de doutorado no que diz respeito a programas com nota 6 e 7 (Programa de Excelência Acadêmica). Isso significa dizer que, mesmo havendo perdas pontuais em alguns cursos, o teto máximo de 10% para cortes permitiria que as perdas fossem absorvidas ao longo do tempo, em um processo gradual de adaptação. No entanto, quando publicada a nova portaria, em 18 de março, a UFPel passou a perder 7,8% e 7,5% nas bolsas de mestrado e doutorado de Demanda Social e, no Proex, teve um aumento de 1,8% em mestrados. O percentual de 8,8% em bolsas de doutorado se manteve. Por cima, 54 alunos foram impactados sem essas bolsas.
— Cerca de 26 cursos foram impactados englobando as primeiras portarias e esta última. Considerando que temos 42 programas, dá pra dizer que metade foi impactada. Quanto às perdas financeiras diretas, ou seja, aquela que engloba o total investido nas bolsas e, consequentemente, na economia local, só o corte de 2020 representará R$ 165,8 mil por mês a menos (R$ 69 mil referente às bolsas de mestrado, ao valor unitário de R$ 1,5 mil, e R$ 96,8 mil referente às bolsas de doutorado, ao valor unitário de R$ 2,2 mil) — afirma o professor doutor Vetromille-Castro, coordenador de pós-graduação da entidade.
O impacto é preocupante. Somando-se aos cortes anteriores, são centenas de alunos que têm seus direitos de estudo cerceados e pesquisas importantes que deixarão de ser feitas
THIAGO MACHADO ARDENGHI
Coordenador de pós-graduação da UFSM
A Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) passa por situação parecida com a de Pelotas. Conforme levantamento feito pela entidade, considerando-se as perdas e ganhos em cada programa após a aplicação dos critérios, haverá um déficit final de 262 bolsas (169 de mestrado e 93 de doutorado), o que corresponde a 19% de diminuição no quantitativo de bolsas disponíveis em fevereiro de 2020. Para fins de comparação: desse total de 262 bolsas, 200 delas serão cortadas após a portaria 34, sendo 124 de mestrado e 76 de doutorado, incluindo programas que estão em nível excelência acadêmica (com notas 6 e 7).
— O impacto é preocupante. Somando-se aos cortes anteriores, são centenas de alunos que têm seus direitos de estudo cerceados e pesquisas importantes que deixarão de ser feitas. Esse fato reflete o cenário atual da pesquisa no Brasil, com cortes orçamentários sistemáticos que prejudicam a continuidade de projetos e pesquisas. A ciência não se mensura de forma direta. O conhecimento científico está sempre avançando e, quando eu paro, não volto naquele estágio em que estava — ressalta o pró-reitor substituto e coordenador de pós-graduação da universidade, professor Thiago Machado Ardenghi.
A longo prazo, isso pode comprometer a qualidades dos programas frente ao órgão e também a produção científica
CELSO LOUREIRO CHAVES
Pró-reitor da UFRGS
A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) sofre com praticamente os mesmos cortes das outras entidades. Em programas com avaliações 3, 4 e 5, houve uma perda de 19,11% (202 bolsas) e, nos com avaliação 6 e 7, diminuição de 2,72% (48), dentro dos 10% previstos pelas portarias 18, 20 e 21. Praticamente todos os programas de pós-graduação da UFRGS foram atingidos. Dentre os poucos que escaparam estão a pós-graduação em Educação (PPGEDU) e a pós-graduação em Recursos Hídricos.
— Temos repercussões de vários tipos. No tempo presente, a retirada vai acarretar em processos seletivos já feitos e estudantes com expectativa de bolsas ficando sem nada. Isso pode tornar inviável eles embarcarem nesta jornada de estudo. A médio prazo, teremos no correr dos próximos meses mais bolsas sendo paulatinamente sendo retiradas pela Capes. A longo prazo, isso pode comprometer a qualidades dos programas frente ao órgão e também a produção científica — expõe professor doutor Celso Loureiro Chaves, pró-reitor da UFRGS, que defende a revogação da portaria 34.
Apesar de não ser pública, a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) também teve diminuição das bolsas. Conforme publicado no site oficial da entidade de ensino, caso não ocorra reversão do cenário atual, irá perder 24% das bolsas da Capes, com substancial impacto na capacidade de apoiar alunos ingressantes em 2020/1.
Sem bolsa e desamparados
Com cortes de incentivos em 20,2% dos cursos, conforme a Capes, muitas pessoas ficaram sem saber o que fazer, mesmo após terem garantido suas bolsas pelas universidades. Uma das estudantes é Sarah Moreno. Vinda do interior de São Paulo para Porto Alegre, a paulista chegou à capital gaúcha em 2019, passou o ano passado inteiro sem contar com o apoio da Capes e esperava receber a bolsa de doutorado em 2020 para continuar desenvolvendo seu estudo.
Participante do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, Sarah veio para a cidade pois é o único programa do Brasil que conta com a linha de pesquisa de relações humano-animais, uma linha que vem se consolidando recentemente na Antropologia e que tem se mostrado de muita importância para o desenvolvimento de pesquisas sobre epidemias, saúde pública, tecnologia. O Grupo de Estudos Multiespécie, Microbiopolítica e Tecnossocialidade (Gemmte), do qual ela participa, é coordenado pelo professor doutor Jean Segata e tem um histórico de pesquisas sobre a dengue e zika.
— Temos 13 pesquisadores desamparados, além dos demais que ficam no aguardo de uma bolsa no ano seguinte, como eu fiquei durante o ano de 2019. Desde o início do ano a Capes já vinha divulgando ofícios e portarias indicando alteração nos critérios de concessão de bolsas. Uma das principais justificativas era de que privilegiariam programas de excelência, isto é, avaliados em nota 6 e 7. O PPGAS da UFRGS é nota 6, e havia a previsão de que seriam liberadas, este ano, 10 bolsas CAPES para o doutorado e sete para o mestrado.
Hoje, meu maior medo é ter de optar por desistir caso não se reverta esta situação, pois é muito complicado me manter na cidade sem a bolsa de estudos e poder desenvolver minha pesquisa
TALES FLORES DA FONSECA
Doutorando em sociologia na UFRGS
No entanto, quando o sistema foi aberto, apenas quatro vagas estavam disponíveis, o que inviabilizou a situação de Sarah.
O pelotense Tales Flores da Fonseca, 25 anos, viveu a mesma desilusão da paulista. Graduado em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pelotas e egresso neste ano no doutorado em sociologia da UFRGS, veio para a cidade para se dedicar ao curso:
— Minha perspectiva no início do semestre era de que o cenário, por mais que se apresentasse com cortes que já vinham de anos anteriores, era de que conseguiria obter a bolsa no doutorado neste começo de ano. O fato de não ser da cidade dificulta muito, tanto para a adaptação como, principalmente, para a manutenção aqui. Consegui alugar um apartamento pequeno no Centro, onde imaginei ser um lugar melhor para poder circular de ônibus até o campus, já que as aulas são no Vale, e por ser um valor que eu poderia arcar com recebimento da bolsa.
Com a portaria, Tales e o programa de pós-graduação em que ele está inscrito perderam todas as bolsas que seriam destinadas para a turma de 2020.
— É muito difícil e dramático, pois é complicado para um estudante de doutorado, vindo do interior, poder trabalhar e estudar, e a esta altura é ainda mais difícil pensar na possibilidade de trabalhar diante do cenário do coronavírus e a necessidade de isolamento social. Mais ainda em virtude do fato de que um estudante de doutorado precisa ter dedicação exclusiva, pois o trabalho de pesquisa exige muito. Hoje, meu maior medo é ter de optar por desistir caso não se reverta esta situação, pois é muito complicado me manter na cidade sem a bolsa de estudos e poder desenvolver minha pesquisa — conta ele.
Se os outros exemplos eram voltados às ciências humanas, o caso de Guilherme Brito, médico formado pela PUCRS, vai para outro campo. Ele havia ganhado uma bolsa de estudos da Capes, que até então era garantida em processo seletivo, sobre envelhecimento e Alzheimer. Ganharia um isenção das taxas e um valor mensal para viver, sob dedicação exclusiva e integral à pesquisa, tendo que abrir mão de um emprego em um posto de saúde de Porto Alegre.
Com o corte das bolsas, o governo acaba não só com a força-tarefa, mas com todos os projetos que trabalhávamos
GUILHERME BRITO
Bolsista da PUCRS
— Eles efetivariam as bolsas até 5 de março. Até o dia 20, não haviam aberto o sistema da Capes para isso e as aulas já haviam iniciado. Com o impacto e com a chegada do coronavírus e pela mobilização das universidades e dos pesquisadores, todos pós-graduandos passaram a trabalhar em soluções e pesquisa para a pandemia. Formamos uma força-tarefa contra a covid-19 na PUCRS. Pesquisamos novos tratamentos, testes diagnósticos, equipamentos de proteção, elaboramos análises da disseminação do vírus em nível local. Eram diversas iniciativas — conta o doutorando.
O problema é que a maioria desses pesquisadores são, como Guilherme, estudantes no doutorado ou mestrado, bolsistas da Capes.
— Com o corte das bolsas, o governo acaba não só com a força-tarefa, mas com todos os projetos que trabalhávamos. Só na PUCRS são 196 pós-graduandos iguais a mim que ficarão sem bolsa. No resto do Brasil são milhares — completa.
Bolsas para o combate ao coronavírus
Na contramão de cortes em bolsas como a de Guilherme no Rio Grande do Sul, a Capes informou, em 23 de março, que oferecerá 2,6 mil novas bolsas em um programa de apoio à pesquisa voltado à prevenção e ao combate de epidemias.
Conforme o órgão, cursos que lidam direta ou indiretamente com pesquisas envolvendo o estudo do coronavírus receberão 2.180 bolsas além do quantitativo já previsto pelo modelo de concessão. Outras 420, juntamente com recursos de custeio, serão oferecidas aos cursos de excelência - que possuem conceitos 6 e 7 e atuam nas áreas de infectologia, epidemiologia, pneumologia e imunologia.
Questionada sobre valores e prazos sobre estes programas específicos, a Capes afirmou que mais detalhes serão divulgados em breve.